quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
26/02: A Antena (Esteban Sapir, 2007)
Crítica: A Antena (Esteban Sapir, 2007)
Extraído de http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=4561
Inspirado no longa argentino Esperando o Messias (2000), de Daniel Burman, Jean-Claude Bernardet concluiu, parafraseando um amigo, que “os argentinos dão um banho nos brasileiros” (Revista de Cinema, fevereiro de 2003, republicado em Bernardet, Cinema Brasileiro: Propostas para uma história, São Paulo: Cia. das Letras, 2009, p. 256-8). Segundo o crítico, o fato de Esperando o Messias ser um filme médio “é a prova de que a Argentina tem produção média viva e inteligente, o que assinalam também outros filmes, como Nove rainhas ou O filho da noiva” (Bernardet, 2009, p. 256). Esse “banho”, continua Bernardet, deve-se em grande parte à forma da narração (2009, p. 256-7). O crítico identifica oportunamente um “enrijecimento da narrativa cinematográfica” em filmes de primeira linha do cinema brasileiro. “A ponto de podermos falar hoje na existência de um parnasianismo cinematográfico brasileiro. São parnasianos filmes como Abril despedaçado, Uma vida em segredo, Através da Janela (...).” (Bernardet, 2009, p. 257). Ainda segundo Bernardet, tais títulos “[s]ão filmes mortos porque ficam se regozijando com sua elaboração formal e ficam contemplando, maravilhados, a sua beleza” (2009, p. 257-8). O crítico sentencia: “Joguem fora seus storyboards. Injetem menos talento e mais vida nos seus fotógrafos e diretores de arte” (Bernardet, 2009, p. 258).
Numa comparação do cinema argentino de caráter fantástico, de fantasia ou ficção científica, com o equivalente brasileiro, o tal “banho” salta ainda mais aos olhos. Difícil pensar num filme como La Antena (2007), de Esteban Sapir, produzido no Brasil. Abusado demais, arriscado demais... criativo demais.
La Antena é uma fábula distópica em que os habitantes de uma cidade fictícia perderam a voz há duas décadas. Ninguém fala ou emite som algum. Os citadinos alimentam-se de TV, literal e metaforicamente, e sua voz serve de matéria-prima para a indústria do Sr. TV (Alejandro Urdapilleta), soberano da metrópole. Mas os recursos vêm se esgotando rapidamente, e o Sr. TV precisa d’A Voz (Florência Raggi) para sugar as palavras das pessoas e, com isso, continuar reinando em seu negócio. O Sr. TV aprisiona A Voz e, com a ajuda do Dr. Y (Carlos Piñeiro), usa a mulher numa máquina que emite mensagens subliminares. O objetivo é, também, aumentar definitivamente o consumo dos produtos TV. Mas o Sr. TV não contava que, com a ajuda de uma família de heróis, uma “segunda voz” entrasse em cena.
La Antena é um amálgama de influências que entabula uma série de citações diretas a obras mais ou menos famosas da história do cinema. A primeira influência, talvez a mais evidente, é Metropolis (1927), de Fritz Lang. As citações do filme alemão podem ser conferidas na paisagem urbana, no som visualmente sugerido, nas diversas montagens de imagens sobrepostas (chroma key), evocativas – guardadas as devidas proporções – do Processo Schüfftan. Uma passagem como o plano dos olhos multiplicados, quando os burgueses de Metropolis observam avidamente a dança da falsa-Maria, é reproduzida em La Antena. O Sr. TV e seu filho são análogos a Joh Fredersen e Freder em Metropolis, o Dr. Y é Rothwang e a homenagem ao filme de Lang é sacramentada na seqüência do experimento com “A Voz”.
O trabalho da direção de arte em La Antena, assinado por Daniel Gimelberg, é primoroso e, de acordo com o making-of do filme, disponível nos extras do DVD, fica clara a intenção de homenagear uma história dos efeitos especiais, com a emulação de alguns efeitos ópticos por meio de ferramentas digitais.
O roteiro de La Antena é razoavelmente confuso, e só em algumas seqüências excluídas do corte final, disponibilizadas nos extras do DVD, é que compreendemos determinadas ações e motivações dos personagens. Porém, a julgar pelo depoimento de Sapir no making-of do filme, a narrativa de La Antena foi muito mais baseada em sensações, impressões e atmosferas do que na progressão linear de um roteiro conservador. Falar em lógica, neste caso, seria um tanto quanto ocioso. De toda maneira, a despeito de quaisquer defeitos, La Antena é “um filme vivo, feito com as vísceras” – parafreaseando Jean-Claude Bernardet a respeito de Bicho de Sete Cabeças (2009, p. 258). Somando-se La Antena a La Sonámbula (1998) e Adiós Querida Luna (2004), ambos de Fernando Spiner, e ainda Moebius (1996), de Gustavo Mosquera, o cinema fantástico argentino contemporâneo ganha “de lavada” do equivalente brasileiro.
Falta no cinema brasileiro a mesma familiaridade com o trato do tema fantástico observável na Argentina, a mesma arte do improviso, sujeição ao arriscado – enfim, a mesma ousadia de fazer filmes “médios”, porém inspirados porque cheios de vida.
