quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

18/12: O Profeta (Jacques Audiard, 2009)

O Profeta - Jacques Audiard (2009)

Sinopse
Condenado a seis anos de prisão, Malik El Djebena, meio árabe, meio córsico, é analfabeto. Ao chegar à prisão, totalmente sozinho, ele parece mais jovem e mais frágil do que os outros presos. Ele está com 19 anos. O líder da facção dos córsicos dá a Malik uma série de “missões” a serem cumpridas. Ele aprende rápido e se fortalece, ganhando a confiança do chefe da facção. Malik usa toda a sua inteligência para desenvolver discretamente o seu plano. Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 2009. Duração: 155 minutos

Crítica: O Profeta (Jacques Audiard, 2009)

por Régis Trigo
Extraído de http://www.cineplayers.com/critica.php?id=1955


Certamente um dos melhores filmes exibidos no Brasil em 2010.

Desde que estreou no Festival de Cannes de 2009, quando disputou cabeça a cabeça a Palma de Ouro com A Fita Branca, O Profeta vem sendo considerado uma unanimidade entre a crítica (inclusive a americana). Com tamanha credencial, era de se esperar que o novo trabalho do diretor Jacques Audiard tivesse algo de especial, que ao menos driblasse os clichês do subgênero de “filmes de prisão”. Agora, quase um ano após essa peregrinação internacional, O Profeta aporta na salas brasileiras. E a conclusão é: não é que os críticos estavam certos? O Profeta é, de fato, cinema de alta qualidade.

A narrativa começa com a detenção do jovem Malik El Djebena (Tahar Rahim). Com um olhar assustado, ele ouve os gritos de outros detentos que se encontram nos corredores ao lado. Malik conversa com o defensor público. Ele sabe que foi condenado a 6 anos, mas parece não dar conta da gravidade da situação. O advogado logo deixa claro: “Você está entre os grandões”. Ele é transportado para a prisão. Sentado à janela do camburão, observa as últimas paisagens de uma Paris que está prestes a ficar para trás. Ao chegar ao presídio, Malik passa pela revista tradicional. As cicatrizes que coleciona pelo corpo indicam um passado difícil. Ficamos sabendo que sua condenação decorre de uma agressão a um policial. Como a maioria dos outros presos, Malik se considera inocente. De fato, não há maldade em seu rosto ainda adolescente.

Em certo sentido, Malik parece um recém-nascido. Não sabe ler nem escrever. É descendente de árabes, mas a religião muçulmana é algo que lhe diz muita coisa (ele come carne de porco sem qualquer problema). Fora dali, não tem pais, parentes ou amigos a quem possa recorrer. A prisão será seu primeiro lar.

Nos seus primeiros dias, Malik tenta ficar isolado. Passa o tempo trabalhando numa oficina de confecção de calças jeans e andando no pátio a esmo. Ele observa que os detentos se dividem em dois grandes grupos: os muçulmanos e os corsos, considerados presos políticos. Estes últimos são chefiados por César Luciani (Neils Arestrup). O poder de César no interior daqueles muros é tanto que ele circula livremente pelos corredores da prisão, recebe informações privilegiadas de funcionários, tem direito a audiências com seu advogado à hora que bem entender, e, claro, carrega sempre consigo um telefone celular.

Um dia, uma nova leva de muçulmanos chega à prisão. Entre eles está o árabe Reyeb, que servirá de testemunha de um caso importante. De fora do presídio, César recebe a ordem de assassiná-lo. Ele vê no tímido Malik a pessoa perfeita para a tarefa. César o procura com uma oferta irrecusável. Malik terá que matar Reyeb. Se recusar, ele será morto pela gangue de César. O confronto entre Malik e Reyeb é violento. Prepare-se: a cena é filmada de forma seca, realista, sem floreios. Dificilmente o espectador passará ileso por ela. É o batismo de Malik. Dali pra frente, sua proteção na prisão está garantida.

