terça-feira, 26 de outubro de 2010

Entrevista com Carlos Reichenbach

Extraída da Revista ContraCampo de Cinema. http://www.contracampo.com.br/01-10/reichenbachentrevista.html

O Começo no udigrudi

Com Dois Córregos você faz agora 35 anos de carreira, mais ou menos, se considerarmos que você começou em 64 com Uma Rua Tão Augusta...

66, 65 na verdade. Foi quando eu entrei na ESC. Agora você me pegou... 66, não foi 64. Peraí, fazendo as contas: entrei em 65 na Escola São Luís e aí começamos a filmar esse filme em 65, mas depois ele terminou só depois de As Libertinas. Ele ficou parado, não tinha dinheiro para acabar, foi tudo feito na raça. Aí foi o Luís Sérgio Person, que era da Secretaria de Cultura e eles abriram um concurso para curta-metragem que teoricamente existe até hoje,que premia doze curtas por ano.

O Prêmio Estímulo?

Prêmio Estímulo. O primeiro Prêmio Estímulo foi... acho que três ou quatro alunos da São Luís pegaram. Ana Carolina, Paulo Rufino e teve mais um outro. Aí ele falou: "Entra no Prêmio pra terminar aquela merda que você deixou incompleta, né?"

Pra começar: você tem mais ou menos dois perídos marcados, ou então três. Um começo que está mais associado ao pessoal do underground, com dois curtas de filmes, o Libertinas e...

Audácia.

...o Audácia. Depois um período pontuado de... em que você tentou fazer uma mistura de um conteúdo intelectual em uma forma pop. E depois os filmes mais marcadamente dramas ou então especialmente melodrama, como é o caso do Arrabalde. Como seria uma síntese do Reichenbach que permeia os três períodos? Quais são as preocupações que desde o começo estão presentes?

Na minha primeira fase eu tenho pra mim que era um momento em que a vida era mais importante que o cinema. O cinema era mais alguma coisa. Um pouco como o poder de apreensão do que a gente tava vivendo naquele momento. Não canso de dizer que fui de uma geração que viveu muita coisa em muito pouco tempo. Desde a experiência política, a experiência de rua até o desbunde, a contracultura, a fase mística... foi isso tudo em quatro, cinco anos. Pelo menos pra mim, naqulele momento, eu tenho essa visão muito clara, distanciada hoje, pra mim foi um período muito grande de desbunde, mesmo. Onde a coisa mítica do cinema foi dinamitada, na verdade. Eu trocava o melhor pelo pior. Quando eu entrei na São Luís, eu entrei imbuído com aquela idéia do Cinema Novo, de fazer um cinema revolucionário, um cinema que afetasse a realidade, (ri) que mudasse a realidade. Um ano de São Luís, que foi em 65, o momento mais agônico dessa mudança, quando você descobria o que podia acontecer, não o que a gente pensava que ia acontecer. Um certo desencanto, também. Aí um pouco esse pensamento muda, também. Muda na essência da gente não achar que devia mudar o mundo, devia mudar a gente mesmo primeiro. A gente sempre fala que o... o pós-novo (não gosto da palavra underground, os ingleses é que chamavam de pós novo) trocou a sucessão pela transgressão. Os filmes estavam muito próxmios da vida. Eram quase o prolongamento do que a gente estava vivendo no cotidiano. Por isso talvez esse excesso de barato nos filmes, escarro, vômito, uma coisa niilista, eminentemente niilista. Anárquica, mas muito mais niilista, em todos os filmes daquele momento. Mas mesmo assim eu acho que como um olho de cinema eu devo dizer que não entrei na São Luís para ser diretor, eu entrei para ser roteirista. Eu tenho uma formação literária. Sou filho de editor, neto de editor, sobrinho de editor... E pra mim, aquele momento, até 69, até aquele episódio, o segundo episódio, que se chama A Badaladíssima dos Trópicos com os Picaretas do Sexo, eu não gosto desse cinema que eu fiz. Eu tenho a maior admiração pelos filmes dos meus amigos. Em geral eu tive um envolvimento com eles, como O Pornógrafo, que foi feito pelo cara que fez o Libertinas comigo, o Callegaro. Eu achava que o Callegaro tinha muito mais talento... O Orgia, do João Silvério Trevisan, o Bang-Bang... esses filmes são importantes. Tanto o Alice quanto o Badaladíssima dos Trópicos não têm importância nenhuma. São mais exemplos de um determinado momento da minha vida. Eu acho que o que eu fazia na minha vida particular é mais importante do que esses filmes. Eu tenho hoje essa visão muito clara. É claro que daí se inclui o Bandido, se inclui uma série de filmes que foram feitos naquele momento, o Candeias. Eu acho que o cinema passou a ter realmente uma importância para mim como linguagem na virada da década, quando a dispersão começou a acontecer. Eu digo que, de certa forma, o cinema pra mimfoi uma salvação. Quando eu terminei Audácia, eu comecei a produzir um filme que eu cheguei a filmar algumas coisas, chamado Guatemala Ano Zero. Ficou inacabado, e que era realmente a tentativa de fazer alguma coisa mais conseqüente do que eu sempre quis fazer antes. Eu acho que tanto As Libertinas quanto Audácia são filmes circunstanciais. Tanto que eu não gosto. Não gosto muito de rever. Eu fico olhando: "Como eu era analfabeto"... em cinema, né?? (risos)

E Guatemala Ano Zero?

Guatemala Ano Zero não, Guatemala Ano Zero é um filme pretensioso mesmo. TInha um bando de gente indo embora do Brasil. A idéia era essa, partia dessa frase: o último que sair apaque a luz. Todo mundo se mandando... Eu cheguei a filmar quase 60 travelings pela 23 de Maio, todos os caminhos conduzindo ao aeroporto. Mas obviamente não conseguimos grana para terminar esse filme. Foi ujm filme indesejado na minha própria família.