Assita AQUI ao trailer de A Antena.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
19/02: Mistérios e Paixões (David Cronenberg, 1991)
Crítica: Mistérios e Paixões (David Cronenberg, 1991)
Extraido de http://www.contracampo.com.br/69/misteriosepaixoes.htm
E o centro oculto do filme, aquilo que se instala sub-repticiamente e vai aos poucos dominando de forma completa, é o ato literário, o acesso ao escrever como acontecimento na vida de uma pessoa, e esse acontecimento não como dom, mas como vício, como praga e como doença (característica pregnante em todo cinema de Cronenberg) que, uma vez instalados, só farão prescrever suas rotinas sobre os corpos de seus hóspedes. Se a "clivagem temática" de Cronenberg a que nos referimos no começo existe, é porque agora o "corpo estranho" não se insinua mais no terreno da ficção fantástica, mas daqui em diante opera nos delírios mentais do cotidiano, nas relações com nossos objetos de predileção, nossas obsessões corriqueiras. Nada glamourosa ou chique, a literatura em Mistérios e Paixões é a última provação, é a matéria insidiosa e viciante que arremessa nosso personagem-escritor no mundo das alucinações paranóicas, um universo estranho em que nada é o que parece, e tudo aquilo que não é central pode funcionar como desvio de atenção. O foco, o foco: escrever relatórios. É a partir desses relatórios e de coisas prosaicas como uma relação muito particular com máquinas de escrever que nasce o tecido literário, que inconscientemente ao próprio artista brota o livro, que de um relato a partir da vivência surge a matéria da escrita por si mesma. O mesmo lance de dados jogado até o final: como gesto que inaugura sua viagem (em sentido figurado e em sentido próprio), é preciso que William Lee repita Guilherme Tell para provar seu ofício de escritor.
Artigo sobra a obra de David Cronenberg
http://www.bocadoinferno.com/romepeige/artigos/cronen.html
O Inicio
David Paul Cronenberg, nasceu no dia 15 de março de 1943 no Canadá. Por ser filho de um jornalista freelance e uma pianista, teve influências na sua entrada no mundo das artes (tocava violão clássico aos 12 anos) e escrita (publicando alguns contos curtos ainda novo), mas sempre mantendo um crescente interesse nas ciências, especialmente em botânica e lepidopterologia (estudo das traças) até que em 1963 entra na Universidade de Toronto como estudante de Ciências, mas um ano após resolve mudar de curso, para literatura, onde recebeu um prêmio honorário da Universidade. Em 1965 Cronenberg fica impressionado com o filme “WINTER KEPT US WARM” de seu colega de classe David Secter, que por sinal foi o primeiro filme canadense em inglês a ser apresentado no festival de Cannes, e se interessa pelo ofício de cineasta e aprende os primeiros passos. Fez duas películas de orçamento zero em 16mm (Transfer e From the Drain) e, inspirado pela cena de filmes underground de Nova York, funda a Toronto Film Co-op junto com Iain Ewing e Ivan Reitman (diretor de OS CAÇA FANTASMAS). Após um ano viajando pela Europa e estagiando em uma TV francesa, Cronenberg retornou ao Canadá e graduou-se como primeiro de sua classe em 1967. Para a sorte de Cronenberg no final dos anos 60, o governo canadense funda Canadian Film Development Corporation (CFDC) para estimular a produção de filmes “não documentais” no país e após a produção do filme de ficção científica STEREO (1969), Cronenberg torna-se um dos primeiros cineastas a utilizar financiamento da CFDC, sendo que sua primeira realização nesta fase foi “CRIMES OF THE FUTURE” (também em 1969), um filme sobre a exploração experimental e surreal da sexualidade, marca que seria freqüente nos próximos filmes do diretor. Após estes dois filmes, Cronenberg deixou as veias experimentais e decidiu que queria ampliar seu público.
O Rei Do Horror
De 1970 até 1973 o diretor trabalhou em curtas para uma televisão local, até que em 1975, com produção de Reitman, Cronenberg dirige seu primeiro trabalho para o cinema, CALAFRIOS (Shivers), que entre uma sutil mistura de A NOITE DOS MORTOS VIVOS (1968) com VAMPIROS DE ALMAS (1956) conta a história de pessoas comuns em um condomínio e que são infectados por parasitas, se tornando gradualmente em um bando de maníacos tarados por sexo. Este primeiro trabalho dividiu as opiniões dos críticos: Os mais moralizadores condenaram-no por conter excessos de sexo e sangue, outros (a maioria da Europa) consideraram-no como um ataque a burguesia, já que em sua visão, os parasitas poderiam ser considerados como anarquistas e ainda hoje é considerado como um dos filmes mais nauseantes já criados. O fato é que entre detratores e elogiadores, Cronenberg ganhou notoriedade no cenário underground e faria mais dois filmes financiados direta ou indiretamente pela CFDC e com temática parecida, que rotulariam o diretor como “O Rei do horror Venéreo” e “Barão do Sangue”: ENRAIVECIDA NA FÚRIA DO SEXO (Rabid, 1977) e FILHOS DO MEDO (The Brood, 1979), que junto com CALAFRIOS formam uma espécie de trilogia áspera sobre as evoluções físicas do corpo humano que podem derrubar a civilização da forma como a conhecemos. ENRAIVECIDA… Teve uma repercussão maior por trazer no elenco a atriz pornô Marilyn Chambers (se bem que a primeira escolha do diretor foi uma jovem atriz então desconhecida chamada Sissy Spacek) e projetou Cronenberg para o mercado internacional.
O primeiro filme de David Cronenberg que pode ser considerado um blockbuster foi SCANNERS – SUA MENTE PODE DESTRUIR (Scanners, 1981), filme de tamanho impacto para a época que trouxe o nome do diretor para o mainstream, o próprio Cronenberg afirmou que era um passo diferente em sua carreira. A história sobre uma conspiração liderada por um telepata homicida tem aspectos técnicos excelentes e conta com um inspirado Michael Ironside no papel do vilão Darryl Revok, mas sem dúvida será lembrado para sempre por sua clássica cena da cabeça explodindo, embora o final do filme não tenha agradado ao diretor. O filme foi o único de Cronenberg que gerou uma franquia (cinco filmes no total, todos inferiores e um remake anunciado).
Dois anos depois, o sucesso causado com SCANNERS amornaria um pouco com seu filme seguinte, VIDEODROME – A SÍNDROME DO VÍDEO (Videodrome, 1983), por ser um pouco incompreendido para a época. A mensagem subliminar sobre até onde a tecnologia pode chegar e alienar seus usuários (especialmente a TV) soa mais atual do que nunca, além de ser uma história envolvente, sangrenta e com forte apelo sexual, como a maioria de seus filmes anteriores. Curiosamente este foi o primeiro filme de Cronenberg financiado através de um grande estúdio, a Universal Pictures. Já no ano de 1983 Cronenberg partiria para uma produção mais dentro dos padrões hollywoodianos, dirigindo A HORA DA ZONA MORTA (The Dead Zone), baseado no livro homônimo de Stephen King. Com um orçamento de 10 milhões de dólares (4 milhões a mais que VIDEODROME) e um elenco de peso, o filme foi bem recebido pelo público e gerou mais de 20 milhões de dólares. Curiosamente este seria seu primeiro filme em que não tinha envolvimento com o roteiro. Entre os anos que se sucederam até seu próximo filme, foram oferecidos ao diretor alguns scripts que são completamente opostos aos seus interesses criativos como UM TIRA DA PESADA (1984), FLASHDANCE (1983), TOP GUN (1986) e até STAR WARS EPISÓDIO VI – O RETORNO DE JEDI (1983). Até que aceitou dirigir o remake do filme A MOSCA DA CABEÇA BRANCA (The Fly, 1958), filme este que mesclando primorosamente elementos de terror e ficção científica é considerado por muitos a obra prima de Cronenberg na direção. A MOSCA (The Fly, 1986) é repleto das metáforas que cercam suas obras e com efeitos especiais que impressionam e enojam, foi sucesso absoluto de bilheteria e crítica, levando inclusive o Oscar de maquiagem no ano de 1986.
A Mudança De Ares
Com sua reputação de diretor devidamente cimentada, Cronenberg resolve em seus próximos filmes deixar o horror e a nojeira um pouco de lado e explorar o lado mais subconsciente do comportamento e da psique humana, sem deixar de lado os roteiros intrincados e controversos, um retorno aos aspectos experimentais do início de sua carreira. Sua primeira incursão neste segmento foi o thriller GEMEOS: MÓRBIDA SEMELHANÇA (Dead Ringers, 1988, apesar do rascunho do roteiro ter sido escrito pelo diretor em 1981), baseado em fatos reais narra a vida de dois gêmeos (ambos protagonizados por Jeremy Irons) ginecologistas e retrata como suas identidades são lentamente desintegradas e se fundem. O próximo trabalho ainda é menos comercial: MISTÉRIOS E PAIXÕES (Naked Lunch) de 1991, é baseado no polêmico livro “Almoço Nu” de William S. Burroughs. Uma biografia exagerada de Burroughs que na visão de Cronenberg torna-se uma viagem lisérgica do ofício de escritor. Com Peter Weller (ROBOCOP) no elenco, é um filme um pouco mais surreal (como se vindo de Cronenberg isso fosse possível), mas autenticamente “Cronenbergiano”, com mulheres que se “abrem” e se transformam em homens e máquinas de escrever que evoluem em órgãos sexuais. MISTÉRIOS E PAIXÕES, mesmo sendo um filme para poucos gostos, foi um de seus maiores sucessos na crítica, levando entre outros 11 prêmios Genie no Canadá. Seu próximo filme também encara de frente o tabu da homossexualidade com M BUTERFLY (idem, 1993): Também inspirado em uma bizarra história real sobre um embaixador francês que se envolve amorosamente com uma cantora de ópera sem saber que se trata de um homem. Trabalhando novamente com Jeremy Irons, este é o filme mais deslocado dentro de seu estilo e por isto mesmo recebido com frieza e indiferença. Para nossa felicidade Cronenberg aprendeu a lição rápido…
Cronenberg seguiu em 1996 com o filme CRASH – ESTRANHOS PRAZERES (Crash), a obra mais controversa, polêmica e discutida do diretor. Baseado no romance underground escrito por J. D. Ballard (escrito em 1973), CRASH mostra um cenário psicológico futurista com personagens que entram em rituais bizarros de carros batidos que envolvem sexo e fetichismo. O filme é tão intenso que foi banido na Inglaterra por algum tempo e foi lançado nos Estados Unidos com classificação NC-17 (proibido para menores de 17 anos), além de algumas manifestações de repúdio devido ao seu conteúdo, considerado pornográfico e niilista. Entretanto foi agraciado com o prêmio especial do juri no festival de Cannes e é considerado uma obra prima moderna pelos veículos especializados. Seu próximo filme foi eXistenZ (idem, 1999) onde Cronenberg volta com um roteiro original de sua autoria, coisa que não acontecia desde VIDEODROME e em seguida SPIDER – DESAFIE SUA MENTE (Spider, 2002) baseado no livro de Patrick McGrath. Apesar de serem bem diferentes em termos de ROTEIRO, ambos os filmes tratam de ficção científica e o limiar entre a realidade e a loucura, como nos primórdios de sua carreira. Mas até um diretor de talento passa por percalços financeiros e para fazer SPIDER, Cronenberg abriu mão de seu salário. Consequentemente o diretor precisou fazer uma “concessão” para conseguir dinheiro e topou fazer um projeto meio a contra-gosto. O resultado deste projeto foi MARCAS DA VIOLÊNCIA (A History of Violence), seu último filme até o momento e um dos mais aclamados trabalhos de 2005. Entretanto ironicamente, para revolta dos fãs, não foi lembrado pela Academia de Cinema nas indicações para o Oscar, mas esta é uma outra discussão… Concluindo, entre altos e baixos, David Cronenberg sempre se mostrou um diretor completo e audaz, diferente sob todos os aspectos. Capaz de mexer na profundeza obscura e perversa da sociedade moderna, deixando seus espectadores admirados e ao mesmo tempo chocados com a força nua e crua de sua direção.
-Além de diretor David Cronenberg fez várias pontas como ator, entre os filmes que participou podem-se citar RAÇA DAS TREVAS (1989), MEDIDAS EXTREMAS (1996) e JASON X (2001); - Em 1999, David Cronenberg foi incluido na calçada da fama do Canadá, neste mesmo ano foi presidente do juri no festival de Cannes. Em 2006 foi agraciado com o prêmio Carrosse D’or no festival de Cannes, uma espécie de prêmio vitalício pelo conjunto da obra.
- Os figurinos em seus filmes costumam ser confeccionados por sua irmã Denise, outras figurinhas carimbadas em seus filmes são Howard Shore (Música Incidental) e Robert A. Silverman (Ator).
- Inicialmente seria o responsável pela direção de “O Vingador do Futuro”, tendo inclusive escrito alguns tratamentos iniciais do roteiro.
Filmografia
2007 – Senhores do Crime (Eastern Promises)
2005 – Marcas da violência (A History of Violence)
2002 – Spider – Desafie sua mente (Spider)
2000 – Camera
1999 – eXistenZ (eXistenZ)
1996 – Crash – Estranhos prazeres (Crash)
1993 – M. Butterfly (M. Butterfly)
1991 – Mistérios e paixões (Naked Lunch)
1988 – Gêmeos – Mórbida semelhança (Dead ringers)
1986 – A mosca (The Fly)
1983 – Na hora da zona morta (The Dead Zone)
1983 – Videodrome – A síndrome do vídeo (Videodrome)
1981 – Scanners, sua mente pode destruir (Scanners)
1979 – Filhos do medo (Brood, The)
1979 – Fast company
1977 – Enraivecida na fúria do sexo (Rabid)
1975 – Calafrios (Shivers)
1972 – Don Valley (TV)
1972 – Fort York (TV)
1972 – In the dirt (TV)
1972 – Lakeshore (TV)
1972 – Scarborough bluffs (TV)
1972 – Winter garden (TV)
1971 – Jim Ritchie sculptor (TV)
1971 – Letter from Michelangelo (TV)
1971 – Tourettes (TV)
1970 – Crimes of the future
1969 – Stereo
1967 – From the drain
1966 – Transfer
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011
12/02: Solaris (Andrei Tarkovsky, 1972)
Crítica sobre a carreira de Andrei Tarkovsky: A Arte de Acreditar - o cinema segundo Andrei Tarkovsky
o cinema segundo Andrei Tarkovsky
por F. Fischl
Extraído de http://www.wezen.com.br/wezine/tarkovs.htm
F. Fischl é Bacharel em Comunicação Audiovisual pela Univ. Federal de São Carlos
filipe@wezen.com.br
"Fica perfeitamente claro que o objetivo de toda arte - a menos, por certo, que ela seja dirigida ao consumidor, como se fosse uma mercadoria - é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual o significado de sua existência. Explicar às pessoas, a que se deve sua aparição nesse planeta, ou, se não for possível explicar, ao menos propor a questão." Andrei Tarkovsky em Esculpir o Tempo, da editora Martins Fontes.
Nos filmes de Andrei Tarkovsky, algumas perguntas parecem tão importantes quanto suas respostas. Sua obra se apresenta como um meio de assimilação do mundo, um instrumento que busca compreendê-lo. A expressão artística seria uma experiência subjetiva, através da qual o homem procura apreender a realidade. Para Tarkovsky, uma das grandes particularidades da arte, é sua intenção de persuadir as pessoas não através de argumentos racionais, mas sim a partir do impacto emocional. A arte tem de ser sentida, pois o artista a impregnou como uma energia que transcende a razão de um diálogo meramente jornalístico. Desta forma um espírito de comunhão entre o artista e o público é essencial, pois o criador não busca a comunicação através do científico. Filmes são feitos para que os homens tentem se comunicar, partilhar informações e assimilar experiências.
