sexta-feira, 30 de setembro de 2011
01/10: Tartarugas Podem Voar (Bahman Gobadi, 2004)
Crítica: Tartarugas Podem Voar (Bahman Gobadi, 2004)
Extraído de http://cinema.cineclick.uol.com.br/criticas/ficha/filme/tartarugas-podem-voar/id/1070
Num acampamento de refugiados curdos, as pessoas se reúnem para ouvir as notícias da guerra. A figura central desse grupo é o carismático Satélite (Soran Ebrahim), um garoto que exerce a liderança entre crianças, jovens e adultos. É ele quem instala antenas nos povoados para que possam saber as notícias da guerra iminente. Além disso, lidera um grupo de crianças que vivem de "caçar" minas terrestres, instaladas por norte-americanos, e vendê-las. Dessa forma, o filme registra o caos em que essas pessoas vivem, o isolamento e a completa falta de informações. Nesse povoado também vive Agrin (Avaz Latif), uma garota cujo irmão, Hyenkov (Hirsh Feyssal), perdeu os braços, assim como grande parte das crianças da região, acidentadas nas minas espalhadas. Sempre com uma criança nas costas, que parece ser mais um irmão, Agrin perambula pela vila, atraindo a atenção de Satélite, que tenta, sem sucesso, a aproximação.
Há muitas crianças no povoado mostrado no filme. E elas parecem ter mais destaque do que os próprios adultos, a começar por Satélite, que parece ser o líder supremo na aldeia. A todo momento, Tartarugas Podem Voar mostra crianças vivendo situações adultas. Afinal, que tipo de infância é essa na qual uma menina é estuprada por soldados e tem filhos antes de chegar aos 15 anos? A inocência é roubada a todo momento pela guerra e a miséria em um lugar onde não há tempo para bonecas. Na TV, saem os videoclipes e entram os noticiários nos controles remotos controlados por mãos infantis.
Seria muito mais fácil se Tartarugas Podem Voar tomasse alguma posição política em relação ao conflito Iraque versus EUA, mas não é isso que o filme faz. Misturando dramas diretamente relacionados à guerra e algumas situações cômicas, o filme de Ghobadi simplesmente mostra um breve e delicado retrato do que realmente acontece por lá. Algo que não vemos nos noticiários. A tragédia rodeia todos os personagens e, paradoxalmente, há muita vida em cada um deles. Apesar de situar-se em um período e local específicos, Tartarugas Podem Voar também pode ser visto como o retrato de um microcosmo da guerra. Qualquer uma delas.
Programação Outubro 2011: Filmes com crianças como protagonistas
O Cine Clube Ybitu Katu exibe:
01/10: Tartarugas podem voar (Bahman Gobadi, 2004)
15/10: Kolya - Uma Lição de Amor (Jan Sverák,1996)
22/10: O Tambor (Volker Schlöndorff, 1979)
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
24/04: O Viajante (Abbas Kiarostami, 1974)
Longa de estréia de Kiarostami, o Viajante, conta uma brilhante parábola sobre um garoto em idade escolar, negligenciado pelos pais, que utiliza de quaisquer meios para viajar até Teerã e poder assistir ao jogo da seleção nacional de futebol. Duração: 70 minutos
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
03/09: Linha de Passe (Walter Salles e Daniela Thomas, 2008)
O filme conta a história de quatro irmãos que vivem na periferia de São Paulo. Com a ausência do pai, precisam lutar por seus sonhos. Reginaldo, o mais novo, procura obstinadamente seu pai que nunca conheceu. Dario, prestes a completar 18 anos, sonha com uma carreira como jogador de futebol profissional. Dinho, frentista em um posto de gasolina, busca na religião o refúgio para um passado obscuro. Dênis, o irmão mais velho, já é pai de um filho e ganha a vida como motoboy. No centro desta família está Cleuza, que, aos 42 anos, está grávida do quinto filho. Sandra Corveloni venceu o prêmio de Melhor Atriz no festival de Cannes por sua atuação neste filme. Duração: 113 minutos.