O filme tem alguma parte montada?

Não. Só tinha coisa filmada. Esse copião inclusive eu acabei dando pro Andrea Tonacci. Ele estava também preparando um outro filme que ele nunca terminou, dois projetos sensacionais, um projeto chamado Abracadabra, que nunca terminou mas que também tinha esse senso, essa idéia da estrada vazia. Que eu acho que é a imagem que marca... a imagem mais marcante que tem por exemplo no final do Orgia. Eu acho que é a imagem símbolo. Orgia foi o último filme, junto com República da Traição, de um momento cinematográfico, desse chamado cinema underground. Foram os dois últimos filmes daquele período totalmente interditados pela censura, e os dois últimos filmes a serem liberados dez anos depois. Claro, porque nesse momento, já eram filmes datados, de uma certa forma. Mas eu acho que a imagem do Orgia sintetiza muito aquele momento, porque o filme termina em silência com uma câmara na mão numa estrada vazia. Não dá em lugar nenhum. Você teve a oportunidade de ver?

Vou ver agora, na Mostra...

Você vai sentir. Depois de cair um abismo total, os personagens são marginais que vão se juntando e terminam num cemitério, uma orgia no cemitério, onde tudo acontece. O filme se autodefine, entra um locutor falando em tupi guarani: "Essa é a geração da sífilis". É o clima da virada da década, mesmo, talvez mais niilista. É o último filme, um filme terminal. O Trevisan é o Pasolini do cinema marginal. O Salò do cinema udigrudi. O filme era detestado por muita gente. Eu adoro esse filme, acho fantástico. Eu acompanhei porque eu fui fotógrafo do filme, e a forma como ele foi feito é muito inteligente. Mas tem pessoas que detestam, odeiam, carregam uma coisa maldita, pesada. Pra mim, naquele momento, eu estava mais como testemunha, um espectador, do que realmente como um autor. O cinema pra mim começa em 71 com Corrida em Busca do Amor. Esse é o meu primeiro filme. Porque foi um desafio, exatamente pela proposta ter sido um desafio. Naquele momento eu começo a enxergar o que vai ser a minha linguagem daí pra frente. E de uma certa forma quebrar um certo preconceito, umas amarras, etc. e tal, e essa idéia de trabalhar clichê. Converter clichês.

A Autoconsciência

Talvez seja a primeira tentativa dum cineasta que trabalha com vocabulário intelectual de tentar mexer com um lado mais popular, com o gênero no Brasil.

Sim, sim. Houve outros cineastas que fizeram isso. O Antonio Calmon fez isso muito bem. Eu gosto demais dos filmes do Calmon, acho que ele consegue ter uma certa identidade. Depois dos primeiros filmes (antes tem o Capitão Bandeira contra o Dr. Moura Brasil, que é uma coisa mais pretensiosa, uma coisa mais de cinéfilo), aí ele embarca mesmo no cinema de gênero, manipula a pornochanchada. Mas também de uma forma absolutamente libertária, filmes como Gente Fina É Outra Coisa, O Bom Marido. Poucos filmes brasileiros conseguiram ser tão amorais como O Bom Marido e Gente Fina É Outra Coisa, o empregado comendo as patroas... Uma verdadeira revolução social do pau, né? Eu gosto muito dessa fase do cinema dele. Mas talvez seja a primeira vez porque foi em 71. Em 71 talvez tenha sido o primeiro filme que não tenha tido o pudor de mexer com esse tipo de repertório. Como eu disse outro dia, isso começa pela minha profunda admiração por um cara chamado Roger Corman, que foi a base pra fazer esse filme. E foi a base pra aceitar fazer esse filme sobre um assunto com o qual eu não tinha a menor vontade de mexer, porque eu nunca me interessei por corrida de automóvel. Mas a proposta era fazer um filme pra criança, uma comédia e o meu co-roteirista, que é o crítico Jairo Ferreira, que escreveu Cinema de Invenção e foi meu assistente de direção e roteirista, no caso... Já tinha um roteiro, mas era muito ruim, então a gente só aproveitou a primeira metade. A segunda metade, como não havia condições financeiras pra fazer um filme up to date com corrida de automóvel... A primeira coisa que faltava era carro pra correr, então a gente era obrigado a improvisar cotidianamente. E antes de começar a fita a gente foi ver tudo que era filme a respeito de casais jovens, Sandra Dee, Bobby Perrin, Frankie Avalon, Annette Funicello, o pior do cinema comercial e o melhor também. Até os filmes do Blake Edwards, um filme com o jack Lemmon e o Tony Curtis, um clássico do Blake Edwards sobre corrida. Agora eu não me lembro o nome. [É The Great Race/A Corrida do Século, 1965. N. do E.]. Mas isso com uma puta consciência de que se estava lidando com Terceiro Mundo, miséria e falta de condições. Mas esse era exatamente o conceito. O roteiro que me foi dado já era um puta de um clichê, a escuderia rica, a escuderia pobre, tinha que dividir o prêmio, quem ia ficar com a filha do patrocinador, essa bobageira toda. Se acrescenta a isso a idéia do grosso daqueles filmes de turma de praia que fazia o Corman, e sempre de uma certa forma conseguia extrapolar. O curioso é que depois eu descobri que vários outros diretores fizeram filmes de corrida de automóvel, também. Entre eles David Cronenberg, Monte Hellman fez um filnme antológico, Two-Lane Blacktop. Se eu tivesse visto na época seria até mais decisivo ainda. Só fui ver há poucos anos atrás. É um filme sobre caras consertando carros, o tempo inteiro umas mulheres gostosérrimas e os caras discutindo motor de carro o tempo todo e as mulheres dando sopa. Filme com o Dennis Wilson, que é fantástico, eu sou um fã incondicional do Brian Wilson, pra mim é o grande gênio... Com o Dennis Wilson, o irmão preferido do Brian, o único irmão com quem ele se dava bem. Com o James Taylor... só cantores... eram três ídolos da época. E é um filme antológico. Um filme sobre motores. E com aquela assinatura do Monte Hellman mesmo. Parece que ele trabalha só a essência. Fazer western com dois, três atores... Foi um dos cineastas que foi bem importante ter conhecido alguma coisa no começo. Eu acho que é a partir daí, o cinema começa a existir a partir daí. Eu vivi muito o período underground mas eu não me considerava ainda cineasta. Pra falar a verdade, eu tinha mais afeição pelos filmes que eu fiz como técnico no período ou de uma certa forma tive um envolvimento como colaborador, por isso que eu marquei de propósito O Pornógrafo e o Orgia dio que os filmes que diretamente eu tenha feito. O que eu fiz é muito ruim. Mas a partir de Corrida nasce um cinema com uma assinatura, uma coisa que sempre me interessou que é trabalhar a narrativa, uma coisa que eu rejeitei muito naquele período do "vamos ver".