Lá pelas tantas, o roteiro de O Profeta tem o seu ponto de virada. Na televisão, é anunciado que o Presidente Nicolas Sarkozy aprovou a legislação que prevê a transferência dos presos de origem corsa. Para evitar o isolamento, César se aproxima de Malik. Em certo sentido, ambos passam a representar o pai e o filho que não tiveram ou não conheceram no seu devido tempo. César mexe seus pauzinhos e faz com que Malik ganhe o direito de sair periodicamente da prisão pelo espaço de um dia. Nas ruas, Malik se transforma no mensageiro de César. Faz contatos, organiza novos crimes, mantém a aquela estrutura organizacional ainda de pé, por assim dizer. Não demora muito, e Malik logo começa a usar essas saídas para iniciar seus próprios negócios, que envolvem basicamente o tráfico de haxixe. É o filho que aos poucos vai se desgarrando do pai.



O Profeta é um tipo raro de filme que funciona em praticamente todos os seus níveis. No tema macro, o roteiro aborda bem a rivalidade e o xenofobismo entre árabes e corsos. Considerando que o presídio é um microcosmo da França atual, não é difícil perceber que Audiard nos quer mostrar a turbulência social que o País atravessa. Já no tema menor, O Profeta mostra que o sistema penitenciário francês é tão precário, ineficiente e corrupto quanto de qualquer outra parte do mundo.

O Profeta é um exemplo de personagens bem desenvolvidos. Tome-se o exemplo de César: seu nome não foi escolhido à toa. Dentro daquele mundo, ele é um verdadeiro imperador. Sempre seguido por seu asseclas, ele tem o poder de comandar o crime organizado. Seu modo de andar, com as mãos nos bolsos do casaco, revela um certo orgulho com a posição; os cabelos penteados para trás, um lado vaidoso. E são justamente os cabelos despenteados (quando César acorda no meio da noite e senta na beirada da cama), que marcam o início da derrocada do personagem. Num certo sentido, César é uma espécie de Príncipe Salinas. Ele sabe que sua geração são os leopardos de antigamente que, num futuro muito próximo, será substituída por uma nova casta de criminosos. Na prisão também vale a regra não tipificadas de que as coisas devem mudar para ficar como estão.

Malik, por sua vez, é daqueles adolescentes que foram educados pela escola da vida. Aos 19 anos, quando é detido, seu currículo não exibe qualquer formação acadêmica ou experiência profissional. Na prisão aprenderá a ler, a escrever e a desempenhar um ofício. Malik fala pouco e escuta mais. E aprende rapidamente a engrenagem das coisas. Sua descendência árabe permite que ele transite bem entre os dois mundos, manipulando ambos os lados de acordo com os seus interesses. Numa comparação, Malik entra na prisão como um jovem Michael Corleone e sai dela como um Scarface.

O roteiro de O Profeta abre espaço para outro importante personagem: o árabe Ryad. Instrutor de Malik, eles se tornam grandes amigos. Ryad acabara de debelar um câncer nos testículos. De fora da prisão, ele mantém contato com Malik por cartas. Tem dificuldade de se reintegrar à sociedade. Aceita um trabalho de operador de telemarketing. Tão humilhante quanto o salário miserável que lhe pagam é ter que alterar sua identidade para um nome mais afrancesado. O drama de Ryad serve para o diretor dar o recado: para muitos detentos, a verdadeira pena começa a ser cumprida fora da cadeia.

A direção é de Jacques Audiard. Nascido em 1952, o cineasta possui apenas seis filmes no currículo. Até então, seu melhor filme fora Sobre Meus Lábios, em que contava a interessante e ao mesmo tempo improvável história do relacionamento entre um surda e um ex-presidiário. No Brasil, sua obra mais conhecida era De Tanto Bater Meu Coração Parou, que narrava a trajetória de um homem dividido entre a pressão de seguir a carreira de corretor imobiliário, tal e qual o pai (interpretado pelo mesmo Neils Arestrup) ou de enveredar pela carreira de pianista, tal e qual a mãe. O Profeta é, de longe, seu projeto mais ambicioso e, sem dúvida, o mais bem sucedido. A temática permite que ele explore ao máximo seu estilo de filmagem em closes, com a câmera praticamente colada no rosto dos atores, acentuando o tom documental da história. Talvez o principal defeito de Audiard é que seus filmes demoram demais a ficar prontos.