Exatamente pelo fato de que a arte não se exprime em termos lógicos, nem sempre é possível fazer com que uma mensagem seja compreendida pelo público. Não se pode forçar ninguém a apreciar um filme. Nisso reside parte do talento do artista. Muitas pessoas não aceitavam os filmes de Tarkovsky, e os consideravam entediantes. Para outra parcela do público, suas películas constituíam intensas reflexões filosóficas. A princípio o que Tarkovsky tenta dizer é que para gostarmos de arte, e particularmente de seus filmes, precisamos ter vontade e capacidade de se entregar ao artista. Numa alusão religiosa, o diretor diz que precisamos ter predisposição e muita fé. Muitas vezes, as pessoas não estão dispostas a refletir, então ouvimos "Não gosto deste filme, é muito cansativo." Para Tarkovsky, Goethe está completamente certo, quando diz que ler um bom livro é tão difícil quanto escrevê-lo. Uma boa obra de arte, deve contar com bons intérpretes. Numa boa obra de arte é impossível separar qualquer um de seus componentes, seja o conteúdo ou a forma, pois uma obra prima transcende qualquer classificação.
Na obra do diretor espanhol Luis Buñel, Tasrkovsky chega a vislumbrar um grande cineasta. Para ele, Buñel sabe que a estrutura estética não necessita de manifestos, pois a verdadeira força da arte reside no poder de persuasão. Desta maneira o artista torna-se um ideólogo e apologista de seu tempo pois "A grandeza e a ambigüidade da arte consiste no fato de que ela não prova, não explica e não responde às perguntas, mesmo quando emite sinais de advertência. Sua influência tem a ver com a sublevação ética e moral." Com Un Chien Andalou, Buñel, assim como Tarkovsky, teve que enfrentar um público enfurecido que esperava do cinema uma simples sessão de divertimentos. Para Tarkovsky, Buñel é um verdadeiro artista pois ele se dirige ao público não em linguagem de manifesto, "mas no idioma emocionalmente contagioso da arte."
Para Tarkovsky, muitas das anomalias na relação entre o público e o autor se deve a posição pouco definida que o cinema ocupa, localizando-se entre a arte e a indústria. Por tratar-se de uma produção muito dispendiosa, a sétima arte exige um retorno de investimento, acrescido de lucro. Desta forma, um filme, enquanto produto, faz sucesso ou fracassa e seu valor artístico acaba sendo relacionado às leis de mercado. Nunca nenhuma outra arte, esteve tão ligada a critérios desta natureza.
Devemos lembrar que alcançar o sucesso não deve ser o objetivo de nenhum autor. Segundo Tarkovsky, em função da consciência desenvolvida que tem de seu espaço e tempo, o artista é um vox populi por natureza. Ele é a voz daqueles que não tem o preparo para expressar sua concepção de realidade. Mas mesmo diante do caráter populista de seu trabalho, não é inato ao artista o dom do sucesso popular tão necessário a manutenção do cinema. Ao longo de sua careira na União Soviética, muitas vezes Tarkovsky foi acusado de ter-se distanciado da realidade, e evitado se expressar como 'voz do povo'. Seus filmes eram considerados restritos a uma parcela muito pequena do público. Em diversas entrevistas o diretor declara-se ressentido com estas acusações que para ele não fazem sentido.
"A concepção de uma grande obra é sempre ambígua, sempre tem duas faces, como diz Thomas Mann; ela é multifacetada e indefinida como a própria vida. O autor não pode, portanto, esperar que sua obra seja entendida de uma forma específica e de acordo com a percepção que tem dela. Tudo que pode fazer é apresentar sua própria imagem do mundo, para que as pessoas possam olhar esse mundo através dos seus olhos e se deixem impregnar por seus sentimentos, dúvidas e idéias..." Andrei Tarkovsky em Esculpir o Tempo, da editora Martins Fontes.
Em Persona de Ingmar Bergman, Tarkovsky encontra um filme que é uma verdadeira obra de arte. Um filme que a cada vez que revemos, encontramos algo novo, e nos relacionamos de uma maneira diferente com seu mundo. Tal qual a obra de Mann, trata-se de um filme com múltiplas faces, e por isso, é de tanto valor para a sétima arte.
O autor nunca pode abrir mão da contradição e outros recursos, em nome de se tornar mais acessível e padronizado. Ao agir desta forma, está tirando todo o valor artístico de sua obra. O autor não pode se propor o objetivo de ser simples e compreensível, isto seria tão absurdo quanto se propor ser incompreensível. De acordo com Tarkovsky, nada seria mais prejudicial à arte que o nivelamento por baixo que caracteriza o cinema comercial. Para ele os diretores que dizem não se preocupar com a reação do público, não poderiam estar mais equivocados. Não há nada de errado em não se preocupar em agradar o público, posição aliás assumida por Tarkovsky, contudo é perfeitamente normal sempre esperar uma resposta dos espectadores. É saudável para um cineasta esperar que seu filme seja amado por alguns.
Para que o autor seja honesto e sincero com público, ele deve primeiramente ser honesto consigo mesmo e não deixar que preocupações que não sejam relacionadas a obra interfiram no processo criativo. Um autor nunca deve tornar-se dependente do público ou de quem quer que seja, pois ao fazer isso, estará criando uma obra com inflexões que não são suas. O autor e mais ninguém deve deter o processo de criação.
Observando a dualidade industria e arte, existente na sétima arte, poderemos compreender por que Tarkovsky diz que o cinema não conseguiu produzir nenhum autor digno de se colocar no patamar dos grandes autores da literatura. Para Tarkovsky, o cinema ainda conta com o problema de não ter conseguido definir seu caráter específico e sua própria linguagem, assim não poderia ter um autor tão representativo quanto Shakespeare.
Tarkovsky
O cinema ainda é uma arte muito nova e suas possibilidades foram muito pouco exploradas. Segundo Tarkovsky: "Ainda estamos em dúvida quanto ao material em que deve ser modelada a imagem cinematográfica, ao contrário do pintor, que sabe que vai trabalhar com as cores, ou do escritor que atingirá seu público através das palavras. O cinema como um todo ainda está em busca daquilo que o determina; além disso, cada diretor está tentando encontrar sua voz individual, ao passo que todos os pintores usam cores. Se esse extraordinário meio de apelo às massas que é o cinema vai tornar-se um dia uma verdadeira forma de arte, muito trabalho ainda espera tanto pelos diretores quanto pelo público."
Estudante do prestigiado Instituto de Cinematografia do Estado (VGIK), em Moscou, Tarkovsky produziu uma estréia que foi aclamada internacionalmente. Seu filme, A Infância de Ivan foi agraciado com Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza de 1962. A história gira em torno do personagem de Burlaiev, um garoto de 12 anos cuja família foi morta na segunda guerra mundial. Enquanto Burlaiev é incumbido de tarefas de espionagem no território nazista, Tarkovsky constitui através de um lirismo único, sua visão sobre a guerra.
Seu segundo filme, Andrei Rublev levou três anos para ficar pronto e também foi premiado, desta vez pelo festival de Cannes em 1966. Problemas com o Departamento de Filmes Soviéticos, ocasionaram um atraso de quatro anos na liberação da película para exportação. O tempo que levou para chegar ao público certamente infringiu no diretor um profundo desgosto, condição que ironicamente podemos relacionar com o personagem do próprio filme. A temática de Andrei Rublev certamente retrata a posição de Tarkovsky com relação aos problemas enfrentados pelos artistas soviéticos de sua época. A história mostra a vida de um pintor do século XV que perde a fé na sociedade em Deus e na própria arte, alcançando revitalização espiritual numa cena antológica. O filme propõem questões relevantes com relação ao papel desempenhado pelo artista na sociedade. Deveria Rubelev participar da problemática política e social de sua época ou apenas retrata-la com seu pincel? São perguntas extremamente importantes que Tarkovsky voltaria a discutir com mais profundidade em seu flerte com a literatura no famoso autobiográfico Esculpir o Tempo.
Em 1972, Solaris é filmado como uma resposta russa a 2001 de Stanley Kubric. Ficção científica metafísica, sobre um psicólogo que é enviado a uma estação espacial para investigar estranhas alucinações que provocam mortes e suicídios na tripulação. Lento, perturbador e hipnótico, Solaris é um filme único em seu gênero. A idéia da materialização dos medos e angústias individuais se mostrou extremamente prolífica neste filme. Assim como Stalker, sua segunda investida na ficção científica, Solaris não foi bem recebido pelo Estado e pelo grande público. Tarkovsky se mostrava um diretor muito elitista para grande aceitação. Em 2002 a refilmagem americana de Solaris, resgata a importância de sua temática, propiciando a divulgação do diretor russo a platéias medíocres aficionadas por Emergency Room e pela vulgaridade de Star Trek.
O conteúdo de O Espelho de 1976, também encontrou problemas com o Estado Soviético. Muitas foram as críticas e objeções a este filme, e sua estréia no ocidente teve de esperar alguns anos para ser liberada pelo departamento de exportação. Obra extremamente pessoal sobre a vida na Rússia durante a segunda guerra mundial. O Espelho resgata a infância de um artista durante a guerra e o papel de sua mãe, uma estenografa do Estado, em sua criação. Poema visual, o filme conta com a participação da mãe do diretor no papel da mãe do artista e de Arseni Tarkovsky, o pai, recitando suas poesias. Em alguns trechos do filme, a cultura de imigrantes latinos na Rússia e retratada.
Stalker de 1979, é um filme sobre um lugar misterioso, a 'Zona' onde todos os desejos humanos se realizam. Somente algumas pessoas conhecidas como stalkers são capazes de chegar ao lugar. Um destes stalkers guia dois intelectuais à zona. Filme metáfora sobre as aspirações humanas foi o último trabalho de Tarkovsky em sua terra natal.
Cansado de ouvir que ninguém queria seus filmes, e decepcionado com as problemáticas que envolviam o Estado e a distribuição de seus filmes, Tarkovsky, no começo dos anos 80, começa a trabalhar fora da URSS. Nostalgia de 1983, sua próxima obra foi produzida na Itália e trata de um tema biográfico. Um artista no estrangeiro, castigado pela saudade de casa e impossibilitado de viver em seu país ou longe dele.