Digressão: cinefilia e Cahiers du Cinéma

O Carlão cinéfilo já existia naquela época?

Existiu desde os dezesseis anos de idade. Foi quase uma disputa com os colegas, quem assistia mais filme por ano. Eles não tinham muito pudor, a gente aprendeu a... É óbvio que foi muito importante no meio dessa coisa, o fato de fazer cinema, o contato com o Luís Sérgio Person. Ele ficou perplexo porque, por uma casualidade, não vou nem saber precisar por quê, eu era muito mais interessado no texto do que no próprio filme. Eu era assinante, talvez o único assinante no Brasil, da revista Film Culture, do Jonas Mekas... O Person caiu de quatro. E pediu uma informação, eu passei pra ele, e talvez tenha sido por isso que ele falou: "é o único cara daqui que vai ser diretor, da turma dele". E fui mesmo. Eu assinava o Cahiers du Cinéma, lia a Sight and Sound, e tinha a Film Culture. E foi espantoso, porque ele precisava de um... uma vez, a Film Culture publicou um catálogo de todos os filmes que tinham sido produzidos e que o Jonas Mekas distribuía. O famoso filme Creatures, do jack Smith, que é considerado o mártir do udigrudi. Mas naquela época eu já tinha essa dúvida. Eu exercia crítica no jornal de bairro. Tava com um pé entre a crítica e o roteiro até realmente passar pra prática. Eu acho que talvez o fato fundamental para ter passado à prática foi gostar disso. [momento incvompreensível]... mas o cinema é Nicholas Ray. Godard era fã de Nicholas Ray, Samuel Fuller então era fã de carteirinha. Claro que foi fundamental pra mim, pra minha formação e para a fdormaçãso dos meus parceiros, Carlos Alberto Ebert, João Callegaro, o Cahiers du Cinéma da década de 60, da época do Jacques Doniol-Volcroze. Que foi o momento mais inventivo, relamente o Cahiers tinha uma importância fundamental na cinematografia, na forma de cinematografia.

É um período que vai de 63 até mais ou menor 68.

É, acho que os anos 60, né?

Mas o Volcroze já estava antes...

Mas depois a revista teve formato maior, passou a se abrir mais para o cinema B, para as cinematografias de Terceiro mundo. Se via nitidamente que deixavam de ser os monstros sagrados.

É, realmente ela se abre...

Ela se abre. Toda essa fase, até entrar na fase Dziga Vertov... [Refer6encia à época dita maoísta da revista, quando deixou de ter uma periodicidade regular; coincidiu com o Grupo Dziga Vertov de Godard, daí a referência. N. do E.] Aí acabou a revista, por um bom tempo. Também tinha a função daquele momento, era uma outra coisa, um outro caminho. Mas aquele instante foi um instante de formação, mesmo. Essa geração toda é extremamente influenciada pelos Cahiers. Por mais que alguns cineastas hoje possam negar – Bressane vai negar de pé junto, o Rogério Sganzerla –, mas pode tirar o cavalo da chva. Nessa época eu convivia com essas pessoas, trocavam Cahiers como figurinha carimbada. Aliás eu tenho umas da coleção da época que sumiram na mão de uns colegas, inclusive um especial sobre o Skolimowski que nunca mias... Eu já precisei uma vez e não achava, aí eu lembrei "ficou na mão de um cidadão"... (risos)

Os ladrões de Cahiers não se revelam...

Não, não se revelam. Mas depois eu parei de assinar.

São Paulo exibia todos esses filmes? Dreyer, filmes japoneses?

Filmes japoneses vinham mais pra nós do que pra Europa toda. Era o segundo maior mercado de cinema japonês do mundo, o Brasil.

São Paulo principalmente, né?

São Paulo e o interior. As cidades do interior, como Presidente Prudente, tinham muita colônia.

Mas os filmes mudos, os filmes nórdicos, Dreyer...

Mais a nível de cinemateca. Por exemplo, demorou pra gente ver Gertrud, Ordet. Mas Ordet pode ver em qualquer momento, em 80 anos continuará sendo o maior filme da história. É o maior filme que eu já vi na minha vida. Tem que ter um olho lido pra poder amar Dreyer. Uma coisa de religiosidade, o filme tem uma ressurreição. Só o Dreyer pra conseguir filmar uma ressurreição. Como diz um amigo, é de assistir ajoelhado (risos). Mas é verdade que os clássicos eu passei a gostar mais recentemente. Hoje eu tenho um entendimento melhor pra ver Dias de Ira do que tinha naquele instante.