Se Audiard dá as cartas atrás das câmeras, na frente delas o elenco é de primeira. O destaque, claro, vai para a dupla central. No papel de Malik, o jovem Tahar Rahim mostra um talento de quem veio para ficar. Sua interpretação é mais baseada nos olhares, nos gestos e na movimentação corporal. Todas essas características se encaixam perfeitamente com a personalidade do seu personagem, que aprende mais observando e escutando do que falando. Já o veterano Niels Arestrup, na pele do temível César Luciani, não fica atrás. As marcas de expressão de seu rosto (já vai longe o visual mais jovial do drama musical Encontro com Vênus), conferem uma autenticidade natural ao seu personagem. Mesmo sem conhecermos seu passado, ele nos parece tão real que conseguimos imaginar as várias batalhas que a vida lhe reservou, algumas políticas em nome da causa da Córsega, outras nem tanto.

Alguns poderão implicar com a duração relativamente excessiva, ou do ingrediente sobrenatural introduzido no roteiro (que, inclusive, justifica o título do filme). Mas se encarados como defeitos, são detalhes menores que não retiram o impacto da obra.

O Profeta é um dos melhores filmes a estrear no Brasil em 2010.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

11/12: Papillon (Franklin J. Schaffner, 1973)

Papillon - Franklin J. Schaffner (1973)

Sinopse
Papillon narra a impressionante determinação de um homem em se libertar das grilhetas que o mantém preso por um crime que sempre declarou ser inocente. Steve McQueen é Henri Charrière, conhecido como Papillon. Acusado e condenado por homicídio tentou por várias vezes a sua sorte em arriscadas fugas, até finalmente conseguir. Dustin Hoffman é Dega, o seu parceiro de prisão. Papillon é um verdadeiro hino à coragem, determinação e disciplina e principalmente ao que um espírito verdadeiramente livre e indestrutível pode conseguir face a desafios terríveis. Um dos grandes clássicos do cinema, com memoráveis atuações de Steve McQueen e Dustin Hoffman. Duração: 150 minutos

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

04/12: A um passo da liberdade (Jacques Becker, 1960)

A um passo da liberdade - Jacques Becker (1960)

Sinopse
Homem que divide a cela numa prisão em Paris com mais de quatro priosioneiros, aceita elaborar um meticuloso plano de fuga com os companheiros. Explêndida e sombria direção, com uma iluminação fantástica, excelente interpretações e um roteiro que é uma verdadeira aula. Maravilhoso testamento fílmico de Becker, sem dúvida seu melhor filme. Duração: 125 minutos

Crítica: A um passo da liberdade (Jacques Becker, 1960)


“A Um Passo da Liberdade” (ou, em tradução literal do título francês Le trou, “o buraco”) conta a história de cinco prisioneiros que tentam escapar da prisão La Santé, em Paris, pelos esgotos.

O diretor e roteirista Jacques Becker insistia que a história era totalmente baseada em fatos reais. Reforça essa suposta fidedignidade o fato de Jean Keraudy, um dos envolvidos no caso real, atuar como Roland, que praticamente é o líder dos fugitivos. É ele, também, que faz uma breve introdução ao filme, antes dos créditos iniciais. Além disso, outros dois participantes na fuga ajudaram na reconstituição dos detalhes, durante as filmagens.

Já bastante doente durante a produção, Becker, que morreria apenas alguns dias depois, teve a ajuda de seu filho, o também diretor Jean Becker, em algumas cenas


O uso de atores não-profissionais em quase todos os papéis principais, aliado aos inúmeros longos planos dando ênfase às tarefas repetitivas da prisão e aos preparativos relacionados à fuga, garantiram uma narrativa naturalista, quase de documentário, que é o ponto alto do filme. O “realismo” é reforçado também pela ausência de qualquer música, até os créditos finais, sendo a trilha sonora composta unicamente pelos mais variados ruídos (como os de buracos sendo abertos em pisos e paredes ou de grades sendo serradas). É impossível não fazermos uma analogia com “Rififi” (“Du Rififi Chez Les Hommes”, dir. Jules Dassin, 1955) e sua antológica cena do assalto, com 27 minutos de duração sem qualquer trilha sonora ou diálogo. Também em “Le Trou”, os ruídos, sem música que os amenize, vão gradativamente criando uma enorme tensão no espectador.