Crítica: Linha de Passe (Walter Salles & Danielas Thomas, 2008)
Empenhados por uma vontade iniciada com a parceria de Terra Estrangeira, Walter Salles e Daniela Thomas ciclicamente repensam o Brasil nas suas questões históricas e também nas urgências mais atuais. A consolidação de novos modelos de família e a luta pela sobrevivência diária na metrópole excludente são as mesmas situações que vemos camufladas em novelas das oito onde a mesa do café da manhã dos personagens menos afortunados representa uma fantasia de realidade que ridiculariza mais do que diverte. É bem diferente de vermos Cleuza (Sandra Coverloni) servindo o prato do filho enquanto os dois discutem, a carne chegando ao prato com a mão de raiva da mulher que mata vários leões por dia. Interessante que Sandra tenha ganhado o prêmio de melhor atriz em Cannes já que o verdadeiro personagem da história tem mais quatro pontas além dela, a mãe e seus quatro filhos formando uma unidade familiar contemporânea, ela sim o personagem completo e complexo que vemos ser desenhado nos conflitos individuais de cada um, na luta individual de cada um por pertencimento e aceitação, inserção social, a busca pelas raízes paternas, tudo finalmente entendido como a necessidade de vinculação, essa palavra perdida em cujo sumiço se esconde a depredação das relações humanas.
Desvinculados por vários fatores, seja de ordem social, geográfica ou monetária, Denis (João Baldasserini), Dario (Vinícius de Oliveira), Dinho (José Geraldo Rodrigues) e Reginaldo (Kaique de Jesus Santos, uma revelação e tanto) transitam pela cidade em busca de seus lugares. Nas viagens de Denis em sua moto a câmera e a montagem surpreendem com perspectivas quase verossímeis, e é dele também a cena que mais impressionou, quando ele tira o capacete e pergunta ao interlocutor rico e perdido: Cara, você tá me vendo? A explicitação do drama de ser invisível costurando todas as pontas do filme. Reginaldo, o filho mais novo, se envolve nesse drama ao escolher enxergar o pai em um motorista de ônibus para fugir da visível diferença que o separa dos irmãos pela cor da pele. Dinho prefere a via da resignação religiosa, via essa que não consegue lhe amparar na hora mais difícil de seu personagem. Dario, o orgulho da mãe corintiana não desmerece o nome de craque, mas tem o talento ignorado por uma verdadeira indústria de atletas na qual ele não consegue se encaixar apesar de tudo. Uma boa cena de Dario é a da falsificação da identidade, quando ao câmera foca a carteira sendo copiada e deixa em destaque a imagem do ator Vinícius, que na foto do documento é exatamente aquele garoto que conhecemos em Central do Brasil. Uma óbvia e sutil referência.
Congregando os quatro personagens, Cleuza trabalha contra o ritmo em que flui a sua vida com a mesma dificuldade com que lida com uma pia entupida, na árdua tarefa de manter visível a linha que liga cada um dos filhos ao pertencimento de grupo, de família. A simplicidade de sua interpretação sem afetações constrói a verdade fantasiosa de uma mulher real, que mesmo grávida transita por todos os espaços, o trabalho, o bar e o estádio de futebol lotado. E essa mesma gravidez, demonstração de uma vida sexual ativa, é o signo da feminilidade escondida sob a aparência descuidada de quem não tem tempo para vaidades e completa o universo de significações da personagem como mulher-total. E sob essa constatação é que Sandra Coverloni merece destaque pela construção de um personagem redondo que impressiona por quase não parecer um personagem ou parte de algo ficcional.
Os desfechos de cada um dos cinco parecem ressaltar isso, com finais de uma poética da realidade para todos, menos para Cleuza e Denis que são os dois personagens que caracterizam a maturidade em detrimento da juventude presente em Dario, Dinho e Reginaldo. Como se a concretude da vida tivesse tirado de Cleuza e Denis a capacidade de perseguir sonhos, por mais concretos que eles sejam.
Assim a parceira Walter Salles e Daniela Thomas deixa mais uma boa marca no cinema nacional, sem apelar para as velhas armadilhas do pitoresco, criando uma história cuja mensagem é universalmente inteligível. E mais uma vez, salvas a Sandra Coverloni e Kaique de Jesus Santos que formaram a dupla mais entrosada nessa bela linha de passes.