De volta à obra: Maturidade

Os seus filmes normalmente tem um caráter libertário, e é engraçado que o seu lado religioso não aflora.

É porque eu não tenho essa preocupação. Uma vez me perguntaram isso. O estrangeiro tem uma visão... foi a primeira pergunta que eles me fizeram quando eu estive na Holanda, por que que não tinha religião nos meus filmes. Porque pra mim é um problema resolvido. Se em 80% dos cineastas brasileiros esse problema não é resolvido é questão deles. Eles achavam que aquilo era marca registrada dos filmes brasileiros.

Mas no seu caso a religiosiodade é muito forte pessoalmente.

Mas é uma questão resolvida. Fui batizado em igreja católica, fui criado na igreja luterana, fui zen-budista... É um assunto que não me incomoda, na verdade. É uma questão resolvida. Eu acho que quando essas questões não são resolvidas elas afloram, não é verdade?

O desejo e a política nunca se resolvem...

Ou se resolvem, não sei...

É o que mais aparece, o desejo, a política e no momento cada vez mais memórias.

Sim, sim. Mas aí é que tá. Você perguntou da primeira fase. Essa é a parte talvez onde esse tipo de cinema nitidamente está em busca de uma linguagem própria. Isto eu acredito que vá claramente até Filme Demência. Minha obra muda em Filme Demência. Eu acho que ela dá uma virada do avesso. Vai até Extremos do Prazer, Extremos do Prazer é o último filme de um período cinematográfico. Embora tenham filmes que tenham isso muito mais resolvido, como Lilian M. Estou pegando a minha visão. Em Lilian M e O Império do Desejo essa questão está mais bem resolvida. São filmes mais radicais com essa coisa de lidar com o gênero no cinema, de lidar com a linguagem do cinema, uma coisa que sempre pra mim foi fundamental, que é a música como personagem. Esses filmes, exatamente por uma certa radicalidade, são mais bem resolvidos. Com Filme Demência a coisa dá uma virada do avesso como opção pessoal, mesmo.

Você acha que Filme Demência é o primeiro filme que já passa a ser de maturidade?

Não sei se de maturidade, mas um filme que nasce pelas tripas. De Corrida em Busca do Amor até Extremos do Prazer são filmes movidos pelo desejo, mas são exercícios, estão em busca da depuração de um estilo. Eu acho que a partir de Filme Demência os filmes nascem pelo estômago, pela necessidade de fazer. São filmes que nitidamente têm uma coisa a ser purgada. E aí sim eles passam pela experiência pessoal. Tanto que é o filme que eu mais gosto. Por ser o mais torto nesse sentido.

Engraçado, porque olhando as entrevistas antigas são três filmes que você fala serem o melhor filme, você fica cambiando; quando você lança Anjos do Arrabalde você diz que é o seu melhor filme; em certos momentos você fala que é O Império do Desejo; mas o mais constante é realmente Filme Demência...

Tem filmes que me agradam por algum motivo especial. O filme que me dá prazer de rever é Império do Desejo. Eu acho que é um exercício de liberdade como eu nunca tinha feito antes. É um filme que sempre me dá prazer de rever. Lilian M também tem um pouco essa coisa de saber que teve um filme feito com 10, 15 anos antes. Tanto que foi dez anos depois o filme que me levou pro mundo. Não foi descoberto no Brasil, ele foi descoberto fora do Brasil, pelo mesmo cara que descobriu todos os cineastas mais importantes hoje, o Hubert Bals, diretor de Roterdã. Descobriu de Fassbinder a Tarkovski a Wim Wenders a pessoas que inclusive estão sendo reconhecidas hoje, Atom Egoyan. Descobriu Krzysztof Kieslowski. Esse homem é um dicionário.

Hoje tem um prêmio com o nome dele lá em Roterdã.

Não é bem um prêmio, é uma grana que você recebe pra poder desenvolver, que era a idéia dele desde o começo. Era uma pessoa extremamente generosa, ele pegava dinheiro do festival. Por exemplo, ele deu grana pro Jarmusch terminar Permanent Vacation. Faltava cinco mil dólares pra sonorizar e ele deu o dinheiro. Falou "termina e traz o filme pro festival". Ele tinha esse tipo de postura. Ele sempre disse, "no dia em que você precisar de dez mil dólares, se resolver o problema pra terminar o filme, me avisa". No Brasil é mais caro, lá por cinco mil dólares você sonoriza um filme. Com mil dólares tira uma cópia, aqui custa quanto? Por isso eu tinha uma coisa com Lilian M. É um filme que sempre me dá satisfação de ver. É um filme que dá prazer. Eu me lembro que quando eu estava com o roteiro pronto eu mostrava pros amigos, mostrei pro Inácio Araújo, que é meu co-roteirista em vários outro filmes, e ele falou assim, "Você tá louco se você vai filmar isso". Eu falei assim, "Eu vou filmar isso" (risos). Ele não acreditava que aquilo fosse pra tela. Gosto muito de Alma Corsária, é um filme que nasceu de uma necessidade, eu tinha abandonado, voltei, aquela coisa. Foi um filme que foi construído e consolida uma idéia que me agrada muito, que é a idéia de cinema artesanal, trabalhar o mais sozinho possível. Meu projeto de cinema ideal é o cinema feito em casa

Você uma vez demonstrou a sua admiração pelo sistema de fazer filme do Éric Rohmer.

Sim, como estrutura, é a ideal. o Rohmer faz primeiro um filme em Super-8, todos os atores ficam ensaiadíssimos e depois roda um por um. Ele tem um sistema de produção que o produtor dá o dinheiro pra ele sobreviver. Ele também sobrevive da obra.