O último filme da breve filmografia de Tarkovsky, O Sacrifício, foi filmado na Suécia em 1986. Extremamente pessimista a obra é tida como um testamento do diretor que faleceu um ano depois. Na equipe, ele emprega vários membros colaboradores de Ingmar Bergman incluindo o ator Erland Josephson e o fotógrafo Sven Nykvist. Josephson interpreta um ator intelectual que vive isolado com a mulher e o filho. Em meio a delírios sobre o fim do mundo e uma guerra nuclear, Tarkovsky nos adverte sobre o que considerava uma questão crucial. A Falta de espaço em nossa cultura para a existência espiritual. O Sacrifício ganhou um prêmio especial do júri em Cannes, meses depois o diretor é vitimado pelo câncer de pulmão aos 54 anos.
Artigo: Solaris (Andrei Tarkovsky, 1972)
Temas-chaves: crise das ci6encia e capitalismo tardio; técnica e tecnologia; memória e identidade humana; subjetividade, capital e tecnologia; valores sociais, técnica e sociabilidade.
Filmes relacionados: “Matrix”, dos Irmãos Wachowski; “Metropólis”, de Fritz Lang; “2001-Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick; “IA - Inteligência Artificial”, de Steven Spielberg; “Eu, Robô”, de Alex Proyas.
O projeto Solaris, que mantêm a Estação orbital em funcionamento, esta há tempos estancado. Está em crise desde que uma expedição que sobrevoava o oceano de Solaris teve um acidente, matando o radiobiólogo Vichiniakov e o físico Fechner. O piloto de helicóptero, Burton, que tentava o resgate, nada pode fazer. Como único sobrevivente desta trágica expedição, relatou que viu em Solaris árvores, arbustos, cercas, acácias e um objeto flutuante - a figura de um humano, uma criança, incrivelmente grande, de olhos azuis e cabelos negros, nadando no Oceano de Solaris com o tronco fora d'água - "...estava nu como quem acabou de nascer". A Comissão de Inquérito considerou Burton vítima de alucinações causadas pela influência da atmosfera de Solaris e acompanhada de sintomas de perda de razão estimulada pelas regiões limitrofes do córtex cerebral. Além disso, observou que a solaristica era “um aglomerado de fatos desconexos que não se encaixam em nenhuma concepção”. As visões de Burton atentavam contra a Razão científica. Como observou o Doutor em Física, Messanger, o projeto Solaris estava atingindo os limites do conhecimento humano.
A seguir, o psicólogo Kris Kelvin chega à Estação Orbital de Solaris, que possui ainda três tripulantes: o astrobiologo Sartorius, o especialista em cibernética Snout e o fisiologista Guibarian. Mas, chegando lá, Kris encontra um ambiente estranho, transtornado pela alucinação de seus tripulantes orbitais. Um deles – Guibarian - cometeu suicídio. Os outros vivem alucinações com pessoas que são materializaçòes de sua própria consciência. Kris Kelvin logo passa a conviver com uma dessas visitas (como seria chamada tais materializações). É a sua ex-mulher, Hary, que há cerca de dez anos, cometera suicídio. Ela é um fantasma - um espectro - dos próprios temores, medos e afetos inconscientes de Kris Kelvin. A Segunda Parte do filme tem inicio com a tentativa de Kris em se livrar de sua visita. Embora tente se livrar de Hary, ela retorna. As visitas são imortais. Ressuscitam após cada morte. Na verdade, Hary representa a materialização de um inconsciente de Kris Kelvin que resiste e se impõe. Ela é a prefiguração viva dos traumas do passado. Num certo momento, no diálogo na biblioteca da Estação Orbital, Hary irá dizer: “Para vocês [os tripulantes da Estação orbital], as visitas são uma coisa estranha e irritante. Mas as visitas são vocês próprios, são a vossa consciência.”. Kris Kelvin, não conseguindo eliminar Hary, acaba se envolvendo com ela. Cria laços afetivos. O que Tarkovski sugere é que o homem é capaz de criar laços afetivos com seus próprios fantasmas.
No final do filme, Hary busca se auto-destruir. Chegara à situação-limite das angústias de sua humanidade inconclusa. Novamente, podemos comparar Hary com o replicante Roy Batty (estrelado por Rudger Hauer) de Blade Runner. Ser não-humana - ou possuir a potência humana sem torná-la jamais ato - é o inferno de Hary. Entretanto, sua busca pela morte é inglória - Hary é "imortal". Ela não pertence a si própria. Nem pertence a Kris, mas tão-somente ao seu subconsciente. Só ele poderia emancipá-la deste inferno. No final, exposto a um tratamento encefalográfico, sugerido por Sartorius, Kris Kelvin submerge em suas reminiscências do passado. Como uma hipnose induzida, Kelvin adormece e sonha com sua mãe. No sonho, Hary e a mãe de Kelvin se confundem. Na verdade, ela é a própria representação da mãe de Kris. Existe uma densa relação problemática de natureza inconsciente entre Kris Kelvin e sua mãe que teria se projetado na relação dele com a ex-mulher. Num certo momento de seu sonho, Kris diz para sua mãe: "Não me lembro do teu rosto." Enfim, é um momento de plena ressonâncias freudianas na trama de Solaris.
