quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

26/02: A Antena (Esteban Sapir, 2007)

A Antena - Esteban Sapir (2007)

Sinopse
Em uma gélida metrópole dos anos XXX, toda a população está muda. O cruel Mr. TV comanda o país, monopolizando as palavras e imagens, e as pessoas nada fazem para protestar. Passam os dias sentadas, vendo televisão e comendo os alimentos produzidos por ele. Enquanto isso, Mr. TV coordena um plano sinistro para escravizar o povo inteiro, eternamente. Mas, para alcançar seus objetivos, ele precisa seqüestrar uma bela cantora, a única que ainda tem A VOZ. Feito à moda do cinema mudo, o filme é uma fábula sobre o poder da fala humana. Estréia mundial no Festival de Rotterdam 2007. Duração: 95 minutos

Crítica: A Antena (Esteban Sapir, 2007)

por Alfredo Suppia
Extraído de http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=4561

Inspirado no longa argentino Esperando o Messias (2000), de Daniel Burman, Jean-Claude Bernardet concluiu, parafraseando um amigo, que “os argentinos dão um banho nos brasileiros” (Revista de Cinema, fevereiro de 2003, republicado em Bernardet, Cinema Brasileiro: Propostas para uma história, São Paulo: Cia. das Letras, 2009, p. 256-8). Segundo o crítico, o fato de Esperando o Messias ser um filme médio “é a prova de que a Argentina tem produção média viva e inteligente, o que assinalam também outros filmes, como Nove rainhas ou O filho da noiva” (Bernardet, 2009, p. 256). Esse “banho”, continua Bernardet, deve-se em grande parte à forma da narração (2009, p. 256-7). O crítico identifica oportunamente um “enrijecimento da narrativa cinematográfica” em filmes de primeira linha do cinema brasileiro. “A ponto de podermos falar hoje na existência de um parnasianismo cinematográfico brasileiro. São parnasianos filmes como Abril despedaçado, Uma vida em segredo, Através da Janela (...).” (Bernardet, 2009, p. 257). Ainda segundo Bernardet, tais títulos “[s]ão filmes mortos porque ficam se regozijando com sua elaboração formal e ficam contemplando, maravilhados, a sua beleza” (2009, p. 257-8). O crítico sentencia: “Joguem fora seus storyboards. Injetem menos talento e mais vida nos seus fotógrafos e diretores de arte” (Bernardet, 2009, p. 258).

Numa comparação do cinema argentino de caráter fantástico, de fantasia ou ficção científica, com o equivalente brasileiro, o tal “banho” salta ainda mais aos olhos. Difícil pensar num filme como La Antena (2007), de Esteban Sapir, produzido no Brasil. Abusado demais, arriscado demais... criativo demais.

La Antena é uma fábula distópica em que os habitantes de uma cidade fictícia perderam a voz há duas décadas. Ninguém fala ou emite som algum. Os citadinos alimentam-se de TV, literal e metaforicamente, e sua voz serve de matéria-prima para a indústria do Sr. TV (Alejandro Urdapilleta), soberano da metrópole. Mas os recursos vêm se esgotando rapidamente, e o Sr. TV precisa d’A Voz (Florência Raggi) para sugar as palavras das pessoas e, com isso, continuar reinando em seu negócio. O Sr. TV aprisiona A Voz e, com a ajuda do Dr. Y (Carlos Piñeiro), usa a mulher numa máquina que emite mensagens subliminares. O objetivo é, também, aumentar definitivamente o consumo dos produtos TV. Mas o Sr. TV não contava que, com a ajuda de uma família de heróis, uma “segunda voz” entrasse em cena.

La Antena é um amálgama de influências que entabula uma série de citações diretas a obras mais ou menos famosas da história do cinema. A primeira influência, talvez a mais evidente, é Metropolis (1927), de Fritz Lang. As citações do filme alemão podem ser conferidas na paisagem urbana, no som visualmente sugerido, nas diversas montagens de imagens sobrepostas (chroma key), evocativas – guardadas as devidas proporções – do Processo Schüfftan. Uma passagem como o plano dos olhos multiplicados, quando os burgueses de Metropolis observam avidamente a dança da falsa-Maria, é reproduzida em La Antena. O Sr. TV e seu filho são análogos a Joh Fredersen e Freder em Metropolis, o Dr. Y é Rothwang e a homenagem ao filme de Lang é sacramentada na seqüência do experimento com “A Voz”.

Além de Metropolis, La Antena paga tributo a Viagem à Lua (1904), de Georges Méliès – com mais uma reprodução do célebre plano da lua antropomórfica -, bem como ao cinema de vanguarda de Marcel Duchamp (Anémic Cinema, 1926) e Dziga Vertov (O Homem com a Câmera, 1929). O logotipo da empresa TV em La Antena lembra diretamente as espirais de Anémic Cinema. O tema da população que tem sua energia vital drenada pela televisão remete ainda a uma produção tcheca bem mais recente e menos conhecida, o longa tcheco Akumulátor 1 (1994), de Jan Sverak.

O trabalho da direção de arte em La Antena, assinado por Daniel Gimelberg, é primoroso e, de acordo com o making-of do filme, disponível nos extras do DVD, fica clara a intenção de homenagear uma história dos efeitos especiais, com a emulação de alguns efeitos ópticos por meio de ferramentas digitais.


O roteiro de La Antena é razoavelmente confuso, e só em algumas seqüências excluídas do corte final, disponibilizadas nos extras do DVD, é que compreendemos determinadas ações e motivações dos personagens. Porém, a julgar pelo depoimento de Sapir no making-of do filme, a narrativa de La Antena foi muito mais baseada em sensações, impressões e atmosferas do que na progressão linear de um roteiro conservador. Falar em lógica, neste caso, seria um tanto quanto ocioso. De toda maneira, a despeito de quaisquer defeitos, La Antena é “um filme vivo, feito com as vísceras” – parafreaseando Jean-Claude Bernardet a respeito de Bicho de Sete Cabeças (2009, p. 258). Somando-se La Antena a La Sonámbula (1998) e Adiós Querida Luna (2004), ambos de Fernando Spiner, e ainda Moebius (1996), de Gustavo Mosquera, o cinema fantástico argentino contemporâneo ganha “de lavada” do equivalente brasileiro.


Gustavo Mosquera, Esteban Sapir e Lucrecia Martel são alguns dos diretores argentinos com passagem pela ENERC (Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematográfica). Os trabalhos em curta-metragem de Mosquera e Sapir, por exemplo, revelam muito sobre seus projetos posteriores em longa-metragem. IV Éden (1989), de Sapir, já demonstra o interesse do cineasta pela televisão e a metalinguagem. O filme é uma distopia pós-apocalíptica envolvendo vigilância em vídeo, de extração metalingüística. Arden los Juegos (1985), de Mosquera, é uma ficção pós-apocalíptica sobre a angústia dos momentos seguintes a uma catástrofe global. Tanto Arden los Juegos como IV Éden demonstram um interesse relativamente difundido no cinema de FC argentino pela ficção distópica, ou pós-apocalíptica, algo observável também no Brasil, embora talvez com menos intensidade ou empenho.

Falta no cinema brasileiro a mesma familiaridade com o trato do tema fantástico observável na Argentina, a mesma arte do improviso, sujeição ao arriscado – enfim, a mesma ousadia de fazer filmes “médios”, porém inspirados porque cheios de vida.


Assita AQUI ao trailer de A Antena.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

19/02: Mistérios e Paixões (David Cronenberg, 1991)

Mistérios e Paixões - David Cronenberg (1991)

Sinopse
Com esta adaptação de Almoço Nu, o romance considerado infilmável de William S. Burroughs, David Cronenberg faz seu filme mais delirante. Peter Weller vive Bill Lee, um escritor fracassado, que extermina insetos para pagar suas contas. Bill está tendo problemas no trabalho, correndo o risco inclusive de perder o emprego, pois frequentemente esgota seu estoque de inseticida. Porém, a verdade é que Joan, sua esposa, está viciada no "barato" que este pó lhe causa. Quando Bill, estimulado pela mulher, experimenta esta substância ele entra em um processo interminável de "viagens", nas quais máquinas de escrever se transformam em enormes insetos falantes. Duração: 115 minutos

Crítica: Mistérios e Paixões (David Cronenberg, 1991)

por Ruy Gardnier
Extraido de http://www.contracampo.com.br/69/misteriosepaixoes.htm


Nos anos 90, David Cronenberg propõe duas adaptações de obras-primas da literatura underground do século XX: O Almoço Nu de William Seward Burroughs (1959) e Crash de James Graham Ballard (1971). Curiosamente, em algum momento de suas carreiras, ambos ficaram associados à literatura de ficção científica/fantástica (notadamente Nova Express, para Burroughs, e todos os primeiros livros de Ballard, entre eles The Drowned World) da mesma forma como ficou Cronenberg durante os anos 70-80, em filmes como Videodrome, Scanners, A Hora da Zona Morta ou A Mosca. 1988 faz um ponto de clivagem em sua carreira: a fluidez do gênero passa a se ralentar, a intriga corporal dos personagens passa a afetar também - e talvez mais profundamente - suas psicologias, e uma escrita mais experimental passa a se sentir no cinema cronenberguiano a partir de Gêmeos - Mórbida Semelhança. De certa forma, a adaptação dessas duas gemas da literatura são um momento privilegiado para Cronenberg refletir sua própria posição de criador que sai de um registro de gênero mais estrito e entra mais especificamente no domínio da "grande arte" que ele vai perseguir nos anos 90.