Ele é profundamente religioso, também...

Vou dizer a verdade, vou dizer que você está com uma opinião meio preconceituosa. É além disso. Eu digo o seguinte: essa questão da religião é aquilo que o Penderecki fala quando ele faz as missas dele, que ele mata na mosca. Ele falou que ele não está interessado na religião, ele está interessado no culto, no mistério e é por isso que a obra dele é sensacional, as missas dele são geniais. "Eu não estou interessado no dogma, pelo dogma eu não tenho interesse nenhum, eu não sou católico." Mas ele está interessado no mistério, isso eu acho do cacete. No ritual, entende, essas coisas. É uma grande cagada querer adaptar tudo aos tempos. O desaprender do latim. Por mais arcaico que possa parecer a idéia, essa cultura foi dinamitada, destruída, na verdade. O Murilo Mendes diz uma coisa genial: "Só é novo quem é antigo". Por isso que eu gosto cada vez mais de Dreyer, eu acho que mesmo naquela época, do cinema mudo, e da passagem do mudo pro sonoro, realizadores que são muito mais modernos do que uma cinematografia aparentemente moderna.

O Jean Vigo é um desses cineastas que não tem herdeiros.

Exato, exato. (...)

Em certos filmes seus, sobretudo da década de 70, trazem ressonância com um momento de época. Te compararam na Europa com o Fassbinder... E, aqui, pelo menos com um filme de uma cineasta que é a Ana Carolina, um filme que apesar de um estilo completamente diferente, mas que trabalham um pouco com a temática de Mar de Rosas, que tem certas semelhanças, colcar a questão sexual, da liberdade sexual, de jogos de guerra sentimentais. Isso era uma coisa consciente naquela época ou foi como uma busca pessoal isso?

Não. Pra dizer a verdade, eu só fui entender a comparação com o Fassbinder posteriormente quando o Bals terminou de ver Anjos do Arrabalde. Ao contrário do que se pensa, fui entender que gostava de melodrama só mais tarde. Mas pra mim isso não era uma coisa muito clara não. Eu achava que eu fazia um cinema completamente diferente, eu não tinha visto o cineasta que é o mais próximo do Fassbinder, o Douglas Sirk, que nunca foi um cineasta que particularmente me chamou a atenção. Até aquele momento. Era uma comparação que, vou dizer com toda a verdade, não ma agradava em nada. Mas era um cineasta que tinha um respaldo. E eu sempre disse isso, que se tinha um cineasta que tinha uma influência grande sobre a minha obra, sobre o que eu vinha fazendo de um momento pra trás foi o Valerio Zurlini. Zurlini é o cineasta que sempre me serviu muito de ponto de referência. Foi muito difícil chegar até ele, chegar a depurar a obra dele. Porque se o cinema dele se aproxima em alguma coisa do melodrama, aí eu aceito, a idéia do melodrama me interessa. Quando eu descobri que o cinema dele se aproximava do melodrama. Mas pra mim era muito mais a coisa da tragedia familiar, do cinema de sentimentos. E o Zurlini era um cara que curiosamente na Europa era muito mal valorizado, só está sendo valorizado agora. O que não há nada mais sintomático, porque eu fui aluno do Luís Sérgio Person, o Person foi aluno do Zurlini, tem uma coisa curiosa no meio desse processo. Eu posso dizer pra você que, desde o amor pela prostituta, algumas coisas em Lilian M, mas sobretudo com O Paraíso Proibido, que é tirado de um personagem quase zurliniano. O personagem do Jonas Bloch é quase totalmente arrancado de A Primeira Noite de Tranqüilidade, que é o cara que está de passagem pela cidade balneária fora de temporada, que tem essa coisa de trabalhar o sentimento. A gente mesmo nunca é a pessoal ideal para detectar a personalidade da obra. O João Carlos Rodrigues, que é um crítico de cinema, ele detectou um negócio que eu agora entendo, ele separou minha obra em filmes masculinos e filmes femininos. Ele dividiu a obra. E pra cada filme masculino se interpõe um filme feminino. Agora virou uma obrigação (risos).

Dois Córregos é um filme feminino, então?

Totalmente feminino. E é o filme mais próximo talvez do Zurlini, então por isso ele esteja surpreendendo algumas pessoas. Mas ao mesmo tempo as pessoas que amam a obra do Zurlini, como o Inácio Araújo, falaram, "agora você pode seguir o lugar e chegar" (risos). Porque é um filme que se aproxima muito de Verão Violento. De Verão Violento e A Moça com a Valise. Aquela coisa de trabalhar o lado político na periferia, uma coisa que está acontecendo lá fora e a burguesia tá vivendo uma coisa completamente diferente. (...) Precisam tirar da cabeça que o Zurlini não é um sub-Antonioni. Talvez o Antonioni é que seja um sub-Zurlini (risos). Mas como eu gosto dos dois, não posso nem brincar muito (risos).


A Cinefilia e a crítica

Mas o Antonioni lida muito mais com linguagem...


Mas a carreira do Antonioni fodeu, esmagou a do Zurlini. Se comparar, realmente, não tem nada a ver. No Antonioni foi uma falta de sentimento, no Zurlini só tem o sentimento. É o inverso.


Eu só vi
A Primeira Noite de Tranqüilidade, mas a influência do melodrama...


