por Graziela Wolfart
Extraído de http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3108&secao=323 Ao refletir sobre a importância da série de dez filmes Decálogo, do diretor polonês Krzysztof Kieslowski, a jornalista e crítica de cinema, Neusa Barbosa, lembra que os dez mandamentos, inspiração para a obra, “falam de não matar, não roubar, não cobiçar a mulher do próximo. Eles tentam cobrir algumas das que seriam as questões principais da vida, mas não conseguem. A primeira discussão é essa: os dez mandamentos encerram toda a ética da humanidade, tudo o que se precisa saber ou pensar sobre o comportamento humano? Não. Mesmo que se fizessem 20 mandamentos, 30, 50 ou 100 mandamentos, também não esgotaria, porque a vida humana é complexa. Isso que Kieslowski coloca na obra dele. A vida é mais complexa do que nossas tentativas de colocar regras nas coisas”. Na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, Neusa considera que “Kieslowski olha para a vida humana e tenta ser honesto com o retrato da humanidade. Ele não está querendo criar receitas com seus filmes. Os personagens que ele cria e coloca em determinadas situações e interações uns com os outros, mostram que ele tenta olhar para a vida humana e evidenciar o quanto ela é rica, complexa e difícil também”. Ela não percebe uma ética clara nos filmes de Kieslowski. “Existe um amor pelo ser humano nos filmes dele, um amor pelos personagens em todas as suas fraquezas, limitações, até sob os personagens marginais, criminosos, ele tem um enfoque que permite que vejamos o ser humano, não um monstro, não um maniqueísta. Ele não julga os personagens”.
A série de filmes Decálogo está sendo exibida na Unisinos, como parte da programação de Páscoa IHU 2010. Nesta semana, serão exibidos os Decálogos V, VI, VII, VIII, IX e X.
A jornalista, crítica e pesquisadora paulistana Neusa Barbosa trabalhou no jornal Folha de S. Paulo e na revista Veja S. Paulo. Atualmente, edita o site "Cineweb" (www.cineweb.com.br), especializado em cinema, e colabora com as revistas Bravo e Wish Report. Especialista em crítica de cinema, costuma participar da cobertura de festivais internacionais, como Cannes e Veneza, e nacionais, como Brasília, Recife e Gramado. Além disso, dedica-se a cursos sobre cinema. Entre seus livros publicados citamos Gente de Cinema – Woody Allen (Editora Papagaio, 2002), e Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão: Analisando Cinema (Imprensa Oficial SP, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que caracteriza a carreira do diretor polonês Krzysztof Kieslowski?
Neusa Barbosa – Ele foi um dos diretores mais importantes do século XX. A obra dele repercute até hoje, principalmente pela maneira como retratou as relações humanas. Ele é um diretor humanista, acima de tudo, e conseguiu fazer filmes de uma enorme sensibilidade e uma obra que não foi muito grande, em termos numéricos, mas com filmes muito intensos, e que influenciaram vários outros diretores.
IHU On-Line - Como você define ou qualifica a obra Decálogo, projeto de dez médias-metragens?
Neusa Barbosa – Esse projeto é interessante, porque a Polônia é um país católico, de tradição católica. Mas no momento em que Kieslowski se torna cineasta, eles estão sob o regime comunista e, na verdade, escolher o Decálogo, que tem uma correspondência com os dez mandamentos cristãos, não deixa de ser uma provocação kieslowskiana. A maneira como ele aborda as situações dos filmes, em cada um deles, não é nada cristã. Quem achou que ele faria uma abordagem religiosa, perdeu o bonde. É uma provocação artística, principalmente em termos políticos. É algo curioso, porque ele produzia para a televisão. E a televisão com certeza era estatal, num regime comunista. Ele estava testando os limites. E, ao fazer os filmes, ele não respeita uma liturgia católica, porque em todos os filmes as problemáticas pessoais de cada uma das pessoas são profundamente humanas e também há a interferência do acaso, que é muito forte na obra do Kieslowski. O acaso é tão importante quanto a vontade, o desejo, o sonho do personagem; é o acaso que muda tudo. E o acaso é algo cego, que não é moral, não é religioso. O acaso é como um raio que cai na cabeça de alguém. E não teve diretor que retratou de maneira melhor a dualidade da vida humana, mostrando que a intenção, o sonho e tudo o que o ser humano faz deliberadamente, achando que tem livre arbítrio, é algo que dura até que o acaso modifique a situação. Mas, reitero, não é um acaso religioso. Kieslowski não era uma pessoa religiosa. Ele era um humanista.