Dito isso, vale dizer que O Almoço Nu é um livro absolutamente inadaptável para o cinema, e que os fragmentos de ficção que Cronenberg transforma em Mistérios e Paixões (num desses inspiradíssimos títulos péssimos que os distribuidores nos arrumam) se devem tanto a acontecimentos na própria vida de Burroughs e de seu período em Tânger (que seria locação do filme não tivesse estourado a Guerra do Golfo, o que obrigou a produção a recriar o Marrocos num estúdio de Toronto), durante o qual escreveu o livro, quanto a momentos que de fato estão no livro em forma de ficção meta-documental. O que faz desse filme uma adaptação das mais estranhas. Primeiro porque ela parece funcionar apenas a partir de alguns motivos recorrentes: Judy Davis, máquinas de escrever que se transformam em baratas, a carne negra que a princípio é usada para diminuir o efeito do pó de dedetização ("bug powder") no qual William Lee e sua esposa se viciaram, relatórios, Benway, Guilherme Tell, mas acima de tudo conspirações. A paranóia é freqüente e William Lee parece estar alheio a tudo aquilo que dizem a ele: ele ouve tudo como se fosse uma revelação, como se sua vida dependesse das descobertas dos agentes-baratas-máquinas-de-escrever ou dos conselhos de Tom Frost. Cronenberg transforma O Almoço Nu, em termos de estrutura, num romance policial à la nouveau roman.

Visualmente, o filme cria um universo escuro e opaco, ornado por verdes e por laranjas discretos mas pregnantes, e sempre resignados a uma pequena parte da tela. O terreno é o do neo-noir, solo que no mesmo ano de Mistérios e Paixões deu Barton Fink - Delírios de Hollywood (1991), filme quase irmão na estética e na temática, ainda que o lógica do derrisório dos irmãos Coen tenha muito pouco a ver com a lógica de imersão do cinema de Cronenberg. Como em todo (ou quase todo) noir ou neo-noir, é uma lógica da investigação e do complô que rege a relação do personagem principal com o mundo. Mas é uma investigação sem objeto (atrás de que corre William Lee? O que ele busca?), e um complô do qual não somos informados, nem sobre seus limites, nem sobre seu objetivo (o que leva o personagem a correr atrás de Benway, de Fadela ou do francês Yves Cloquet? Sobre o que eles conspiram? Quais os segredos que eles guardam?). Toda a trama de mistério parece ser apenas um grande mcguffin - obrigação externa cujo único propósito dramático é propulsionar o personagem a perseguir o verdadeiro tema da obra - para a verdadeira investigação do filme.

E o centro oculto do filme, aquilo que se instala sub-repticiamente e vai aos poucos dominando de forma completa, é o ato literário, o acesso ao escrever como acontecimento na vida de uma pessoa, e esse acontecimento não como dom, mas como vício, como praga e como doença (característica pregnante em todo cinema de Cronenberg) que, uma vez instalados, só farão prescrever suas rotinas sobre os corpos de seus hóspedes. Se a "clivagem temática" de Cronenberg a que nos referimos no começo existe, é porque agora o "corpo estranho" não se insinua mais no terreno da ficção fantástica, mas daqui em diante opera nos delírios mentais do cotidiano, nas relações com nossos objetos de predileção, nossas obsessões corriqueiras. Nada glamourosa ou chique, a literatura em Mistérios e Paixões é a última provação, é a matéria insidiosa e viciante que arremessa nosso personagem-escritor no mundo das alucinações paranóicas, um universo estranho em que nada é o que parece, e tudo aquilo que não é central pode funcionar como desvio de atenção. O foco, o foco: escrever relatórios. É a partir desses relatórios e de coisas prosaicas como uma relação muito particular com máquinas de escrever que nasce o tecido literário, que inconscientemente ao próprio artista brota o livro, que de um relato a partir da vivência surge a matéria da escrita por si mesma. O mesmo lance de dados jogado até o final: como gesto que inaugura sua viagem (em sentido figurado e em sentido próprio), é preciso que William Lee repita Guilherme Tell para provar seu ofício de escritor.

Como o curta-metragem Câmera ou Videodrome, Mistérios e Paixões é um filme decisivo na carreira de Cronenberg. É o momento que o narrador cronenberguiano abandona a frieza distanciada, clínica, característica de algumas de suas obras-primas (Crash vem à mente primeiro), e mergulha de cabeça no vício do personagem transformado em vício da ficção. Filmes entrópicos, de compreensão difícil ou por vezes impossível - os encontros de William com os outros personagens de Mistérios e Paixões nunca funcionam no sentido da evolução narrativa, e isso nos impede de entender dramaticamente sua colocação na história -, são momentos particulares em que David Cronenberg prova de seu próprio veneno, se insere na trama que enreda para nós, cai voluntariamente em sua própria teia. Menos um filme de crise do que a base para um novo programa, Mistérios e Paixões (se) apaixona pelas incertezas da arte.

Artigo sobra a obra de David Cronenberg

FONTE: BOCA DO INFERNO:
http://www.bocadoinferno.com/romepeige/artigos/cronen.html

“Um aspecto do horror, e certamente dos meus filmes, é a repulsa. Tenho que dizer às pessoas que algumas das coisas que elas acham em meus filmes são feitas para serem repulsivas, sim, mas há um aspecto bonito nelas”. Gênio ou louco? Quem acompanha a carreira do diretor (e algumas vezes ator) David Cronenberg sem dúvida já se pegou nesta pergunta e para respondê-la nada melhor do que tentar mergulhar profundamente na obra deste profissional excepcional que entregou alguns dos mais bizarros, escatológicos, polêmicos e marcantes filmes do gênero fantástico e que com sua peculiar assinatura em cada produção gerou uma legião de fãs ao redor do mundo.

O Inicio
David Paul Cronenberg, nasceu no dia 15 de março de 1943 no Canadá. Por ser filho de um jornalista freelance e uma pianista, teve influências na sua entrada no mundo das artes (tocava violão clássico aos 12 anos) e escrita (publicando alguns contos curtos ainda novo), mas sempre mantendo um crescente interesse nas ciências, especialmente em botânica e lepidopterologia (estudo das traças) até que em 1963 entra na Universidade de Toronto como estudante de Ciências, mas um ano após resolve mudar de curso, para literatura, onde recebeu um prêmio honorário da Universidade. Em 1965 Cronenberg fica impressionado com o filme “WINTER KEPT US WARM” de seu colega de classe David Secter, que por sinal foi o primeiro filme canadense em inglês a ser apresentado no festival de Cannes, e se interessa pelo ofício de cineasta e aprende os primeiros passos. Fez duas películas de orçamento zero em 16mm (Transfer e From the Drain) e, inspirado pela cena de filmes underground de Nova York, funda a Toronto Film Co-op junto com Iain Ewing e Ivan Reitman (diretor de OS CAÇA FANTASMAS). Após um ano viajando pela Europa e estagiando em uma TV francesa, Cronenberg retornou ao Canadá e graduou-se como primeiro de sua classe em 1967. Para a sorte de Cronenberg no final dos anos 60, o governo canadense funda Canadian Film Development Corporation (CFDC) para estimular a produção de filmes “não documentais” no país e após a produção do filme de ficção científica STEREO (1969), Cronenberg torna-se um dos primeiros cineastas a utilizar financiamento da CFDC, sendo que sua primeira realização nesta fase foi “CRIMES OF THE FUTURE” (também em 1969), um filme sobre a exploração experimental e surreal da sexualidade, marca que seria freqüente nos próximos filmes do diretor. Após estes dois filmes, Cronenberg deixou as veias experimentais e decidiu que queria ampliar seu público.