Nitidamente... Mas ele termina como o Fritz Lang, aqueles finais que só o Fritz Lang sabia fazer. Eu acho que o cinema contemporâneo, o cinema sonoro deve tudo ao Fritz Lang. Isso aí o Hitchcock já falava. O Welles deve ao Fritz Lang. Foi a grande escola. Se você for buscar você acha Fritz Lang nos melhores. Nicholas Ray, Samuel Fuller falam textualmente. A gente está redescobrindo um cineasta francês chamado Jacques Becker, eu consegui trazer a cópia do Le Trou da França e exibimos para mais de cinqüenta estudiosos de cinema numa aula de crítica cinematográfica que o Inácio Araújo deu, e foi um estado de... quem é este cara? Foi um dos maiores realizadores franceses. O filho não é tão talentoso, mas está aí fazendo filmes, o Jean Becker. Ele foi assistente, braço direito do Jean Renoir, e que fez antes de morrer uma obra-prima que o Truffaut dizia que era um dos filmes mais bem feitos da história do cinema. E eu assino embaixo, pra mim é um dos dez maiores filmes que eu já vi na minha vida. Le Trou, A Um Passo da Liberdade.


Eu não conheço, do Becker eu vi o
Grisbi.


Grisbi
, né? Desse eu tenho cópia. Não é grande coisa não, mas Le Trou é um filme de final de... Truffaut dizia isso bem claro, Truffaut detestava os cineastas antigos.


Apesar de um dos textos de base da Política dos Autores ter sido a crítica do
Ali Babá, em que ele fala que o pior Jacques Becker é ainda Jacques Becker.


Pois é, ele tem uma admiração, mas ele fala que Le Trou é o maior filme de Jacques Becker, e realmente é o filme de uma obra inteira. Acho que é um filme inclusive que define a obra do Jacques Rivette. Fica vinte minutos filmando o cara quebrando uma pedra! Fica o cara quebrando o assoalho e você não desgruda o olho da tela! Isso aí é coisa de gênio.


Acho que um detalhe fundamental que é assumidamente uma coisa... falei isso muito quando fui lançar Alma Corsária, eu sempre fui um apaixonado pelo cinema brasileiro. Sempre. Sem o menor preconceito contra o cinema brasileiro. O período mudo, a chanchada... Eu adorava os filmes do Luís Carlos Burle. Todo mundo fala do Carlos Manga, o Burle é que tinha o estilo. O Burle era um intelectual. O Carlos Manga não é exatamente um intelectual, mas o Burle é um intelectual. Fez um filme belíssimo, Também Somos Irmãos. Tinha uma coisa de formação e as chanchadas desse cara são muito especiais. Era inclusive uma tentativa de escapar da obviedade da chanchada, etc. E ao contrário, eu gostava de Mojica à Vera Cruz. Vera Cruz alguma coisa, na verdade. Gostava muito do Abílio Pereira de Almeida, que até hoje é um puta cineasta, que hoje está sendo redescoberto.


O Abílio dirigiu os primeiros filmes do Mazzaropi.


Foi. Eram ótimos, por sinal. Candinho, O Homem da Carrocinha, se não me engano [na verdade chama-se Sai da Frente. N. do E.]. Era um chofer de praça. Mas sobretudo Candinho, que é um belíssimo filme. Eu não tenho o menor pudor de dizer que a última parte de Filme Demência foi totalmente inspirada num filme chamado Chico Alves Não Morreu. O encontro com a cigana está nesse filme que foi dirigido por um mexicano no Brasil. Mas tem uma seqüência que eu vi quando criança que nunca me saiu da cabeça. O Chico Alves ia visitar uma cigana, a cigana lê a mão dele e fala pra ele tomar cuidado na estrada. Isso no meio do filme. No final do filme, tem um plano dele pegando a Via Dutra e tem uma panorâmica, coisa de gênio mesmo, uma panorâmica do carro dele em alta velocidade pela Dutra, a panorâmica termina com a cigana parada no meio da estrada. Não precisa falar mais nada. Um poder de síntese e de elipse. Começa a tocar a música e você já sabe que o cara se fodeu. Essa seqüência nunca saiu da minha cabeça, eu tinha pesadelos ao lembrar. Por muito tempo eu associei a imagem da cigana à imagem da morte. Eu tinha que tirar isso pra fora, e agora está lá (risos).


A gente estava falando de cinefilia, e o perfil de cinefilia mudou um pouco dos anos sessenta para cá...


Ah! Perdão. Bom, obviamente, cinema japonês.


É, você fala que não via tanto melodrama mas é engraçado porque a carreira inteira do do Mizoguchi é em torno dos melodramas.


Sim, mas eu entendo mais melodrama no sentido do cinema feminino, do chamado filme feminino. Não é tanto essa noção do melodrama, da tragédia. Ele trabalhava muito o lado do íntimo feminino. Essa coisa que o japonês tem que o ocidental não tem que é o respeito pela puta. Uma coisa impressionante. Havia outro cineasta que fazia filmes sobre prostitutas extraordinário chamado Yasuzo Masumura. Num primeiro momento mais do que Mizoguchi tenha influenciado Lilian M, por exemplo. Ele dizia uma frase antológica, e isso me serviu de base para desenvolver o roteiro de Lilian M, que em toda experiência importante, fundamental da vida feminina o sangue está presente. O parto, a menstruação, o rompimento da virgindade. Só um japonês tem uma cabeça dessa. Isso é um registro dos filmes dele, muito pouca coisa desse homem passou no Brasil. A primeira revista que descobriu foi o Cahiers, a obra do Masumura. (...)


Mas voltando à outra pergunta, a cinefilia mudou. Acho que tanto da parte do público, quanto da parte da crítica e da parte dos cineastas também. Vai-se cada vez menos ao cinema, isso vem sendo comprovado [nesse momento a fita acabou e a pergunta não foi registrada N. do E.]