Roland, Manu, Monsigneur e Geo dividem uma cela e planejam a fuga. Quando chega um novo preso para sua cela, Claude, hesitam em inclui-lo nos planos, afinal pode se tratar de um “dedo-duro” plantado ali por conta de alguma suspeita do diretor do presídio. Mais tarde, porém, Claude, que dizia ter sido preso injustamente, por conta de uma acusação falsa de sua esposa, ganha certa confiança dos demais (que nunca é total) e assume algumas tarefas nos preparativos.

As incursões dos presos aos subterrâneos, durante os preparativos, proporcionam cenas marcantes. Quando Manu e Claude conseguem abrir a última passagem e chegar até a rua (sem, no entanto, fugir, já que a fuga seria no dia seguinte, com todos os demais), Claude vê um táxi passando e diz que “quase poderia pegá-lo”. É o típico momento “tão perto, tão longe”.

“Le Trou” é, para mim, filme de prisão e fuga que pode facilmente ser colocados entre os melhores do gênero. Filmaço!

Biografia: Jacques Becker

Apesar de hoje parecer obscuro e desconhecido, Jacques Becker é com certeza um dos maiores diretores de cinema franceses. Responsável pelos maiores filmes franceses nas décadas de 40 e 50, Jacques Becker foi exerceu grande influência sobre a Nouvelle Vague, sobretudo em François Truffaut.

Jacques Becker nasceu em Paris em 1906. Iniciou-se no início da década de 30 como assistente de direção de Jean Renoir, com quem trabalhou até 1940. Em 1941, lança seu primeiro longa metragem solo, Dernier Atout, um pastiche dos trillers americanos. Com seus dois próximos filmes, Mãos Vermelhas (1943 - retrata aspectos dos camponeses franceses na década de 40) e Nas rendas da sedução (1944 - retrata a alta costura parisiense), faz um enorme sucesso de crítica e público, graças a sua extrema habilidade de construir um drama intenso e cativante.

Em 1947 lança O Tonio e a Toninhas onde retrata a classe média suburna parisiense da época, em 1949 lança Rendez-vous de juillet onde critica acidamente a a vida intelectual de Saint-Germain-des-Prés. Em 1952 e 1953, lança respectivamente, duas das maiores obras primas do cinem francês: Casque d'or e Grisbi. Em Casque d'or retrata um trágico romance ocorrido durante Belle Époque francesa. Com Grisbi, graças a acão e a densidade dos ambientes e das personagens, Becker abre caminho à subsequente série de produções de filme noir de que o cinema francês seria fértil nas décadas de 50 e 60.

Entretanto, seus dois filme seguintes Ali Baba et les quarante voleurs (1954) e As aventuras de Arsène Lupin (1957) são fracassos retumbantes. Retorna em grande estilo com Os Amantes de Montparnasse (1958) onde retrata o último ano de vida do pintor Modigliani. Este filme era o último projeto de Max Öphuls, interrompido por sua morte e é retomado por Jacques Becker. Segundo Godard, este “não é um filme, mas a descrição do medo de fazer um filme”.

Mas indubitavelmente seu melhor trabalho é A um passo da Liberdade (1960) onde se afasta do romantismo, que marcara sua carreira e mergulha em um neo-realismo, retratando um eletrizante plano de fuga de prisão de presos franceses. É uma das maiores obras primas do cinema francês, infelizmente um pouco esquecida pelo tempo e ofuscada pelo enorme sucesso da Nouvelle Vague na década de 60.

Já bastante doente durante a produção de A um passo da Liberdade, Becker, que morreria apenas alguns dias depois, teve a ajuda de seu filho, o também diretor Jean Becker, em algumas cenas.