IHU On-Line - Como as questões da ética e da complexidade da vida humana aparecem na obra?
Neusa Barbosa – Em muitos de seus filmes, no Decálogo e fora dele também, Kieslowski coloca os personagens confrontados com dilemas morais, pois têm que fazer escolhas muito drásticas. A questão ética percorre toda a obra dele. Por exemplo, no filme Não matarás, tem toda uma discussão sobre alguém que comete um crime hediondo, mas existe também a pena de morte, que é algo eticamente discutível. Ele nunca facilita. Os filmes do Kieslowski nunca são maniqueístas. Ele sempre tenta compreender a complexidade das questões de vários ângulos.
IHU On-Line - Como entender que os dez mandamentos tenham inspirado a obra cinematográfica Decálogo?
Neusa Barbosa – A própria existência dos dez mandamentos tem uma preocupação ética por trás. Fazer dez mandamentos para pautar a conduta humana, significa procurar impor limites éticos para as coisas, definir o que é crime, que limites se devem respeitar. E isso encontra um espaço na doutrina religiosa. Só que Kieslowski, ao colocar isso como tema, faz uma provocação artística mesmo. Ele quer colocar isso em questão, que não dá para seguir uma regra 100%, porque a vida humana é muito mais complicada do que isso. Por mais que você queira seguir um Abraão, não vai conseguir totalmente. E daí você fica sozinho com a sua ética, com a sua vontade, e tendo que lidar com o imponderável, que é um acaso, um acidente, que é uma escolha a fazer naquele momento. A obra Decálogo tem várias questões. Os dez mandamentos falam de não matar, não roubar, não cobiçar a mulher do próximo. Eles tentam cobrir algumas das que seriam as questões principais da vida, mas não conseguem. A primeira discussão é essa: os dez mandamentos encerram toda a ética da humanidade, tudo o que se precisa saber ou pensar sobre o comportamento humano? Não. Mesmo que se fizessem 20 mandamentos, 30, 50 ou 100 mandamentos, também não esgotaria, porque a vida humana é complexa. Isso que Kieslowski coloca na obra dele. A vida é mais complexa do que nossas tentativas de colocar regras nas coisas. Embora o fato de ter uma ética seja positivo.
IHU On-Line - O que caracteriza a ética do cotidiano e o sentido da vida humana na obra de Kieslowski?
Neusa Barbosa – Kieslowski olha para a vida humana e tenta ser honesto com o retrato da humanidade. Ele não está querendo criar receitas com seus filmes. Os personagens que ele cria e coloca em determinadas situações e interações uns com os outros, mostram que ele tenta olhar para a vida humana e evidenciar o quanto ela é rica, complexa e difícil também. Não sei se podemos ler uma ética tão clara nos filmes dele. Existe um amor pelo ser humano nos filmes dele, um amor pelos personagens em todas as suas fraquezas, limitações, até sob os personagens marginais, criminosos, ele tem um enfoque que permite que vejamos o ser humano, não um monstro, não um maniqueísta. Ele não julga os personagens.
IHU On-Line - Qual é a visão da "Lei de Deus" de Kieslowski?
Neusa Barbosa – Não sei se Kieslowski acreditava em Deus. Pelos filmes, para mim, passa que não. Ele não seguia os dez mandamentos. Vejo que os dez mandamentos no filme aparecem como um pretexto para ele olhar para a situação das pessoas, naquele momento, naquele lugar. Não acho que vamos ver lei de Deus nos filmes do Kieslowski, vamos ver a lei dos homens. Não vejo religião nos filmes do Kieslowski a não ser para colocar em dúvida, para mostrar que a religião não dá conta da complexidade da vida humana. Talvez ele nem fosse ateu. A leitura que faço é que ele não está reafirmando a lei de Deus nos filmes, mas a está colocando em questão, e está refletindo sobre os limites que ela tem. Kieslowski faz muita falta, sinto muita falta do toque que ele tinha para contar suas histórias, com delicadeza e intensidade. Ele não tem um herdeiro à altura. Sinto saudades dele.
Para saber mais:
* "Decálogo" de Kieślowski: o cinema repensando a ética, artigo de Moisés Sbardelotto, publicado na IHU On-Line número 321, de 15-03-2010;
* O Decálogo de Kieślowski e o debate sobre os Mandamentos, entrevista com Marcus Mello, publicada na IHU On-Line número 321, de 15-03-2010;
* Um cinema humanista de primeira qualidade, entrevista com Carlos Gerbase, publicada na IHU On-Line número 322, de 22-03-2010.