Essa atividade cinéfila ficou confinada a alguns estados fora do eixo Rio-São Paulo. Mas o que eu acho que também faz muita falta é que o material estrangeiro crítico é muito ruim. Se a referência hoje é a revista Première, Studio, que são revistas comerciais, na verdade... Que são revistas que eu leio, óbvio, se você quer se manter informado, mas cujo padrão de produção, o padrão de qualidade está muito ligado ao cinema que dá lucro. Eu acho que tem um pouco isso também. De uma certa forma, essa desmistificação da política dos autores foi promovida pela crítica francesa e abraçada por alguns teóricos brasileiros, também, e estrangeiros. Isso contrbuiu muito para que sumisse, desaparecesse de certa forma uma certa sede de um cinema de qualidade, um cinema fora dos padrões normais. Você não tem mais o escrever sobre cinema, você não tem uma revista como a Film Cultura hoje, aquela revista que pregava o cinema experimental, e que tinha a sua importância, a coisa de resistência como tinha na época. Acabou no final da década de sessenta. O Cahiers parou quinze anos. E voltou com outro corpo. Tentativas esporádicas, a Trafic é uma revista muito legal, de reflexão cinematográfica, do Serge Daney, maravilhosa. Seria a substituta da Cahiers da época de sessenta, deve sair quatro vezes por ano. Mas tem um pensamento diferenciado. Se bem que o Cahiers mantém gente interessante que escreve, mas é aquela coisa, o cara começa a filmar, pára de escrever. O Olivier Assayas é um exemplo típico, começou a filmar... era um cara interessante, que descobriu o cinema de Hong Kong, descobriu King Hu, descobriu uma série de coisas. Eles não tinham nenhum contato. Eu conheci King Hu pessoalmente e o cinema dele, Um Toque de Zen [1972. N. do E.] é uma das coisas mais geniais já feitas na história do cinema nos últimos vinte anos. E nunca passou, por exemplo. Faz falta isso, você precisa desse material, senão fica uma coisa confinada... Esse espírito do crítico da aventura, da descoberta, isso aí foi praticamente perdido. Vingou uma preguiça, a coisa do jogo de poder, a crítica que faz o jogo do poder e não a que se aventura. Isso é mantido até por uma revista muito maldita, uma revista inglesa que até hoje continua, mas que faz muito esporadicamente chamada Frameworks, que é mantida quase heroicamente, com os teóricos mais radicais, que se interessa em descobrir a filmografia do Sri-Lanka, e esgota o assunto. Onde tem isso, entende? Nem vende. Mas eu acho que isso aí faz falta, essa matéria reflexiva. É o mesmo tipo de jornalismo que se faz hoje no mundo inteiro. Eu falo porque eu também escrevo crítica, colaboro com a Folha de São Paulo. O espaço que você recebe hoje para escrever é quase um terço do que você recebia antigamente. Trocou-se o ensaio pela crítica...


Pelo sorrisinho...


Não, nem pelo sorrisinho. Pela crítica rápida, urgente. (...) A coisa fica cada vez mais confinada. Tem uma revista no Brasil chamada Set, eram cinquenta linhas e já está em quinze. Daqui a pouco são cinco, daqui a pouco é uma linha só. E essa é a revista que vende setenta mil exemplares. O cinema brasileiro ocupa um espaço zero, à esquerda. A revista começou a melhorar com o Cristian Peterman e mandaram o cara embora. Você não tem mais o referencial. O cara que começa a gostar de cinema, que aprende cinema, que o incentivo que ele tem a fazer crítica? Eu me lembro que quando eu estudava na São Luís teve cara que entrou pra ser crítico, pra escrever sobre cinema. Isso existia. Vai ver quantos críticos uma escola de cinema forma hoje. E quem tem interesse? Fica com o jornalista, ele vai ganhar um bico, uma grana a mais se fizer uma crítica, um aumento do salário no final do mês. E é verdade, de um momento pro outro passou a ser exercida por repórter policial.


Geralmente os jornais do Rio têm um repórter de cinema e o resto dos críticos é repórter de outra área.


O repórter de cinema por obrigação tem que ser formado em Jornalismo. Não pode ser formado em Cinema ou em Rádio/TV. Tem que ter carteirinha pra poder escrever em jornal, e isso é um problema. O Cacá Diegues, recentemente, depois das críticas do Orfeu, investiu pesado contra a crítica e falou do tratamento diferenciado da visão que se tem do filme brasileiro e a visão de um filme estrangeiro. Por caminhos diversos eu concordo um pouco com ele, não por achar que tem que pensar no emprego das pessoas, mas por achar que quando você vê um filme brasileiro você percebe muito mais os detalhes do que no filme estrangeiro.


Muitas vezes é política da própria mídia. Você pega a Veja como exemplo, a revista semanal mais vendida do Brasil. Ela tem uma política de falar mal de filme brasileiro. É cultural dela. Se ela vai elogiar um filme, ela arruma um jeito de falar mal em algum momento. Eu não tenho o que reclamar, porque ela deu uma página pro Alma Corsária. Falou: é um herói, o cinema brasileiro feito por heróis. Aí você fala: puxa, até que enfim. Aí o final diz assim: mas... como todo filme brasileiro é um filme incompleto. Acabou, fodeu a crítica inteirinha. Ela faz questão. Comingo ela foi gentil. Mas o que ela fez com o Louco por Cinema, do André Luiz Oliveira... Botou três linhas, disse que o filme era uma bosta, execrável e que o júri do Festival de Brasília, que premiou, era incompetente. Ela não dizia nada, só isso. (...)
O futuro (do cinema brasileiro)

Relativamente ao que você considerou em grande parte seu público nos anos 70 e 80, que era o público C e D, que não vai mais ao cinema porque não existe mais cinema nos bairros de periferia, e também pelo cinema ter aumentado em grande parte o preço, nos anos 90 isso não existe mais. Você acha que isso diminui a possibilidade de os seus filmes dois seus filmes ou você acha que Dois Córregos é um filme que não vai sofrer com isso?