As visitas do filme Solaris surgem a noite, após o sono dos tripulantes. Elas aparecem e passam a conviver com eles mesmo após terem acordado. Snout divaga: “Só chegam à noite. Mas precisamos dormir. Aqui está o problema – o homem perdeu o sono.” E pede para Kris Kelvin ler uma passagem do romance clássica do renascimento burguês Dom Quixote: “Só sei uma coisa, senhor, Quando estou dormindo, desconheço o medo, as esperanças, os trabalhos e a beatitude. Agradeço a quem inventou o sono, esta única balança que iguala um pastor a um rei; um imbecil a um sábio. Mas também tem o seu lado negativo, se parece muito com a morte.” Snout diz a seguir: “Nunca antes, Sancho [Pança], você disse algo tão gracioso. Ciência? Tolice! Na nossa situação, o gênio e o medíocre, dois impotentes. Dizemos que pretendemos conquistar o Cosmos. Na realidade, só queremos aproximar a Terra das fronteiras dele. Não nos importam outros mundos. Queremos é um espelho. Procuramos muito um contato, mas nunca o encontraremos. Estamos na situação idiota de quem aspira a um objetivo que teme e que não necessita.” E exclama: “O homem precisa do homem”. É uma passagem magistral de Solaris.
As cenas finais de Solaris estão imersas em alegorias complexas que nos fazem lembrar “2001 – Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick. Mas, enquanto Kubrick nos conduz pelo deep space, ao som da Valsa Danúbio Azul de Johann Strauss, quase uma celebração irônica do domínio do homem burguês sobre a Natureza, Tarkovski nos conduz pelas inquietações íntimas da alma humana. É curioso que seja um cineasta soviético, de uma sociedade pós-capitalista, comprometida com o Materialismo Histórico, que tenha nos conduzido pelas dilacerações metafísicas da alma humana. Na verdade, Andrei Tarkovski é um herdeiro do imaginário russo de Dostoievski e Tolstoi. E o que está dilacerado é a alma burguesa e a civilização do capital. No final do filme, Hary desaparece tal como veio, talvez por conta de alterações no oceano de Solaris - ou será que foi pela ação do subconsciente de Kris Kelvin?. De repente, aquele oceano vivo passou a ter "ilhas". Kelvin está numa dessa "ilhas" de Solaris, sugerindo a absorção da sua dimensão psíquica pelo oceano do planeta vivo.
O filme Solaris sugere uma discussão sobre que é real e o que é virtual. Nessa perspectiva, o virtual é tão real quanto a própria realidade que somos nós. As visitas seriam espectros virtuais de nós mesmos. São parte de nós, algo ineliminável e imorredouro. Assim, Hary é uma extensão virtual de Kelvin, projeção de sua (in)consciência dilacerada. De certo modo, ao se apaixonar por Hary, ele se apaixona por si mesmo. "Queremos é um espelho!", dissera Snout. Hary é uma parte não-resolvida de Kris Kelvin. Como Hary afirmara, certa vez,“ é possível que [Kris] não me ame, [mas] apenas queira se defender de si mesmo”. É como se carregássemos em nós o irresoluto, o perdido, o enigmático que não sabemos nos desvencilhar. Na Primeira Parte de Solaris, Kris aparece se desvencilhando de pápeis e fotos antigas - uma delas é de Hary, sua ex-mulher. Mas dentro de si, ele ainda não conseguira resolver as dilaceraçõies deste passado. Seria o oceano de Solaris que iria materializar seus devaneios interiores. O que Tarkovski sugere é que não podemos descartar o que ainda está irresolvido dentro de nós. Na verdade, as cenas de abertura de Solaris mostram um Kelvin pensativo diante da Natureza exuberante. Ele possui uma expressão de melancolia e de crise interior.
O filme Solaris começa com a experiência “mística” de Burton e termina com a de Kelvin. Depois de ter passado por Solaris, Burton não conseguiu ser mais o mesmo. Por exemplo, na primeira parte do filme, a cena de seu trajeto da casa de campo de Kris Kelvin até a metrópole, com seus fluxos de néon e de carros em alucinada velocidade, é quase que uma viagem interior. Nela, Burton parece imerso em si, sendo conduzido pela máquina. Ele deixa-se conduzir. O carro o conduz, tal como ele é conduzido pela sua experiência "mística" em Solaris. Sua expressão é de preocupação contida pois o ceticismo de Kris Kelvin o frustrou terrivelmente.
Em Solaris, a presença da tela imagética é constante. É através dela que tomamos conhecimento da experiência de Burton. É através dela que sabemos da experiência trágica de Guibarian, um dos tripulantes que cometeu suicídio. É através dela que estamos, nós, entrando em contato com a narrativa de Solaris. Para Tarkovski a vida está na tela e a tela está na vida, como interfaces reflexivas de uma única experiência – a experiência de nós mesmos. Pois cada depoimento da tela diz respeito a cada um dos personagens que a assistem. Inclusive, entre os tripulantes da Estação orbital existe uma reflexão subsistente sobre o que levou Guibariam a cometer suicídio (afinal, ele não parecia ser nenhum suicida em potencial). Aquele gesto alucinado tornou-se objeto de uma reflexão filosófica no salão da biblioteca da Estação orbital. Kris observa: “ Guibarian não perdeu o ânimo. Há coisas piores ainda. Morreu porque não enxergava a saída. Não sabia que isto não acontecia apenas a ele.” E mais adiante, num de seus devaneios, dirá: “Guibarian não morreu de medo. Morreu de vergonha. A vergonha salvará a humanidade.”