O Rei Do Horror
De 1970 até 1973 o diretor trabalhou em curtas para uma televisão local, até que em 1975, com produção de Reitman, Cronenberg dirige seu primeiro trabalho para o cinema, CALAFRIOS (Shivers), que entre uma sutil mistura de A NOITE DOS MORTOS VIVOS (1968) com VAMPIROS DE ALMAS (1956) conta a história de pessoas comuns em um condomínio e que são infectados por parasitas, se tornando gradualmente em um bando de maníacos tarados por sexo. Este primeiro trabalho dividiu as opiniões dos críticos: Os mais moralizadores condenaram-no por conter excessos de sexo e sangue, outros (a maioria da Europa) consideraram-no como um ataque a burguesia, já que em sua visão, os parasitas poderiam ser considerados como anarquistas e ainda hoje é considerado como um dos filmes mais nauseantes já criados. O fato é que entre detratores e elogiadores, Cronenberg ganhou notoriedade no cenário underground e faria mais dois filmes financiados direta ou indiretamente pela CFDC e com temática parecida, que rotulariam o diretor como “O Rei do horror Venéreo” e “Barão do Sangue”: ENRAIVECIDA NA FÚRIA DO SEXO (Rabid, 1977) e FILHOS DO MEDO (The Brood, 1979), que junto com CALAFRIOS formam uma espécie de trilogia áspera sobre as evoluções físicas do corpo humano que podem derrubar a civilização da forma como a conhecemos. ENRAIVECIDA… Teve uma repercussão maior por trazer no elenco a atriz pornô Marilyn Chambers (se bem que a primeira escolha do diretor foi uma jovem atriz então desconhecida chamada Sissy Spacek) e projetou Cronenberg para o mercado internacional.


Ciência E Violência
O primeiro filme de David Cronenberg que pode ser considerado um blockbuster foi SCANNERS – SUA MENTE PODE DESTRUIR (Scanners, 1981), filme de tamanho impacto para a época que trouxe o nome do diretor para o mainstream, o próprio Cronenberg afirmou que era um passo diferente em sua carreira. A história sobre uma conspiração liderada por um telepata homicida tem aspectos técnicos excelentes e conta com um inspirado Michael Ironside no papel do vilão Darryl Revok, mas sem dúvida será lembrado para sempre por sua clássica cena da cabeça explodindo, embora o final do filme não tenha agradado ao diretor. O filme foi o único de Cronenberg que gerou uma franquia (cinco filmes no total, todos inferiores e um remake anunciado).
Dois anos depois, o sucesso causado com SCANNERS amornaria um pouco com seu filme seguinte, VIDEODROME – A SÍNDROME DO VÍDEO (Videodrome, 1983), por ser um pouco incompreendido para a época. A mensagem subliminar sobre até onde a tecnologia pode chegar e alienar seus usuários (especialmente a TV) soa mais atual do que nunca, além de ser uma história envolvente, sangrenta e com forte apelo sexual, como a maioria de seus filmes anteriores. Curiosamente este foi o primeiro filme de Cronenberg financiado através de um grande estúdio, a Universal Pictures. Já no ano de 1983 Cronenberg partiria para uma produção mais dentro dos padrões hollywoodianos, dirigindo A HORA DA ZONA MORTA (The Dead Zone), baseado no livro homônimo de Stephen King. Com um orçamento de 10 milhões de dólares (4 milhões a mais que VIDEODROME) e um elenco de peso, o filme foi bem recebido pelo público e gerou mais de 20 milhões de dólares. Curiosamente este seria seu primeiro filme em que não tinha envolvimento com o roteiro. Entre os anos que se sucederam até seu próximo filme, foram oferecidos ao diretor alguns scripts que são completamente opostos aos seus interesses criativos como UM TIRA DA PESADA (1984), FLASHDANCE (1983), TOP GUN (1986) e até STAR WARS EPISÓDIO VI – O RETORNO DE JEDI (1983). Até que aceitou dirigir o remake do filme A MOSCA DA CABEÇA BRANCA (The Fly, 1958), filme este que mesclando primorosamente elementos de terror e ficção científica é considerado por muitos a obra prima de Cronenberg na direção. A MOSCA (The Fly, 1986) é repleto das metáforas que cercam suas obras e com efeitos especiais que impressionam e enojam, foi sucesso absoluto de bilheteria e crítica, levando inclusive o Oscar de maquiagem no ano de 1986.

A Mudança De Ares
Com sua reputação de diretor devidamente cimentada, Cronenberg resolve em seus próximos filmes deixar o horror e a nojeira um pouco de lado e explorar o lado mais subconsciente do comportamento e da psique humana, sem deixar de lado os roteiros intrincados e controversos, um retorno aos aspectos experimentais do início de sua carreira. Sua primeira incursão neste segmento foi o thriller GEMEOS: MÓRBIDA SEMELHANÇA (Dead Ringers, 1988, apesar do rascunho do roteiro ter sido escrito pelo diretor em 1981), baseado em fatos reais narra a vida de dois gêmeos (ambos protagonizados por Jeremy Irons) ginecologistas e retrata como suas identidades são lentamente desintegradas e se fundem. O próximo trabalho ainda é menos comercial: MISTÉRIOS E PAIXÕES (Naked Lunch) de 1991, é baseado no polêmico livro “Almoço Nu” de William S. Burroughs. Uma biografia exagerada de Burroughs que na visão de Cronenberg torna-se uma viagem lisérgica do ofício de escritor. Com Peter Weller (ROBOCOP) no elenco, é um filme um pouco mais surreal (como se vindo de Cronenberg isso fosse possível), mas autenticamente “Cronenbergiano”, com mulheres que se “abrem” e se transformam em homens e máquinas de escrever que evoluem em órgãos sexuais. MISTÉRIOS E PAIXÕES, mesmo sendo um filme para poucos gostos, foi um de seus maiores sucessos na crítica, levando entre outros 11 prêmios Genie no Canadá. Seu próximo filme também encara de frente o tabu da homossexualidade com M BUTERFLY (idem, 1993): Também inspirado em uma bizarra história real sobre um embaixador francês que se envolve amorosamente com uma cantora de ópera sem saber que se trata de um homem. Trabalhando novamente com Jeremy Irons, este é o filme mais deslocado dentro de seu estilo e por isto mesmo recebido com frieza e indiferença. Para nossa felicidade Cronenberg aprendeu a lição rápido…

O Retornos as Origens
Cronenberg seguiu em 1996 com o filme CRASH – ESTRANHOS PRAZERES (Crash), a obra mais controversa, polêmica e discutida do diretor. Baseado no romance underground escrito por J. D. Ballard (escrito em 1973), CRASH mostra um cenário psicológico futurista com personagens que entram em rituais bizarros de carros batidos que envolvem sexo e fetichismo. O filme é tão intenso que foi banido na Inglaterra por algum tempo e foi lançado nos Estados Unidos com classificação NC-17 (proibido para menores de 17 anos), além de algumas manifestações de repúdio devido ao seu conteúdo, considerado pornográfico e niilista. Entretanto foi agraciado com o prêmio especial do juri no festival de Cannes e é considerado uma obra prima moderna pelos veículos especializados. Seu próximo filme foi eXistenZ (idem, 1999) onde Cronenberg volta com um roteiro original de sua autoria, coisa que não acontecia desde VIDEODROME e em seguida SPIDER – DESAFIE SUA MENTE (Spider, 2002) baseado no livro de Patrick McGrath. Apesar de serem bem diferentes em termos de ROTEIRO, ambos os filmes tratam de ficção científica e o limiar entre a realidade e a loucura, como nos primórdios de sua carreira. Mas até um diretor de talento passa por percalços financeiros e para fazer SPIDER, Cronenberg abriu mão de seu salário. Consequentemente o diretor precisou fazer uma “concessão” para conseguir dinheiro e topou fazer um projeto meio a contra-gosto. O resultado deste projeto foi MARCAS DA VIOLÊNCIA (A History of Violence), seu último filme até o momento e um dos mais aclamados trabalhos de 2005. Entretanto ironicamente, para revolta dos fãs, não foi lembrado pela Academia de Cinema nas indicações para o Oscar, mas esta é uma outra discussão… Concluindo, entre altos e baixos, David Cronenberg sempre se mostrou um diretor completo e audaz, diferente sob todos os aspectos. Capaz de mexer na profundeza obscura e perversa da sociedade moderna, deixando seus espectadores admirados e ao mesmo tempo chocados com a força nua e crua de sua direção.

CURIOSIDADES
-Além de diretor David Cronenberg fez várias pontas como ator, entre os filmes que participou podem-se citar RAÇA DAS TREVAS (1989), MEDIDAS EXTREMAS (1996) e JASON X (2001); - Em 1999, David Cronenberg foi incluido na calçada da fama do Canadá, neste mesmo ano foi presidente do juri no festival de Cannes. Em 2006 foi agraciado com o prêmio Carrosse D’or no festival de Cannes, uma espécie de prêmio vitalício pelo conjunto da obra.
- Os figurinos em seus filmes costumam ser confeccionados por sua irmã Denise, outras figurinhas carimbadas em seus filmes são Howard Shore (Música Incidental) e Robert A. Silverman (Ator).
- Inicialmente seria o responsável pela direção de “O Vingador do Futuro”, tendo inclusive escrito alguns tratamentos iniciais do roteiro.

Filmografia
2007 – Senhores do Crime (Eastern Promises)
2005 – Marcas da violência (A History of Violence)
2002 – Spider – Desafie sua mente (Spider)
2000 – Camera
1999 – eXistenZ (eXistenZ)
1996 – Crash – Estranhos prazeres (Crash)
1993 – M. Butterfly (M. Butterfly)
1991 – Mistérios e paixões (Naked Lunch)
1988 – Gêmeos – Mórbida semelhança (Dead ringers)
1986 – A mosca (The Fly)
1983 – Na hora da zona morta (The Dead Zone)
1983 – Videodrome – A síndrome do vídeo (Videodrome)
1981 – Scanners, sua mente pode destruir (Scanners)
1979 – Filhos do medo (Brood, The)
1979 – Fast company
1977 – Enraivecida na fúria do sexo (Rabid)
1975 – Calafrios (Shivers)
1972 – Don Valley (TV)
1972 – Fort York (TV)
1972 – In the dirt (TV)
1972 – Lakeshore (TV)
1972 – Scarborough bluffs (TV)
1972 – Winter garden (TV)
1971 – Jim Ritchie sculptor (TV)
1971 – Letter from Michelangelo (TV)
1971 – Tourettes (TV)
1970 – Crimes of the future
1969 – Stereo
1967 – From the drain
1966 – Transfer

    sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

    12/02: Solaris (Andrei Tarkovsky, 1972)

    Solaris - Andrei Tarkovsky (1972)

    Sinopse
    Um famoso cosmonauta-psiquiatra é enviado para a estação científica que está em órbita do planeta oceânico Solaris com a importante missão de investigar uma série de fatos bizzaros e misteriosos que estão ocorrendo. Lá, um cientista suicidou-se e dois estão a beira da insensatez. Os cientistas acreditam que fenômenos sobrenaturais estejam por trás destes fatos e que estes, sofrem influência do planeta Solaris. Tarkovski, ao contrário das ficções científicas da época, procura explorar um espaço muito mais vasto e perigoso do que o que nos rodeia, o Espaço Interior. Duração: 165 minutos.

    Crítica sobre a carreira de Andrei Tarkovsky: A Arte de Acreditar - o cinema segundo Andrei Tarkovsky

    A arte de acreditar
    o cinema segundo Andrei Tarkovsky

    por F. Fischl

    Extraído de http://www.wezen.com.br/wezine/tarkovs.htm

    F. Fischl é Bacharel em Comunicação Audiovisual pela Univ. Federal de São Carlos
    filipe@wezen.com.br

    "Fica perfeitamente claro que o objetivo de toda arte - a menos, por certo, que ela seja dirigida ao consumidor, como se fosse uma mercadoria - é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual o significado de sua existência. Explicar às pessoas, a que se deve sua aparição nesse planeta, ou, se não for possível explicar, ao menos propor a questão." Andrei Tarkovsky em Esculpir o Tempo, da editora Martins Fontes.

    Nos filmes de Andrei Tarkovsky, algumas perguntas parecem tão importantes quanto suas respostas. Sua obra se apresenta como um meio de assimilação do mundo, um instrumento que busca compreendê-lo. A expressão artística seria uma experiência subjetiva, através da qual o homem procura apreender a realidade. Para Tarkovsky, uma das grandes particularidades da arte, é sua intenção de persuadir as pessoas não através de argumentos racionais, mas sim a partir do impacto emocional. A arte tem de ser sentida, pois o artista a impregnou como uma energia que transcende a razão de um diálogo meramente jornalístico. Desta forma um espírito de comunhão entre o artista e o público é essencial, pois o criador não busca a comunicação através do científico. Filmes são feitos para que os homens tentem se comunicar, partilhar informações e assimilar experiências.

    Exatamente pelo fato de que a arte não se exprime em termos lógicos, nem sempre é possível fazer com que uma mensagem seja compreendida pelo público. Não se pode forçar ninguém a apreciar um filme. Nisso reside parte do talento do artista. Muitas pessoas não aceitavam os filmes de Tarkovsky, e os consideravam entediantes. Para outra parcela do público, suas películas constituíam intensas reflexões filosóficas. A princípio o que Tarkovsky tenta dizer é que para gostarmos de arte, e particularmente de seus filmes, precisamos ter vontade e capacidade de se entregar ao artista. Numa alusão religiosa, o diretor diz que precisamos ter predisposição e muita fé. Muitas vezes, as pessoas não estão dispostas a refletir, então ouvimos "Não gosto deste filme, é muito cansativo." Para Tarkovsky, Goethe está completamente certo, quando diz que ler um bom livro é tão difícil quanto escrevê-lo. Uma boa obra de arte, deve contar com bons intérpretes. Numa boa obra de arte é impossível separar qualquer um de seus componentes, seja o conteúdo ou a forma, pois uma obra prima transcende qualquer classificação.

    Pela falta de um público mais crente, Tarkovsky chega a afirmar que a arte não ensina nada a ninguém, "uma vez que em quatro mil anos não aprendemos nada." Se fossemos capazes de nos entregar as obras primas e assimilássemos completamente seu conteúdo, "já teríamos nos transformado em anjos há muito tempo."

    Na obra do diretor espanhol Luis Buñel, Tasrkovsky chega a vislumbrar um grande cineasta. Para ele, Buñel sabe que a estrutura estética não necessita de manifestos, pois a verdadeira força da arte reside no poder de persuasão. Desta maneira o artista torna-se um ideólogo e apologista de seu tempo pois "A grandeza e a ambigüidade da arte consiste no fato de que ela não prova, não explica e não responde às perguntas, mesmo quando emite sinais de advertência. Sua influência tem a ver com a sublevação ética e moral." Com Un Chien Andalou, Buñel, assim como Tarkovsky, teve que enfrentar um público enfurecido que esperava do cinema uma simples sessão de divertimentos. Para Tarkovsky, Buñel é um verdadeiro artista pois ele se dirige ao público não em linguagem de manifesto, "mas no idioma emocionalmente contagioso da arte."

    O autor e seu público

    Para Tarkovsky, muitas das anomalias na relação entre o público e o autor se deve a posição pouco definida que o cinema ocupa, localizando-se entre a arte e a indústria. Por tratar-se de uma produção muito dispendiosa, a sétima arte exige um retorno de investimento, acrescido de lucro. Desta forma, um filme, enquanto produto, faz sucesso ou fracassa e seu valor artístico acaba sendo relacionado às leis de mercado. Nunca nenhuma outra arte, esteve tão ligada a critérios desta natureza.

    Devemos lembrar que alcançar o sucesso não deve ser o objetivo de nenhum autor. Segundo Tarkovsky, em função da consciência desenvolvida que tem de seu espaço e tempo, o artista é um vox populi por natureza. Ele é a voz daqueles que não tem o preparo para expressar sua concepção de realidade. Mas mesmo diante do caráter populista de seu trabalho, não é inato ao artista o dom do sucesso popular tão necessário a manutenção do cinema. Ao longo de sua careira na União Soviética, muitas vezes Tarkovsky foi acusado de ter-se distanciado da realidade, e evitado se expressar como 'voz do povo'. Seus filmes eram considerados restritos a uma parcela muito pequena do público. Em diversas entrevistas o diretor declara-se ressentido com estas acusações que para ele não fazem sentido.

    "A concepção de uma grande obra é sempre ambígua, sempre tem duas faces, como diz Thomas Mann; ela é multifacetada e indefinida como a própria vida. O autor não pode, portanto, esperar que sua obra seja entendida de uma forma específica e de acordo com a percepção que tem dela. Tudo que pode fazer é apresentar sua própria imagem do mundo, para que as pessoas possam olhar esse mundo através dos seus olhos e se deixem impregnar por seus sentimentos, dúvidas e idéias..." Andrei Tarkovsky em Esculpir o Tempo, da editora Martins Fontes.

    Em Persona de Ingmar Bergman, Tarkovsky encontra um filme que é uma verdadeira obra de arte. Um filme que a cada vez que revemos, encontramos algo novo, e nos relacionamos de uma maneira diferente com seu mundo. Tal qual a obra de Mann, trata-se de um filme com múltiplas faces, e por isso, é de tanto valor para a sétima arte.

    O autor nunca pode abrir mão da contradição e outros recursos, em nome de se tornar mais acessível e padronizado. Ao agir desta forma, está tirando todo o valor artístico de sua obra. O autor não pode se propor o objetivo de ser simples e compreensível, isto seria tão absurdo quanto se propor ser incompreensível. De acordo com Tarkovsky, nada seria mais prejudicial à arte que o nivelamento por baixo que caracteriza o cinema comercial. Para ele os diretores que dizem não se preocupar com a reação do público, não poderiam estar mais equivocados. Não há nada de errado em não se preocupar em agradar o público, posição aliás assumida por Tarkovsky, contudo é perfeitamente normal sempre esperar uma resposta dos espectadores. É saudável para um cineasta esperar que seu filme seja amado por alguns.

    Para que o autor seja honesto e sincero com público, ele deve primeiramente ser honesto consigo mesmo e não deixar que preocupações que não sejam relacionadas a obra interfiram no processo criativo. Um autor nunca deve tornar-se dependente do público ou de quem quer que seja, pois ao fazer isso, estará criando uma obra com inflexões que não são suas. O autor e mais ninguém deve deter o processo de criação.

    Observando a dualidade industria e arte, existente na sétima arte, poderemos compreender por que Tarkovsky diz que o cinema não conseguiu produzir nenhum autor digno de se colocar no patamar dos grandes autores da literatura. Para Tarkovsky, o cinema ainda conta com o problema de não ter conseguido definir seu caráter específico e sua própria linguagem, assim não poderia ter um autor tão representativo quanto Shakespeare.


    Tarkovsky

    Para muitos críticos, a maior qualidade dos filmes de Andrei Tarkovsky, é constituir, a partir dos recursos oferecidos pelo cinema, uma obra de profundidade filosófica sem igual. O público, habituado ao fato de que o cinema é sempre romance com ação e personagens, não encontrando o final feliz na obra do diretor russo se sente desapontado.

    O cinema ainda é uma arte muito nova e suas possibilidades foram muito pouco exploradas. Segundo Tarkovsky: "Ainda estamos em dúvida quanto ao material em que deve ser modelada a imagem cinematográfica, ao contrário do pintor, que sabe que vai trabalhar com as cores, ou do escritor que atingirá seu público através das palavras. O cinema como um todo ainda está em busca daquilo que o determina; além disso, cada diretor está tentando encontrar sua voz individual, ao passo que todos os pintores usam cores. Se esse extraordinário meio de apelo às massas que é o cinema vai tornar-se um dia uma verdadeira forma de arte, muito trabalho ainda espera tanto pelos diretores quanto pelo público."

    Estudante do prestigiado Instituto de Cinematografia do Estado (VGIK), em Moscou, Tarkovsky produziu uma estréia que foi aclamada internacionalmente. Seu filme, A Infância de Ivan foi agraciado com Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza de 1962. A história gira em torno do personagem de Burlaiev, um garoto de 12 anos cuja família foi morta na segunda guerra mundial. Enquanto Burlaiev é incumbido de tarefas de espionagem no território nazista, Tarkovsky constitui através de um lirismo único, sua visão sobre a guerra.

    Seu segundo filme, Andrei Rublev levou três anos para ficar pronto e também foi premiado, desta vez pelo festival de Cannes em 1966. Problemas com o Departamento de Filmes Soviéticos, ocasionaram um atraso de quatro anos na liberação da película para exportação. O tempo que levou para chegar ao público certamente infringiu no diretor um profundo desgosto, condição que ironicamente podemos relacionar com o personagem do próprio filme. A temática de Andrei Rublev certamente retrata a posição de Tarkovsky com relação aos problemas enfrentados pelos artistas soviéticos de sua época. A história mostra a vida de um pintor do século XV que perde a fé na sociedade em Deus e na própria arte, alcançando revitalização espiritual numa cena antológica. O filme propõem questões relevantes com relação ao papel desempenhado pelo artista na sociedade. Deveria Rubelev participar da problemática política e social de sua época ou apenas retrata-la com seu pincel? São perguntas extremamente importantes que Tarkovsky voltaria a discutir com mais profundidade em seu flerte com a literatura no famoso autobiográfico Esculpir o Tempo.

    Em 1972, Solaris é filmado como uma resposta russa a 2001 de Stanley Kubric. Ficção científica metafísica, sobre um psicólogo que é enviado a uma estação espacial para investigar estranhas alucinações que provocam mortes e suicídios na tripulação. Lento, perturbador e hipnótico, Solaris é um filme único em seu gênero. A idéia da materialização dos medos e angústias individuais se mostrou extremamente prolífica neste filme. Assim como Stalker, sua segunda investida na ficção científica, Solaris não foi bem recebido pelo Estado e pelo grande público. Tarkovsky se mostrava um diretor muito elitista para grande aceitação. Em 2002 a refilmagem americana de Solaris, resgata a importância de sua temática, propiciando a divulgação do diretor russo a platéias medíocres aficionadas por Emergency Room e pela vulgaridade de Star Trek.

    O conteúdo de O Espelho de 1976, também encontrou problemas com o Estado Soviético. Muitas foram as críticas e objeções a este filme, e sua estréia no ocidente teve de esperar alguns anos para ser liberada pelo departamento de exportação. Obra extremamente pessoal sobre a vida na Rússia durante a segunda guerra mundial. O Espelho resgata a infância de um artista durante a guerra e o papel de sua mãe, uma estenografa do Estado, em sua criação. Poema visual, o filme conta com a participação da mãe do diretor no papel da mãe do artista e de Arseni Tarkovsky, o pai, recitando suas poesias. Em alguns trechos do filme, a cultura de imigrantes latinos na Rússia e retratada.

    Stalker de 1979, é um filme sobre um lugar misterioso, a 'Zona' onde todos os desejos humanos se realizam. Somente algumas pessoas conhecidas como stalkers são capazes de chegar ao lugar. Um destes stalkers guia dois intelectuais à zona. Filme metáfora sobre as aspirações humanas foi o último trabalho de Tarkovsky em sua terra natal.

    Cansado de ouvir que ninguém queria seus filmes, e decepcionado com as problemáticas que envolviam o Estado e a distribuição de seus filmes, Tarkovsky, no começo dos anos 80, começa a trabalhar fora da URSS. Nostalgia de 1983, sua próxima obra foi produzida na Itália e trata de um tema biográfico. Um artista no estrangeiro, castigado pela saudade de casa e impossibilitado de viver em seu país ou longe dele.

    O último filme da breve filmografia de Tarkovsky, O Sacrifício, foi filmado na Suécia em 1986. Extremamente pessimista a obra é tida como um testamento do diretor que faleceu um ano depois. Na equipe, ele emprega vários membros colaboradores de Ingmar Bergman incluindo o ator Erland Josephson e o fotógrafo Sven Nykvist. Josephson interpreta um ator intelectual que vive isolado com a mulher e o filho. Em meio a delírios sobre o fim do mundo e uma guerra nuclear, Tarkovsky nos adverte sobre o que considerava uma questão crucial. A Falta de espaço em nossa cultura para a existência espiritual. O Sacrifício ganhou um prêmio especial do júri em Cannes, meses depois o diretor é vitimado pelo câncer de pulmão aos 54 anos.

    Artigo: Solaris (Andrei Tarkovsky, 1972)

    Eixo Temático

    A civilização do capital se baseia num determinado pressuposto epistemológico, o da Razão Científica, que fundou a técnica e a ciência moderna. A episteme do Ocidente esvaziou a Natureza de seu significado metafísico, tornando-a mero objeto de manipulação incremental. Na civilização do capital, o esvaziamento do universo natural seguiu pari passu o esvaziamento existencial do universo humano. O desenvolvimento da tecnologia não conseguiu preencher, de pleno sentido, a vida humana; e a ciência moderna, na sua forma instrumental, apenas consolidou o vazio existencial da sociedade burguesa. Desde os primórdios do século XX observamos uma crise da ciência moderna , cindida pelo crescente especialismo (ou divisão científica do trabalho) e pela instrumentalidade exacerbada aos interesses da ordem do capital (a tecnologização da ciência). Mesmo com os avanços magistrais do conhecimento cientifico (e da dominação da Natureza), o homem burguês ainda está imerso em si e em seus particularismos estranhados, buscando uma vida plena de sentido. Mas a ciência moderna é incapaz de dar sentido à vida do homem. Mesmo dominando o tempo-espaço e reduzindo as barreiras naturais, o homem burguês tende a se encontrar consigo e com seus fantasmas interiores, espectros de uma interioridade exacerbada e vazia de sentido, imersa na memória e na temporalidade retrospectiva.

    Temas-chaves: crise das ci6encia e capitalismo tardio; técnica e tecnologia; memória e identidade humana; subjetividade, capital e tecnologia; valores sociais, técnica e sociabilidade.

    Filmes relacionados: “Matrix”, dos Irmãos Wachowski; “Metropólis”, de Fritz Lang; “2001-Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick; “IA - Inteligência Artificial”, de Steven Spielberg; “Eu, Robô”, de Alex Proyas.

    O filme clássico de Andrei Tarkovski, de 1972, é baseado no romance homônimo de Stanislaw Lem (o roteiro é de Andrei Tarkovski e de Friedrich Gorenstein). É uma produção da extinta URSS. No filme, Kris Kelvin, interpretado por Donatas Banionis, é um psicólogo designado para apresentar um relatório sobre a Estação Espacial que está em órbita do planeta Solaris. Em torno deste planeta e de seus mistérios se constituiu uma ciência - a solarística.

    O projeto Solaris, que mantêm a Estação orbital em funcionamento, esta há tempos estancado. Está em crise desde que uma expedição que sobrevoava o oceano de Solaris teve um acidente, matando o radiobiólogo Vichiniakov e o físico Fechner. O piloto de helicóptero, Burton, que tentava o resgate, nada pode fazer. Como único sobrevivente desta trágica expedição, relatou que viu em Solaris árvores, arbustos, cercas, acácias e um objeto flutuante - a figura de um humano, uma criança, incrivelmente grande, de olhos azuis e cabelos negros, nadando no Oceano de Solaris com o tronco fora d'água - "...estava nu como quem acabou de nascer". A Comissão de Inquérito considerou Burton vítima de alucinações causadas pela influência da atmosfera de Solaris e acompanhada de sintomas de perda de razão estimulada pelas regiões limitrofes do córtex cerebral. Além disso, observou que a solaristica era “um aglomerado de fatos desconexos que não se encaixam em nenhuma concepção”. As visões de Burton atentavam contra a Razão científica. Como observou o Doutor em Física, Messanger, o projeto Solaris estava atingindo os limites do conhecimento humano.


    Na Primeira Parte do filme, Kris Kelvin, o psicólogo, considera que “a solaristica está se degenerando”. Conversando com Burton, antes de partir para a Estação Orbital de Solaris e elaborar seu relatório, diz, com ênfase: “Só me interessa a verdade. Não posso guiar-me por impulsos da alma. Não sou poeta. Tenho um objetivo concreto: tirar a estação de órbita, encerrando os estudos e legalizando a crise da solaristica ou tomar medidas extremas sujeitando o Oceano a uma irradiação intensa.” É curioso que um psicólogo diga que não pode se guiar por impulsos da alma humana, afirmando logo a seguir: “Não sou poeta” (o que demonstra a contraposição vigente entre ciência moderna x arte). Assumindo a posição do parecerista imparcial, impregnado pela objetividade e pragmatismo vigente, o psicológo Kris Kelvin busca resultados concretos. Talvez os custos financeiros elevados obrigassem o Estado a cortar verbas para o prosseguimento das investigações sobre o oceano de Solaris (tanto que, dos 86 tripulantes de Solaris, se mantinham apenas 3 na ativa). Como Burton iria dizer mais adiante, Kelvin assumia a posição do mero “contabilista” (no inicio do filme, o pai de Kris observa que o filho, imerso (e angustiado) com a ciência solaristica, ultimamente parecia "um contador fazendo suas contas"). Nesta Primeira Parte de Solaris, Kris Kelvin expressa as convicções vigentes de cariz neopositivista sobre o valor da ciência moderna. Entretanto, é perceptivel que ele vive uma crise existencial, imerso em conflitos íntimos, que iriam, só mais tarde, se manifestar, no interior da Estação orbital. Na verdade, como iremos verificar, seria Solaris, o universo desconhecido, que iria propiciar a catarse de Kris Kelvin.

    O diálogo entre Kris e Burton, antes da partida para a Estação Orbital, é importante, pois revela duas concepções antípodas de mundo. Burton observa, contradizendo a posição pragmática de Chris: “Quer destruir o que ainda não somos capazes de compreender? Não sou adepto do conhecimento a qualquer custo. O conhecimento só é verdadeiro quando ético”. Neste momento, Tarkovski coloca outro problema crucial – a relação ciência moderna e ética. Diante da observação de Burton, Kris responde: “Só o homem torna a ciência imoral. Lembre-se de Hiroshima.”. Mas Burton replica: “Não faça então a ciência amoral. É estranho”. Ora, o que Burton quer lembrar a Kris Kelvin é que a posição ética é intrínseca à atividade humana. Como atividade humana, a ciência não poderia ser nem imoral, nem amoral. Para ser verdadeiramente ciência precisaria ter um compromisso ético-moral. O que significa que uma ciência sem ética, baseada apenas em critérios contábeis, supostamente objetivos (e visando resultados pragmáticos), era uma fantasia tão irresponsável quanto aquela de que estava sendo acusado Burton ao relatar suas visões no oceano de Solaris. Entretanto, Kris observa para Burton: “Não tem nada de estranho [quanto a fazer uma ciência amoral].” E conclui: “Também não tem a certeza de que não foram alucinações [as visões de Burton em Solaris]”. Enfim, Kris lembra a ele que, embora a posição ética seja intrinsecamente humana, ela não nos garante nada (é quase o que disse Dostoievski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”). Ou seja, a ética sugerida por Burton poderia ser apenas produto de uma subjetividade alucinada e baseada em valores subjetivos, portanto, arbitrários.

    A seguir, o psicólogo Kris Kelvin chega à Estação Orbital de Solaris, que possui ainda três tripulantes: o astrobiologo Sartorius, o especialista em cibernética Snout e o fisiologista Guibarian. Mas, chegando lá, Kris encontra um ambiente estranho, transtornado pela alucinação de seus tripulantes orbitais. Um deles – Guibarian - cometeu suicídio. Os outros vivem alucinações com pessoas que são materializaçòes de sua própria consciência. Kris Kelvin logo passa a conviver com uma dessas visitas (como seria chamada tais materializações). É a sua ex-mulher, Hary, que há cerca de dez anos, cometera suicídio. Ela é um fantasma - um espectro - dos próprios temores, medos e afetos inconscientes de Kris Kelvin. A Segunda Parte do filme tem inicio com a tentativa de Kris em se livrar de sua visita. Embora tente se livrar de Hary, ela retorna. As visitas são imortais. Ressuscitam após cada morte. Na verdade, Hary representa a materialização de um inconsciente de Kris Kelvin que resiste e se impõe. Ela é a prefiguração viva dos traumas do passado. Num certo momento, no diálogo na biblioteca da Estação Orbital, Hary irá dizer: “Para vocês [os tripulantes da Estação orbital], as visitas são uma coisa estranha e irritante. Mas as visitas são vocês próprios, são a vossa consciência.”. Kris Kelvin, não conseguindo eliminar Hary, acaba se envolvendo com ela. Cria laços afetivos. O que Tarkovski sugere é que o homem é capaz de criar laços afetivos com seus próprios fantasmas.

    No decorrer da narrativa, Hary se angustia com a autoconsciência de sua artificialidade e de sua humanidade incompleta. É um espectro angustiada com sua própria espectralidade. Aos poucos, Hary adquire consciência-de-si. Sente nostalgia do ser humano que nunca foi. Lamenta não possuir memórias de um tempo passado, aquelas que Kelvin possui (seria interessante, por exemplo, um contraste entre Hary e Rachel, personagem feminina de Blade Runner, de Ridley Scott). No diálogo na biblioteca, Sartorius acusa Hary de ser “uma simples réplica” [da verdadeira Hary, ex-mulher de Kris, que se suicidara], “uma repetição mecânica, uma cópia, uma imitação”. Sartorius atingira o cerne essencial das preocupações de Hari. Ela diz: “Mas eu estou me tornando humana! Não sinto menos do que você. Já posso viver sem ele [Chris Kelvin]. Eu estou amando. Sou humana.” É o amor que sente por Kris, seu “criador inconsciente”, que irá aferir o grau de humanidade de Hary. Mas ela sente os dilemas profundos do amor humano. Diz Hary: “Kris me ama. Aliás, é possível que não me ame, que apenas queria se defender de si mesmo...” E arremata: “O problema não é esse. As razões que levam o homem a amar não importam.” Enfim, o que Tarkovski está nos dizendo é que a descoberta do amor é a descoberta de suas irrazões – e mais uma vez, as razões não importam, o que importa é apenas o laço afetivo criado. Mais tarde, é Kris Kelvin que estará imerso em divagações sobre este tema eterno: “O amor é algo que nós podemos sentir. Mas nunca explicado. Só se pode explicar a idéia. O homem ama o que pode perder. A ele próprio, uma mulher, sua pátria. Até hoje, a Humanidade e a Terra ficaram fora do alcance do amor.” Antes, Kris Kelvin, num diálogo com Snout, fizera referência a Tólstoi: “ Lembra-se das atribulações de Tolstoi, que sofria por não poder amar toda a Humanidade?”.

    No final do filme, Hary busca se auto-destruir. Chegara à situação-limite das angústias de sua humanidade inconclusa. Novamente, podemos comparar Hary com o replicante Roy Batty (estrelado por Rudger Hauer) de Blade Runner. Ser não-humana - ou possuir a potência humana sem torná-la jamais ato - é o inferno de Hary. Entretanto, sua busca pela morte é inglória - Hary é "imortal". Ela não pertence a si própria. Nem pertence a Kris, mas tão-somente ao seu subconsciente. Só ele poderia emancipá-la deste inferno. No final, exposto a um tratamento encefalográfico, sugerido por Sartorius, Kris Kelvin submerge em suas reminiscências do passado. Como uma hipnose induzida, Kelvin adormece e sonha com sua mãe. No sonho, Hary e a mãe de Kelvin se confundem. Na verdade, ela é a própria representação da mãe de Kris. Existe uma densa relação problemática de natureza inconsciente entre Kris Kelvin e sua mãe que teria se projetado na relação dele com a ex-mulher. Num certo momento de seu sonho, Kris diz para sua mãe: "Não me lembro do teu rosto." Enfim, é um momento de plena ressonâncias freudianas na trama de Solaris.

    Solaris é um filme denso, complexo e metafísico. Tarkovski permeia sua narrativa filmica com divagações filosóficas. São verdadeiros monólogos do homem consigo mesmo. Os vários personagens da Estação orbital, representam as concepções de mundo de uma humanidade em crise: a humanidade negada do capital. Por exemplo, os diálogos na biblioteca da Estação Orbital são significativos. O ambiente da biblioteca é o próprio palco do mundo. Em destaque, livros e pinturas do mundo renascentista, expressões de um humanismo primordial, hoje dilacerado pela crise estrutural do capital (por exemplo, o cientista Snout cita “Dom Quixote de La Mancha”, de Cervantes e Hary, num certo momento, divaga na pintura “Os caçadores na neve” de Pieter Bruguel, expressões da cultura renascentista). Enfim, o filme Solaris é a representação alegórica da crise do homem moderno. Destacamos os diálogos do especialista em cibernetica Snout, um personagem que, a partir da sua experiência vivida e percebida na Estação orbital, torna-se totalmente cético sobre as possibilidades do conhecimento cientifico. Ele põe em questão a ciência moderna, paradigma fundamental do imaginário de vida da civilização do capital. Diz ele: “O que está lendo? Nada disto presta”. Na verdade, todo o conhecimento cientifico do homem é incapaz de explicar as visitas, materializações da própria (in)consciência humana.

    As visitas do filme Solaris surgem a noite, após o sono dos tripulantes. Elas aparecem e passam a conviver com eles mesmo após terem acordado. Snout divaga: “Só chegam à noite. Mas precisamos dormir. Aqui está o problema – o homem perdeu o sono.” E pede para Kris Kelvin ler uma passagem do romance clássica do renascimento burguês Dom Quixote: “Só sei uma coisa, senhor, Quando estou dormindo, desconheço o medo, as esperanças, os trabalhos e a beatitude. Agradeço a quem inventou o sono, esta única balança que iguala um pastor a um rei; um imbecil a um sábio. Mas também tem o seu lado negativo, se parece muito com a morte.” Snout diz a seguir: “Nunca antes, Sancho [Pança], você disse algo tão gracioso. Ciência? Tolice! Na nossa situação, o gênio e o medíocre, dois impotentes. Dizemos que pretendemos conquistar o Cosmos. Na realidade, só queremos aproximar a Terra das fronteiras dele. Não nos importam outros mundos. Queremos é um espelho. Procuramos muito um contato, mas nunca o encontraremos. Estamos na situação idiota de quem aspira a um objetivo que teme e que não necessita.” E exclama: “O homem precisa do homem”. É uma passagem magistral de Solaris.

    O especialista em cibernética Snout traduz o desencanto irremediável com a ciência moderna (é sintomático que ele seja um cientista da cibernética). Sua posição é contrária a de outro tripulante da Estação orbital, o astrobiólogo Sartorius que representa o pragmatismo responsável dos funcionários da ciência moderna. Sartorius não se sente sensibiizado pelos mistérios de Solarius. Para ele, é mera alucinação produzida pela influência do oceano de Solaris. É uma mera extravagância. Diz ele: “O homem foi criado pela Natureza para a conhecer. O homem está cada vez mais perto da verdade. Condenado a conhece-la. Todo o resto é extravagância.” De fato, Sartorius incorpora a lógica produtivista do sistema social vigente. Condena a imersão no sonho. Diz ele: “[Kelvin] Não vê além da sua ex-mulher. Passam dias deitadinhos na cama.” Ele critica Kelvin que, segundo ele, “perdeu a noção de realidade”. Diz: “É um preguiçoso, nada mais”. Por outro lado, Kris Kelvin, o psicólogo enviado para elaborar um relatório sobre o projeto Solaris, aos poucos vai-se transtornando, alterando sua percepção do mundo. De certo modo, é como se reencontrasse com Burton e suas inquietações existenciais (apresentadas na Primeira Parte do filme). Na verdade, a experiência de contato com Solaris foi catártica para Kris Kelvin.


    As cenas finais de Solaris estão imersas em alegorias complexas que nos fazem lembrar “2001 – Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick. Mas, enquanto Kubrick nos conduz pelo deep space, ao som da Valsa Danúbio Azul de Johann Strauss, quase uma celebração irônica do domínio do homem burguês sobre a Natureza, Tarkovski nos conduz pelas inquietações íntimas da alma humana. É curioso que seja um cineasta soviético, de uma sociedade pós-capitalista, comprometida com o Materialismo Histórico, que tenha nos conduzido pelas dilacerações metafísicas da alma humana. Na verdade, Andrei Tarkovski é um herdeiro do imaginário russo de Dostoievski e Tolstoi. E o que está dilacerado é a alma burguesa e a civilização do capital. No final do filme, Hary desaparece tal como veio, talvez por conta de alterações no oceano de Solaris - ou será que foi pela ação do subconsciente de Kris Kelvin?. De repente, aquele oceano vivo passou a ter "ilhas". Kelvin está numa dessa "ilhas" de Solaris, sugerindo a absorção da sua dimensão psíquica pelo oceano do planeta vivo.

    Andrei Tarkovski é poético e filosófico. Consegue enriquecer a trama narrativa de Stanislaw Lem, expondo através dos recursos cinemáticos, questões filosoficas de alto nível. Cinema é imagem em movimento. Talvez em Solaris haja mais imagem que movimento (o que é antípoda ao cinema de Hollywood). Na verdade, o intenso movimento está na interioridade típica dos personagens de Solaris. É através deste movimento íntimo dos personagens que Tarkovski nos apresenta suas inquietações filosóficas. Por outro lado, as imagens de Solaris são singelas, fluidas, de uma perenidade que inquieta. O filme é perpassado de detalhes significativos (a folha que flui através da correnteza do lago; a chuva repentina na casa de campo de Kris, com a Natureza expressando as dilacerações íntimas deste personagem central; os posters imensos de personalidades do Poder no salão de depoimentos da Comissão de Inquerito que entrevistava Burton, representando o comprometimento do Poder com a Ciência moderna; a queda casual de Kris Kelvin logo ao chegar na Estação orbital; a roupa inteiriça de Hary, etc). A fotografia de Vadim Yusov é belissima, com destaque para as cenas da Natureza exuberante em contraste com a civilização da Técnica. Mas é uma Natureza que se impõe ao homem. Nas imagens de abertura do filme, Kris aparece imerso na Natureza exuberante do bosque próximo a sua casa de campo. São cenas fabulosas e de uma poesia intensa. Cada imagem contém elos significativos com inquietações íntimas do personagem central - Kris Kelvin. É em torno dele que se desenvolve a trama de Solaris. Na verdade, naquela Estação orbital se encontra todo o drama reflexivo da civilização ocidental e sua crise profunda. Solaris é um filme de crise, de uma dimensão da crise orgânica do capital, da sua visão de mundo cientifica. Em Solaris, o homem está diante de seus limites. De certo modo, a temática de Solaris foi apropriada pelo filme “Contato” de Robert Zameckis (baseado num romance de Carl Sagan). Só que Tarkovski consegue ser mais denso que Hollywood.

    Com Solaris, o Ocidente faz seu balanço filosófico. O homem ou a humanidade presente através de seus tripulantes sobreviventes (e alucinados), estão transfigurados pelas visões de si próprio. Cada visita é a projeção virtual dos fantasmas inconscientes de seu criador. Apenas Hary aparece com destaque - ela é a visita do personagem central, Kris Kelvin. As outras visitas aperecm de relance. É curioso que a visita do astrobiólogo Sartorius, entusiasta da visão de mundo científica, é um anão traquina e a de Gubarian, o que cometeu suicidio, é uma jovem adolescente.

    O filme Solaris sugere uma discussão sobre que é real e o que é virtual. Nessa perspectiva, o virtual é tão real quanto a própria realidade que somos nós. As visitas seriam espectros virtuais de nós mesmos. São parte de nós, algo ineliminável e imorredouro. Assim, Hary é uma extensão virtual de Kelvin, projeção de sua (in)consciência dilacerada. De certo modo, ao se apaixonar por Hary, ele se apaixona por si mesmo. "Queremos é um espelho!", dissera Snout. Hary é uma parte não-resolvida de Kris Kelvin. Como Hary afirmara, certa vez,“ é possível que [Kris] não me ame, [mas] apenas queira se defender de si mesmo”. É como se carregássemos em nós o irresoluto, o perdido, o enigmático que não sabemos nos desvencilhar. Na Primeira Parte de Solaris, Kris aparece se desvencilhando de pápeis e fotos antigas - uma delas é de Hary, sua ex-mulher. Mas dentro de si, ele ainda não conseguira resolver as dilaceraçõies deste passado. Seria o oceano de Solaris que iria materializar seus devaneios interiores. O que Tarkovski sugere é que não podemos descartar o que ainda está irresolvido dentro de nós. Na verdade, as cenas de abertura de Solaris mostram um Kelvin pensativo diante da Natureza exuberante. Ele possui uma expressão de melancolia e de crise interior.

    O filme Solaris começa com a experiência “mística” de Burton e termina com a de Kelvin. Depois de ter passado por Solaris, Burton não conseguiu ser mais o mesmo. Por exemplo, na primeira parte do filme, a cena de seu trajeto da casa de campo de Kris Kelvin até a metrópole, com seus fluxos de néon e de carros em alucinada velocidade, é quase que uma viagem interior. Nela, Burton parece imerso em si, sendo conduzido pela máquina. Ele deixa-se conduzir. O carro o conduz, tal como ele é conduzido pela sua experiência "mística" em Solaris. Sua expressão é de preocupação contida pois o ceticismo de Kris Kelvin o frustrou terrivelmente.


    Em Solaris, a presença da tela imagética é constante. É através dela que tomamos conhecimento da experiência de Burton. É através dela que sabemos da experiência trágica de Guibarian, um dos tripulantes que cometeu suicídio. É através dela que estamos, nós, entrando em contato com a narrativa de Solaris. Para Tarkovski a vida está na tela e a tela está na vida, como interfaces reflexivas de uma única experiência – a experiência de nós mesmos. Pois cada depoimento da tela diz respeito a cada um dos personagens que a assistem. Inclusive, entre os tripulantes da Estação orbital existe uma reflexão subsistente sobre o que levou Guibariam a cometer suicídio (afinal, ele não parecia ser nenhum suicida em potencial). Aquele gesto alucinado tornou-se objeto de uma reflexão filosófica no salão da biblioteca da Estação orbital. Kris observa: “ Guibarian não perdeu o ânimo. Há coisas piores ainda. Morreu porque não enxergava a saída. Não sabia que isto não acontecia apenas a ele.” E mais adiante, num de seus devaneios, dirá: “Guibarian não morreu de medo. Morreu de vergonha. A vergonha salvará a humanidade.”

    No filme de Tarkovski, o preto-e-branco e o colorido se sucedem, como se expressasse uma mescla de sentimentos e de percepções sobre o desconhecido (a Natureza e dentro dela, nós mesmos). Além disso, outro detalhe importante na cenografia de Solaris é a presença de ícones da modernidade e do seu imaginário cientifico (bustos de filósofos antigos, seja na casa de campo de Kelvin, seja na Estação orbital); ou até imagens de santos da Igreja ortodoxa. Enfim, estamos diante de uma justaposição quase-kitsch de ícones do tempo passado e do tempo presente. Dialogamos com o tempo futuro – Solaris é o tempo futuro, de uma situação-limite que atinge a civilização e seu dogma principal: a Razão clássica tal como se constituiu desde Sócrates (os bustos parecem ser de filósofos gregos antigos). Ciência, Arte, Religião – existe um intenso diálogo entre as formas supremas de virtualização do homem. Ao centro, o homem e suas inquietações existenciais. Por exemplo, um dos grandes temas filosóficos de Solaris são suas reflexões sobre o amor, o afeto universal que une pessoas, criador de laços societários através do tempo. Aliás, foi o tempo ao lado de Hary - tempo passado e tempo presente – que constituiu seus laços de afetividade com sua visita. Scout já disse: “Se ela passar muito tempo ao teu lado, ela se tornará humana”. Na verdade, em Tarkovski, o tempo constitui o ser humano, pois é com ele que se sedimenta os laços de amor. Como diz Saint-Exupéry (no conto “O Pequeno Príncipe”): para se cativar é preciso ter tempo. Existe um tratado sobre o amor em Solaris. Como já destacamos acima, é Kris Kelvin que diz que o homem ama o que pode perder – eis novamente Exupéry. Ou ainda: “Eu estou me tornando humana, eu estou amando.”

    Solaris é um planeta vivo. Aliás, o oceano que cobre o planeta é como um imenso cérebro que se comunica com os homens. Ele se comunica através dos homens, alucinando-os com seus próprios fantasmas interiores. É quase um espelho que inquieta uma civilização incapaz de se auto-refletir. “Queremos um espelho. O homem precisa do homem” – clama Snout no diálogo na biblioteca da Estação orbital (destacado acima). Enfim, a civilização da ciência é incapaz de conhecimento de si propria. É estranha a si mesma. As visitas aparecem como seres estranhos quando são partes de cada um de nós. O drama de Solaris é quase um sonho. Estamos num mundo de sonhos, num drama surrealista, cientificamente surrealista. De certo modo, voltamos às pinturas de Pieter Brugel (e talvez, de Hieronimus Bosch), artistas do Renascimento do século XV. Talvez Tarkovski seja o Brugel ou o Bosch do século XX.

    É interessante que as visitas apareçam após os tripulantes adormecerem. Ao acordarem, elas estão lá, presentes, diante de deles, como se os sonhos extrapolassem o momento do sono e se materializassem diante dos tripulantes. Para sonhar, é preciso que adormeçamos. As visitas eram sonhos diurnos. Na cena da biblioteca, Scout dissera: “Aqui está o problema - o homem perdeu o sono”. Se perdeu o sono, torna-se incapaz de sonhar, pois em Solaris, o sonho diurno deriva do sonho noturno;é parte (e extensão) dele. Com Tarkovski, Sigmund Freud – e sua Interpretação dos Sonhos, e Ernst Bloch, com suas reflexões sobre as utopias como sonhos diurnos, dialogam intensamente. Em Solaris, o inconsciente tornou-se carne, como o Espírito Santo e o Cristo dos Evangelhos. Solaris exibe a parousia do inconsciente humano, que – com isso - deixa de ser inconsciente. Torna-se autoconsciência de um vazio criado pela civilização do Capital e da Técnica. Kelvin diz para Snout: “ Escuta, Snout, por que ele [o oceano de Solaris] nos tortura tanto? Perdemos nossa percepção do Cosmo. Os Antigos não tiveram este problema. Nunca perguntaram porquê. Lembra do Mito de Sísifo...?” .

    Na verdade, somos nós que nos torturamos a nós mesmos, não o Oceano de Solaris. Para Tarkovski, a Razão Moderna interroga a si mesma porque perdemos a concepção do Cosmo. A Ciência moderna é sintoma desta perda. E suas interrogações acusam seus próprios limites, não limites do paradigma da Ciência moderna, mas de uma civilização, a civilização do capital, que a erigiu como forma de conhecimento humano primordial. Diz Kelvin: “O sentido da vida e outros temas eternos pouco preocupam um homem feliz. Estes problemas só o preocupam no fim da vida. Mas ninguém sabe quando chega o fim. Por isso, estamos sempre com pressa.” A civilização do progresso científico-tecnológico, a civilização do capital, é uma civilização da infelicidade universal. É a civilização da pressa universal. Como disse Saint-Exupéry, “os homens não têm tempo de conhecer coisa alguma”. Por isso são incapazes de amar, pois para se cativar e amar é preciso ser paciente, ter tempo e criar laços sociais e afetivos. É a condição primordial da sociabilidade plena, do amor á humanidade que atormentava tanto Tolstoi, incapaz de ver sua realização efetiva no mundo do capital.

    por Giovanni Alves (2004)
    Extraído de http://www.telacritica.org/solaris_tarkovski.htm