segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Crítica - Os idiotas


por Samir Thomaz

Uma mulher de meia-idade entra num restaurante, pede um prato barato e água mineral. Enquanto ela come, um rapaz loiro, com tiques de deficiente mental, anda pelo ambiente, importunando clientes e deixando o garçom atônito. A mulher o observa. O rapaz se aproxima e segura sua mão.

Percebendo o problema do rapaz, esboça um sorriso e se deixa tocar. A moça loira que o acompanha pede desculpas pelo incômodo. A mulher sorri novamente. Sem largar a mão da estranha, o rapaz a pede para que o acompanhe. A moça loira o repreende. Mas a mulher se deixa levar. Diante da situação, o garçom permite que saiam sem pagar. Na calçada do restaurante, tomam um táxi. Só então o rapaz solta a mão da mulher. Dentro do carro, ele, a moça loira e outro amigo explodem numa gargalhada. Ali, a farsa é descoberta.

Os Idiotas (Idioterne, Dinamarca, 1998), de Lars Von Trier, é um aprendizado. Não no sentido edificante; pelo contrário, no sentido subversivo. Em cada cena, em cada diálogo, faísca a centelha da transgressão. No entanto, o diretor não facilita o caminho. O filme exige perseverança e olhos bem abertos para enxergar o outro.
Von Trier faz de Os Idiotas a pedra angular de uma radical proposta de se fazer cinema. O movimento trepidante das câmeras, a ausência de trilha sonora e de iluminação, a imagem granulada, as falhas de continuidade – expedientes preconizados pelo Dogma 95, do qual o diretor é o principal artífice – tudo concorre para instaurar na trama a atmosfera de permanente ruptura.

Com pouca linha na agulha (o filme teve baixíssimo orçamento), o diretor transgride as ordenadas estáveis do establishment no que ele tem de mais precioso: sua crença na normalidade das convenções. Resulta daí uma história contundente, legítima representante do cinema que se propõe não a mexer em feridas, mas em abri-las, desprezando o aparato tecnológico.

A história mostra um grupo (Stoffer, Suzanne, Katrine, Axel, Henrik, Josephine, Jeppe, Nanna, Miguel, Ped e Karen), que decide se isolar para cultivar o idiota que há dentro de cada um. Ser um idiota, no contexto subversivo que o filme instaura, consiste em comportar-se como um débil mental para ver a reação da sociedade. Em bom português: surtar.

Eles saem em grupo e se revezam em performances convincentes. Não há quem desconfie da farsa. Em alguns momentos, chegam a flertar com o perigo, como na cena em que Jeppe se aproxima de motoqueiros num bar e simula curiosidade pelas tatuagens desenhadas em seus braços. Eles se sensibilizam com Jeppe, uma reação recorrente no filme, e lhe oferecem cerveja. Jeppe se senta com o grupo e consegue que dois dos homens o acompanhem até o banheiro.

Sob o pretexto de incapacidade mental, faz os motoqueiros abrirem seu zíper e colocarem seu pênis para fora para poder urinar. Jeppe segura a performance com a frieza de um psicopata e os dois homens nada percebem.

Durante uma dessas encenações, Karen se agrega ao grupo. Com o passar dos dias ela se deixa ficar, como uma pessoa sem passado. Contenta-se em observar as pessoas e, aos poucos, afeiçoa-se a elas. Sua alegria por estar ali é própria de quem está no limite do desespero e se apegaria a qualquer coisa para não pensar em si. Nesse momento, Karen se erige como a consciência do público, a única a agir pelo senso comum, embora uma aura de mistério paire sobre seus motivos para estar com o grupo.

Quanto aos outros componentes, aos poucos revelam assumir tal postura como uma crítica à hipocrisia que enxergam na sociedade. Desta crítica extraem a catarse de que necessitam para manter intacto o equilíbrio emocional.

Rebeldes sem causa, confrontam-se com a pouca consistência da vontade de romper o elo com o passado, mas não a assumem. No fundo, sabem que poderão valer-se do salvo-conduto de sua condição de burgueses. A crítica aos valores do capitalismo, aliás, pontua toda a trama. Num diálogo, Stoffer diz não se importar que Axel esteja quebrando o alpendre da casa, porque "o alpendre é uma bobagem burguesa".

Talvez como punição inconsciente, ou disciplina, o grupo estabelece regras para serem considerados verdadeiros idiotas, última e desesperada tentativa de auto-afirmação. A principal delas dispunha que cada um voltasse ao seu contexto original (casa, bairro, empresa, escola) e agisse como um retardado mental. Esse seria o rito de passagem após o qual alguém poderia se tornar um membro do grupo. Ou seja, um idiota.

O resultado é traumático. Apenas Karen, que se juntara ao grupo por acaso, leva essas regras às últimas conseqüências. Os demais sucumbem ao peso da consciência, tradição, apego às conveniências da vida burguesa, medo ou inconsistência de seus próprios objetivos. E, como se verá, apenas Karen carrega dentro de si uma verdadeira tragédia.

O tema de Os Idiotas não é novo. Trata-se do já razoavelmente explorado tema do outsider na sociedade, prato cheio para antropólogos e sociólogos. O que Von Trier traz de novidade, além das regras de seu controvertido Dogma, é o tom de provocação que permeia todos os filmes do movimento, como Festa em família, de Thomas Vinterberg. Enfim, Os idiotas é uma mistura de cinismo e niilismo, na qual Von Trier carrega nas tintas para fazer pensar. E faz.


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