É um outro viés, acho que também mudou. Um dos motivos da fuga do espectador foi o aumento desmedido do preço de ingressos, o fechamento de várias salas, mas sobretudo e principlamente a entrada do filme pornográfico no Brasil. E aí não é uma crítica moralista, muito pelo contrário. Todo filme pornográfico entra no mundo todo em gueto. Na Holanda, que é o país mais liberal do mundo, ele foi confinado a gueto. Aqui, pela maneira como ele entrou, ele entrou com o dedo do americano mesmo de destruir o cinema popular, que era o único cinema brasileiro que dava dinheiro. Isso aconteceu em São Paulo com o cinema Art-Palácio, com o Cine Ouro, com o Cine Windsor, que eram pontos onde estreavam os filmes brasileiros e ficavam semanas e semanas em cartaz. Isso tentaram fazer com o Marabá, o que era pior. Aqui no Rio de Janeiro aconteceu com o Cine Vitória, que era o cinema mais popular que você tinha no Centro, o grande cabeça de lançamento que você tinha aqui, da Severiano Ribeiro. Tocaram filme pornográfico e destruíram o cinema. Volto a repetir que não é nem uma questão moralista, ele entrou de uma maneira desbragada, ele entrou de uma maneira autodestrutiva, niilista, suicida. Não é toa que 80% desses cinemas viraram templo depois. Nada mais sintomático. Isso pra mim foi o golpe mais sério. Mas assim como esse público mudou, os filmes mudaram também. Não tem muito mais sentido voltar a trabalhar com o repertório que eu trabalhava na década de 70, 80. Agora tem um novo tipo de relação. Não é você tentar tanto seduzir. Eu acho que o que marca o cinema brasileiro legal nessa década é que o filme brasileiro virou cultura de ponta. Graças a isso é que você está conseguindo trazer um público novo e reciclar cinema hoje no Brasil. E ai do momento em que você perder esse viés. Não é impossível se você encaminhar pra esse lado do cinema industrial, do cinema comercial. Isso hoje seria suicida.


Não tem como brigar.


Tem que acentuar cada vez que o filme é importante que ele seja visto, porque se você não viu o filme você vai estar por fora. O teatro está enxergando isso, a música esté enxergando isso. Não existe esse conceito de cinema industrial, isso sempre foi uma mentira. Em país de Terceiro Mundo não existe esse conceito de cinema comercial. Tudo que vingou aqui foi sempre pelo caminho do artesanal. Desde a época em que exibidor produzia filme com a chanchada. E diga-se de passagem o seguinte: o que sempre tornou o filme do cinema brasileiro rentável foi a parceria com o exibidor. Não dá pra esquecer que a chanchada foi 90% produzida por exibidor, produzida pelo Severiano Ribeiro, pela Atlântida. E a pornochanchada também. 80% dos filmes de pornochanchada tem parceria com os exibidores. Os três filmes que eu fiz com o Galante mais três que eu fiz à parte têm co-produção dos exibidores. Os mais diferentes possíveis. Represa Sul, Represa Havaí, a Paris Filmes, os donos da sala. Acho que isso é determinante. Esse público que se perdeu tem que resistir com o filme de ponta.


A última pergunta é em relação aos seus projetos. Pelo que eu li são dois projetos que seriam feitos antes ou depois do Dois Córregos, O
ABCD Clube Democrático e O Amigo Católico.


É, o Clube Democrático é um projeto de cinco filmes. SÃo quatro longas pra serem filmados simultaneamente. Está inclusive em captação do primeiro filme.


O Schwarzenega, não?
Aurélia Schwarzenega. Descobri que a mãe do cara chamava Auréila também (risos). Vou ser obrigado a mudar o nome. Uma coincidência tão... É que apareceu uma notíica que a mãe dele tinha morrido, Auréila Schwarzenegger. Eu nunca soube que era o nome da mãe dele, podia ser qualquer nome mas se chamar Aurélia... (risos)

E o filme que você ia fazer com os garotos da ECA agora que você saiu não vai mais acontecer?


A idéia era fazer alguma coisa usando o material que estava queimando na TV cultura e o negativo estava hipervencendo. Era um projeto que a escola tinha que ter um interesse também. Eu tenho muitos projetos, vários projetos. O mais importante é o primeiro. Eu não sou vítima de projetos, sabe aquele que fica, "ah, vai dar vinte anos e aquele filma não saiu, vou me trucidar", etc. e tal. O que existe de projetos prontos lá dentro, prontos inclusive para desenvolver, tem um projeto que se chama Sol Vampiro... Enfim, tem uma infinidade de projetos que eu tenho vontade de seguir. Mas eu volto a repetir, o que eu gostaria mesmo de voltar a fazer imediatamente é um filme de maneira totalemente artesanal mesmo. E pra isso tem até quatro projetos nessa forma, o que não é o caso de ABC. ABC é um filme de estúdio, TV Cultura, mas tem quatro, cinco projetos de filmes urgentes, filmes rápidos, filmes como O Chofer do Presidente, um que tem um título do cacete, Phoder com PH (risos), que é um filme que segue um pouco a filosofia de produção do Alma Corsária. Só vai ser começado a filmar quando já tiver a música pronta, sou eu mesmo que vou fazer, eu mesmo que vou fotografar, vou trabalhar com uma equipe reduzidíssima, muito aluno. O projeto que vier primeiro, a gente traça (risos).

entrevista feita por
Ruy Gardnier e Daniel Caetano
na última semana de maio/99

Nenhum comentário: