quinta-feira, 21 de abril de 2011

23/04: Persona (Ingmar Bergman, 1966)

Persona- Ingmar Bergman (1966)

Sinopse
Uma atriz teatral de sucesso sofre uma crise emocional e emudece. Para se recuperar, parte para uma casa de campo, sob os cuidados de uma enfermeira, que a admira e tenta compreender a razão de seu silêncio. Isoladas, as duas mulheres desenvolvem uma relação de forte intensidade emocional. Duração: 83 minutos.

Crítica: Persona (Ingmar Bergman, 1966)

por Rodrigo Carreiro
Extraído de http://www.cinereporter.com.br/criticas/homevideo/persona/

Com diálogos e monólogos inesquecíveis, filme é Ingmar Bergman no melhor da forma.

Era 1965 e o sueco Ingmar Bergman, já estabelecido como um dos maiores diretores de cinema do planeta, contraiu pneumonia. Internado num hospital por vários dias, ele viu a crise física se transformar em depressão profissional, quando passou a questionar a própria validade como artista. Naqueles dias de solidão, aproveitando o tempo livre para fazer uma reavaliação da carreira, Bergman começou a perceber que sua arte, tão elogiada, não contribuía em nada para mudar a humanidade. Foi a partir deste questionamento, da falta de fé no poder curativo da arte, que o cineasta concebeu aquele que se tornaria, para muitos fãs, o maior de todos os filmes que dirigiu: “Persona” (Suécia, 1966).

A crise de Bergman foi integralmente transposta para uma personagem inesquecível. Elizabeth é uma atriz de teatro, famosa e consagrada, que pára de falar no meio de uma apresentação da peça Elektra. Não há qualquer razão clínica para aquele silêncio. Ela simplesmente não quer falar. Ao ver que três meses de tratamento psiquiátrico não estavam ajudando em nada, a diretora do hospital decide mandá-la para uma temporada em uma ilha deserta, acompanhada apenas de uma enfermeira. A maior parte do filme se dedica a observar a complexa relação de amor e ódio que se estabelece entre aquelas duas mulheres, tão diferentes e ao mesmo tempo tão semelhantes.


“Persona” flagra Bergman no apogeu do talento como roteirista. Ele cria diálogos e monólogos inesquecíveis, sem ceder à tentação de explicar os personagens, analisá-los, psicologizá-los. A tarefa de decodificar os significados ocultos da narrativa onírica, de textura fantasmagórica, construída com a ajuda inestimável do fotógrafo Sven Nykvist, é exclusiva do espectador. Algumas seqüências, como a colagem de cenas soltas que funciona como uma abertura antológica, são responsáveis por emprestar ao filme uma aura imbatível de mistério. Cinéfilos se debruçaram durante décadas sobre as imagens de dor, prazer e morte construídas pela câmera impassível de Bergman. Elaboraram dezenas de teorias para esclarecê-las, e ainda assim elas continuam a conservar a aura essencial de humanidade própria dos melhores trabalhos do diretor.

Foi por causa de “Persona” que Ingmar Bergman passou a ser reconhecido mundialmente como o cineasta que melhor soube filmar o rosto humano. Graças ao trabalho esplêndido de Nykvist, que ilumina as cenas de forma magistral, usando fortes contrastes e recusando o naturalismo para expor sem reservas cada linha, cada sombra, cada poro das faces de Bibi Andersson e Liv Ullmann (ambas musas de Bergman e atrizes extraordinárias), o diretor sueco desnuda a alma das duas mulheres, ao mesmo tempo sem desvelar aquele componente inefável, invisível, que as torna essencialmente humanas. A seqüência em que os rostos das duas se fundem em uma face híbrida pode parecer inofensiva nos dias de hoje, mas na época era recebida com um misto de surpresa, excitação, horror e repulsa pelos espectadores. Talvez a cena seja a chave do mistério do filme – as duas mulheres, com seus traumas relacionados à maternidade, vistas como se fossem uma só.

A cena mais lembrada do filme, e talvez a mais extraordinária de todas, é o incrível monólogo de Bibi Andersson sobre uma orgia na praia, da qual ela participou, com dois adolescentes. É possível que seja a seqüência mais excitante e erótica de todo o cinema – e no entanto a câmera permanece estática, mostrando apenas as duas mulheres, durante oito longos minutos sem cortes. A história da farra sexual sobre a areia da praia é narrada de forma tão vívida e colorida, com tal riqueza de detalhes, que praticamente se torna possível ver as imagens da lembrança de Alma, e enfermeira. A força tas palavras é tão vibrante que cada espectador formula, sem perceber, um quadro mental completo com as informações dadas. O crítico Roger Ebert diz conhecer pessoas que juram ter visto a cena da orgia, e no entanto ela jamais foi filmada. Dá para contar nos dedos de uma mão os roteiristas capazes de criar imagens mentais tão poderosas.

Quando exibido nos cinemas brasileiros, o filme de Bergman ganhou o inacreditável título de “Quando Duas Mulheres Pecam”. Felizmente, a edição em DVD da Versátil eliminou a canhestra tentativa de tradução e resgatou o nome original da obra.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

16/04: Luz de Inverno (Ingmar Bergman, 1962)

Luz de Inverno - Ingmar Bergman (1962)

Sinopse
Após ler nos jornais que a China possuí a bomba atômica e pretende usá-la, um pescador vai à igreja, buscando palavras de conforto e consolo do pastor. Porém, este não consegue ajudá-lo porque está passando por uma crise de fé, temendo também o apocalipse nuclear. Realizado no apogeu da Guerra Fria, Luz de Inverno é uma amarga reflexão de Bergman, que teve como modelo o clássico O Diário de um Pároco de Aldeia (1950), de Robert Bresson. Duração: 81 minutos.

Crítica: Luz de Inverno (Ingmar Bergman, 1962)

por Rafael Lopes
Extraído de http://cinetoscopio.com/filmes/critica-luz-de-inverno/

”Se Deus realmente não existe, isso faria alguma diferença?”

Quando os sinos de uma igreja tocam, é sinal de que a missa está prestes a começar. Logo no primeiro minuto de filme, sinos badalam e o Padre Tomas (Gunnar Björnstrand) reza uma missa para poucos fiéis. Já de cara, o diretor expõe algo às vezes obvio: precisa-se realmente de uma missa para conversar com Deus? Porque ir a uma missa é uma obrigação e não algo de espontânea vontade? A fé é uma salvação ou um instrumento de proteção?

Os questionamentos vão surgindo. O padre rezando a missa para poucos fiéis é algo assolador, seria o fim do que se acredita santo? Seria o fim da fé? O filme se situa numa época conturbada da história, a Guerra Fria, mais precisamente no longo ano que foi 1962, por se tratar do ano em que as armas nucleares fizeram um grande boom no mundo. Era o ano em que a guerra nuclear era iminente, era o ano que as pessoas começaram a temer por sua existência, era o ano que Deus se esqueceu do mundo.

Ele tem uma amante, Marta (Ingrid Thulin), que a ama. Em um dos momentos mais espetaculares do filme, enquanto ele lê a carta que ela deixa, fica clara a associação inevitável dela com a pessoa de Jesus Cristo. As chagas na mão e o pedido de amor, uma vez que ela está doando seu amor por alguém, é onde o padre começa a se questionar sobre a veracidade de sua fé.

Ele mesmo sendo padre é primeiramente um ser humano, e está ali desempenhando uma função: pregar o evangelho. Só que ele guarda um trauma, o de se culpar pela morte da mulher, alguém que amou muito e agora só existe em lembrança. Porque ele não mais consegue sentir o mesmo amor?

O amor por esse ponto é algo que se renova como Jesus ressuscitou para renovar nossa fé. Mas ele não acredita nisso, é como se não acreditasse mais no amor, como se não mais acreditasse na fé que defende. Em um momento onde ele explica a ela sobre a dualidade que pode ser acreditar em Deus, uma vez que ele pode ser algo tenebroso e amedrontador, vingativo e em alguns sentidos perverso, como no Antigo Testamento da Bíblia; ou nesse mesmo tempo pode ser amoroso, complacente, capaz de mandar seu filho morrer por nós para provar seu amor, como no Novo Testamento, ele quer mostrar que Deus existe para cada um de formas diferentes, mas no fim, ele é um só. Deus é amor, e é nisso que ele existe. Mas quando não mais se acredita no amor, o que é Deus?

As estruturas do padre são mais abaladas quando um homem (Max Von Sydow), abalado pelo medo de viver a crise atômica, decide procurar o padre para pedir auxilio em sua angustia. O padre é ainda mais abalado que o pobre pescador, e isso culmina na sua própria morte. Como alguém que está ali para prestar um serviço de ajuda espiritual e não consegue nem ao menos ajudar um homem a tranqüilizar a mente? A partir desse momento ele sente o peso da batina, e sente também que não pode mais procurar a solução do seu problema na hora de rezar uma missa. Só que um padre também é humano, e sua fé dizia que os alicerces de sua fé estavam no amor que ele sentia pela esposa, e era onde ele enxergava o Deus bom. Com a morte dela e o declínio de sua paróquia, só pode enxergar o Deus cruel.

O que muito me veio à cabeça enquanto assistia a Luz de Inverno foi a pintura de Michelangelo , A Criação do Homem, onde o que seria Deus na pintura (com trajes rosados, lembrando que pode ser também uma figura feminina) e o lugar onde ele se encontra é o corte perfeito de um cérebro humano na metade. E como os artistas da época entendiam muito sobre anatomia, conseguiam deixar em mensagens o que queria dizer com seus desenhos. E nesse caso, Michelangelo quer dizer que Deus está na cabeça de cada um, e que cada um possui livre arbítrio para dar a ele a imagem que quiser. Ou seja, esqueça qualquer coisa que lhe tenham ensinado numa igreja ou num lugar onde Deus é motivo de obrigação e não espontaneidade. Você não ama sobre obrigação, ama quando sente que deve amar.

E esse não é um filme que diz que Deus não existe e que não se pode mais acreditar no melhor. Mas é um filme que te pede acima de tudo, para renovar sua fé e se desprender de qualquer dogma ou corrente que te aprisione e te obrigue a amar e a adorar aquelas estátuas, comer a hóstias e beber o vinho, ajoelhar, sentar e cantar. É um filme que diz para renovar aquilo que acredita e ter mais fé em si mesmo e no que julga ser a verdade. No fim das contas, é isso que Deus é. Fé.

Os questionamentos que surgem ao longo do filme sobre a existência ou não de Deus são a base para o argumento que rendeu esse belíssimo filme sobre fé. Falar sobre religião e ainda por cima sem se prender a um lado e sem criticar gratuitamente a religião em si é difícil, mas só um gênio como Ingmar Bergman para fazer tudo parecer tão fácil.

Filmando os olhos e tirando deles sinceras e destruidoras (no bom sentido) atuações, produz-se um filme intenso e muito realista sobre o poder da fé e sobre o seu significado, indo além do que seja Deus e suas lições.

Artigo: Ingmar Bergman e a Trilogia do Silêncio

por Roberto Acioli de Oliveira
Extraído de
http://cinemaeuropeu.blogspot.com/2008/01/ingmar-bergman-e-trilogia-do-silncio.html

"Agora vemos
em espelho e de
maneira confusa, mas
depois veremos
face a face"
Coríntios 13:11

Também conhecida como Trilogia da Fé, uma temática perpassa os três títulos: a impossibilidade de comunicação e o silêncio de Deus. Compõe-se de Através de um Espelho (1961-2), Luz de Inverno (1961-2) e O Silêncio (1962). Estes filmes apresentam algumas das temáticas obsessivas de Ingmar Bergman: a impossibilidade da comunicação, a religião e a morte. Qual será o destino de uma civilização que, ao mesmo tempo em que questiona suas limitações através da filosofia existencialista, inventa (e utiliza) a bomba atômica, desafiando o próprio Criador? Bergman resume a problemática da trilogia:

“Cada filme [da trilogia] tem esse momento de contato, de comunicação humana: na frase ‘papai falou comigo’, no final de Através de um Espelho; o pastor conduzindo a missa na igreja para Martha, no final de Luz de Inverno; o garotinho lendo a carta de Ester no trem, no final de O Silêncio. Um diminuto, mas crucial momento em cada filme. O que mais importa na vida é conseguir fazer esse contato com outro ser humano. Do contrário você está morto, como muitas pessoas hoje estão mortas. Mas se você puder dar esse primeiro passo em direção à comunicação, em direção à compreensão, em direção ao amor, então não importa o quanto o futuro possa ser difícil – e não tenha ilusões, mesmo com todo amor do mundo, viver pode ser diabólicamente difícil – então você está salvo. Isso é tudo que importa, não é?” (1)

Através de um Espelho se passa numa ilha isolada onde uma família se reúne na casa de férias. A filha Karin, uma esquizofrênica recém saída do internamento, acredita que Deus está atrás da porta do sotão, onde na verdade está uma pequena aranha. Suas dúvidas giram em torno da chegada ou não do Criador, que abrirá a porta e nos encontrará face a face. O título deste filme é uma referência à 1ª Epístola do apóstolo Paulo aos Coríntios (“Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas depois veremos face a face…”, Coríntios 13:11). Caridade, enquanto caminho para a verdade, é a inspiração de Bergman para mostrar a mudança de atitude de um pai - da indiferença ao envolvimento em relação aos filhos. Seu marido até que tenta, mas é ou sente-se impotente para resolver o problema. Digno de nota é o momento em que Karin encontra o diário onde seu pai descreve a evolução da doença dela e se coloca como mero espectador da deterioração mental de sua filha. Neste filme temos o tema do incesto, que os dois irmãos efetivam por iniciativa de Karin.

A partir de Através de Um Espelho a relação pessoal de Bergman com a fé termina. A santidade está dentro de cada um de nós, santidade que está neste mundo e não fora dele. O deus-aranha de Karin não é um acaso. Este filme afirma a tese de que todo conceito divino é obra humana, e sempre é um conceito monstro. Um monstro com dois rostos, deus-aranha. (imagem ao lado, atravessando corredores labiríntios e encruzilhadas, Johan, o pequeno filho de Anna, irmã de Ester; ele vaga pelos corredores do hotel enquanto sua mãe e sua tia se dilaceram; no meio do caminho dele, um grupo de anões saltimbancos e um funcionário de hotel mudo; abaixo, à esquerda, Martha; à direita, Ester; Em suas caminhadas, Johan olha pela fechadura do quarto de sua mãe quando ela está com um amante casual).


Em Luz de Inverno, em função da possibilidade da China detonar uma bomba atômica, um suicida não consegue acreditar na existência de Deus. Só que o pastor da aldeia (chamado Tomás, o que evocaria outro apóstolo) não consegue ajudá-lo, pois ele próprio passa por profundo questionamento de sua fé. Viúvo, o pastor também não consegue amar novamente, ou entregar-se novamente – “quando ela morreu, eu também morri”. Uma mulher, Martha, que também não acredita em Deus, mas continua freqüentando a igreja como ele, o ama com força – uma força que ele não tem mais. O problema dela é que não consegue expressar seu sentimento, tomando atitudes que o fazem odiá-la. Apenas no final do filme alguma possibilidade de amor emerge. Os dois estão na igreja vazia para a missa das três horas da tarde, ninguém veio. Ao contrário do que alguns fariam, ele não se retira, ele reza a missa para ela. Em entrevista, Bergman esclarece que seu objetivo foi estabelecer este ato como o primeiro passo do pastor descrente em direção ao sentimento, ao aprendizado do amor. Somos salvos não por Deus, mas pelo amor. Diante de todas as negativas do pastor, Martha percebe que não existe amor entre eles, mas ela persiste: “supliquei uma missão na vida e puseram você em minhas mãos”. Então, após uma conversa onde Tomás destrói com palavras cruéis todas as esperanças de Martha, ela tira os óculos, enxuga as lágrimas e olha para ele:

Tomás – Pode olhar o quanto quiser. Eu agüento.
Martha – Eu mal enxergo sem os óculos. Você está indefinido e seu rosto é apenas uma bolha branca. Você não é real (2). Compreendo que cometi um erro. Desde o princípio.
Tomás – Tenho de ir embora. Preciso falar com a senhora Persson.
Martha – Eu me enganei. Cada vez que senti ódio por você, me esforcei por transformar esse ódio em compaixão. Senti pena de você. Estou tão habituada a isso que não posso mais odiá-lo. O que será de você sem mim?
Tomás – [indiferente] Ora!
Martha – [desvairada] Não, você não vai poder viver assim. Meu queridinho Tomás, você vai afundar. Nada vai poder salvá-lo. Você morrerá à força de tanto se odiar.

De volta à paróquia, Tomás percebe nos comentários do sacristão o enigma de seu sofrimento. Tudo foi destruído, seu casamento, sua fé. Mas essa é a oportunidade para semear novamente. “Se uma pessoa é crente, pode dizer que Deus fala com ela”. (…) “Nesse caso é indiferente se Deus se mantém calado ou se pronuncia” (3). Um detalhe pouco comentado neste filme é o corpo do sacristão. Ele anda meio torto, como um corcunda, um quasímodo – mas eu não conheço comentários de Bergman de que fosse intenção sua sugerir esse personagem como uma espécie de Corcunda de Notre Dame. O comentário do sacristão foi o seguinte:

Sacristão – A paixão de Cristo, Seu sofrimento. Não acha que é um equívoco enfatizar Seu sofrimento?
Tomás – O que quer dizer ?
Sacristão – Enfatizar a dor física. Não pode ter sido tão ruim. Posso parecer presunçoso, mas humildemente digo que sofri tanta dor física quanto Jesus. [o sacristão vinha se queixando de dores nas costas] E Seus sofrimentos foram breves. Duraram umas 4 horas, certo? Sinto que ele sofreu muito mais em outro aspecto. Talvez eu esteja errado. Mas pense em Getsêmani, pastor. Todos os discípulos de Cristo adormeceram. Eles não haviam entendido o sentido da última ceia. Quando os guardas chegaram, eles fugiram e Pedro O negou. Cristo já conhecia seus discípulos há três anos. Eles conviviam dia e noite, mas nunca entenderam o que Ele pretendia. Eles o abandonaram, todos eles. Ele ficou totalmente sozinho. Isto deve ter sido um grande sofrimento. Perceber que ninguém o compreende. Ser abandonado quando precisa contar com alguém. Isto deve ser extremamente doloroso. Mas o pior ainda estava por vir. Quando Cristo foi pregado na cruz, em meio ao sofrimento ele gritou: ‘Deus, meu Deus! Por que me abandonastes?’ Ele gritou tão alto quanto podia. Ele achou que Seu pai o havia abandonado. Achou (4) que tudo que havia pregado era mentira. Nos momentos que antecederam sua morte, Cristo teve dúvidas. Certamente, aquele deve ter sido seu maior sofrimento. Deus ficou em silêncio.

Em O Silêncio, Deus se “mostra” em sua ausência, a incomunicabilidade entre as pessoas é o que resta. Duas irmãs viajam de trem juntamente com o filho de uma delas. Existe uma insinuação de incesto entre as duas, mas isso não evita que elas mantenham um clima hostil entre si. Bergman esclarece esse ponto em 1964: “Ester ama sua irmã, acha ela bonita e sente grande responsabilidade por ela, mas seria a primeira a se horrorizar caso seus sentimentos fossem considerados incestuosos. Seu engano está no fato de que ela deseja controlar sua irmã – como seu pai a controlou através de seu amor por ela. Amor tem de ser aberto. De outra forma Amor é o começo da Morte. É isso que estou tentando dizer”.

Ester, lingüista de profissão, sem filhos e solteirona, entra noutra crise de sua bronquite crônica e está próxima da morte. Já estão num quarto de hotel, e sua irmã abandona para buscar aventuras sexuais (amorosas?) com desconhecidos. A impossibilidade da comunicação: de um lado, uma mulher doente da via respiratória que também é a via da palavra, que, apesar de ter como profissão os significados da linguagem, não consegue traduzir seus sentimentos em palavras – ou nas palavras corretas; do outro lado, uma hedonista autocentrada, que se perde num comportamento obsessivo em relação ao sexo (ao desejo?). Enquanto isso, as irmãs trocam palavras em seu ensurdecedor silêncio. Bergman ao mesmo tempo mostra a falta de ternura nas relações e a busca dela como a única saída num mundo sem Deus, ou sem fé em Deus, ou sem fé de qualquer forma em qualquer coisa. De cama após a última crise, Ester fala para o garçon (e não sabemos se ele vai compreender) sobre seus tortuosos sentimentos:

“Tecido erétil. É tudo uma questão de ereções e secreções. Uma confissão antes da extrema unção: Acho o cheiro do sêmen horrível. Tenho o olfato muito aguçado e eu fedia como peixe podre quando estava fértil. É opcional. Não queria aceitar meu desprezível papel. Mas agora é solitário demais. Tentamos tomar atitudes e as achamos inúteis. As forças são muito fortes. Quero dizer as forças, as forças horríveis. É preciso ter cuidado com os fantasmas e as lembranças. Para que isso? Não adianta discutir a solidão. É perda de tempo”.

Enquanto tudo isso acontece, o menino pesquisa seu próprio labirinto no labirinto dos corredores vazios do prédio. Os únicos outros habitantes do hotel são anões de uma trupe teatral. Estes anões falam em espanhol, mais inteligível para nós brasileiros que o sueco utilizado no filme inteiro. Idioma nórdico que, por isso mesmo, poderia funcionar para nós como uma metáfora dessas fronteiras da compreensão mútua que a todo o momento tentamos expandir – mesmo que não confessemos a ninguém. Existe um garçom idoso que fala mais do que todos no filme, só que sua linguagem murmurada é incompreensível, e ainda assim é o único a se comunicar com quase todo mundo. Ele lembra o sacristão de Luz de Inverno, não porque seja manco ou corcunda. Desta vez, Bergman colocou a lucidez do personagem na constatação de que não é o fato de viverem em mundos diferentes que leva as pessoas a não conseguirem se comunicar.

A trilogia parece apontar para a salvação da solidão pelo amor, mas Bergman não acredita que isso seja possível. Restariam-nos apenas alguns momentos de iluminação, quando os personagens conseguem perceber a si mesmos (5).

Notas
1. Bergman em entrevista a Playboy, em 1964.
2. Existe uma pequena diferença entre as traduções dos diálogos a que tive acesso. Nas primeiras duas frases, utilizei a tradução presente na edição em dvd da Versátil Home Vídeo (2005); a partir da frase que segue, a fonte é o livro de Bergman, Imagens. Tradução Alexandre Pastor. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Pp. 267-8.
3. BERGMAN, Ingmar. Op. Cit., pp. 269.
4. Na tradução do dvd da Versátil, aqui lemos a palavra “acho”. Decidi colocar a palavra “achou” porque acredito que o sacristão estivesse se referindo à opinião de Cristo, e não à sua própria.5. Op. Cit., nota 1.

sábado, 9 de abril de 2011

09/04: Morangos Silvestres (Ingmar Bergman, 1957)

Morangos Silvestres - Ingmar Bergman (1957)

Sinopse
Morangos Silvestres conta a história de um médico e professor aposentado, Isaak Borg , que aos 78 anos será homenageado com o título honorário da Universidade de Lund, sua cidade natal, a qual abandonara em favor de Estocolmo. Desde a véspera até a chegada em Lund, Borg é invadido por recordações do passado que confrontam o seu presente. Sonhos, devaneios e flashbacks conduzem-no a um mergulho no inconsciente, fazendo-o perceber que seu temperamento áspero e distante impossibilita o envolvimento afetivo com familiares e amigos, protegendo-o do sofrimento e, por outro lado, isolando-o. A constatação da velhice e solidão trazem a presença iminente da morte, incitando-o a repensar sua vida durante o percurso que faz até Lund. O desencadeador dessa viagem introspectiva é o sonho que teve na noite anterior à partida para a sua celebração. Duração: 91 minutos

Crítica: Morangos Silvestres (1957)

por Sindicato dos Cinéfilos
Extraído de http://sindicatodoscinefilos.wordpress.com/2010/10/05/morangos-silvestres-1957/

A obra de Ingmar Bergman já se encontra inscrita no cânone cinematográfico. Tal qual Machado de Assis ou Fiódor Dostoiévski para a literatura universal, só para citar dois exemplos, a produção bergmaniana é preciosa para o cinema. Sua filmografia é vasta, mas se tivéssemos de resumi-la em uma única palavra, talvez a melhor fosse: interiores. Daí, pode-se desdobrar o que configura a grande busca do diretor: o entendimento do que se passa no coração dos homens, a angústia que qualquer um tem diante da existência e de sua finitude, as incongruências da vida a dois, o silêncio que paira, latente e lancinante, entre os homens, ainda que se fale muito e se dialogue muito. Temas universais, como se vê, ainda que quase toda sua obra tenha sido filmada na longínqua Suécia.

No caso de Morangos Silvestres, a chave para que se penetre no longa não está presente desde seu título, um tanto obscuro, mas interessante. O interesse de Bergman no filme é flagrar a memória, uma das mais importantes ferramentas que um indivíduo tem, pois se trata de uma aliada do conhecimento.

A memória específica de que o sueco fala no filme é a de um professor de idade avançada, que tem um prêmio importante para receber na cidade onde morou, por sua contribuição como docente e como médico. Para chegar ao local da honraria, toma seu carro, e para lá segue com sua nora. No caminho, é tomado por lembranças de episódios de sua longa vida. Lembranças boas e ruins, que trazem à boca e ao coração gosto de mel ou de fel, como ocorre com qualquer indivíduo. O mergulho feito pelo personagem em suas memórias é acompanhado pelo espectador, que flagra a infância do personagem, na qual ele costumava colher morangos silvestres, o que justifica o título dado ao filme. O idoso relembra festas, diálogos, pessoas, cores, sabores, texturas e emoções que o atravessaram ao longo do tempo.

Ainda que em preto e branco, a história é contada com belas imagens, e num ritmo lento para os padrões contemporâneos. Lentidão que cabe às recordações de alguém que já não tem mais seus vinte anos. E vale lembrar também que o longa foi rodado no distante ano de 1957, época em que Bergman dirigira outra pérola: O Sétimo Selo. Apesar de longe no tempo, o cinema de Bergman não ficou datado. Suas questões são ainda atuais, pois o ser humano é sempre ser humano, em qualquer lugar ou momento histórico.

Os filmes do cineasta evocam todo tipo de discussão: filosófica, existencial, psicanalítica. A preocupação aqui não é enveredar por nenhum desses caminhos, mas apenas descrever o êxtase gerado pela contemplação de pequenas epifanias de alguém que já percoreu uma extensa trajetória, o que Bergman faz como poucos. Ele desnuda o humano, expondo suas fragilidades, tendo a câmera como cúmplice. É como se, em certa medida, o espectador também fosse desnudado, a partir da identificação que tem com as cenas apresentadas.

São esses fatores que, somados, dão beleza, graça e vitalidade a Morangos Silvestres. É cinema autoral, que não se faz preocupado em arrebatar grandes platéias, e que deleita olhos enfadados de efeitos visuais escalafobéticos. Um cinema que se faz sem traço algum de maniqueísmo, sem a preocupação de se colocar um herói e seu antagonista. Até porque, sabe-se muito bem, nós mesmos podemos ser nossos maiores inimigos.

Assistir ao filme é tarefa obrigatória. Mas é uma obrigação que e cumpre com extremo prazer por aqueles que se interessam por vislumbrar a dimensão do humano, e que desejam compartilhar, ainda que pela simples contemplação, a dúvida sobre o sentido da vida, a maior inquietação que temos.