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É difícil qualificar o que o diretor polonês Krzysztof Kieślowski (1941-1996) conseguiu realizar em sua obra "Decálogo" (1988), um projeto de dez médias-metragens. Seria um filme dividido em dez partes ou uma série para a televisão? Uma obra laica, já que nunca se refere a Deus, ou que possui uma teologia profunda, cujo título apenas faz referência? Seria uma obra que faz refletir sobre graves questões éticas que embasam o agir humano, ou, pelo contrário, apresenta a complexidade da vida humana, mostrando que qualquer lei moral ou valor ético são de um simplismo quase infantil?
O próprio Kieślowski nos ajuda a desfazer um pouco o mistério de sua obra. "Durante 6.000 anos, essas regras [os Mandamentos] estiveram inquestionavelmente certas. E, mesmo assim, nós as desobedecemos todos os dias. As pessoas sentem que algo está errado na vida. Há uma espécie de atmosfera que faz com que as pessoas, agora, se voltem para outros valores. Elas querem contemplar as questões básicas da vida, e provavelmente é essa a real razão para querer contar essas histórias [em 'Decálogo']".
A ética do cotidiano
Em "Decálogo", as dez histórias, independentes, possuem uma unidade temática e narrativa rara. Kieślowski manteve a mesma equipe técnica durante a realização de todos os episódios, com exceção do diretor de fotografia, que mudava em cada filme. A série completa, originalmente, foi produzida para a TV polonesa, coescrita por Krzysztof Piesiewicz, com trilha sonora de Zbigniew Preisner.
As dez histórias se passam em um conjunto residencial da Varsóvia, na Polônia contemporânea, onde pessoas comuns enfrentam problemas cotidianos, mas que apresentam profundas questões existenciais sobre amor, culpa, solidão, amizade, tristeza, medo, colocando em xeque o sentido da condição humana.
A obra, muito aclamada pela grande maioria dos críticos, é hoje considerada a obra-prima de Kieślowski, um dos diretores europeus mais influentes da história do cinema. É autor de outros clássicos como "A dupla vida de Veronique" (1990) e a "Trilogia das Cores" ("A liberdade é azul", 1993, "A igualdade é branca" e "A fraternidade é vermelha", ambos de 1994). Com "Decálogo", Kieślowski ganhou nove prêmios internacionais, incluindo o prêmio da crítica da 13ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, de 1988, e o prêmio FIPRESCI do Festival de Cinema de Veneza do mesmo ano.
O projeto inicial da obra envolvia a produção de um pequeno filme sobre cada um dos Dez Mandamentos, a ser exibido na TV local. Mas Kieślowski preferiu uma reflexão mais ampla, a partir da decadência dos valores em uma Polônia em transformação durante o século XX, marcada pelo nazismo e pelo ateísmo. Ao iniciar os trabalhos, porém, preferiu retirar todas as referências históricas e geográficas locais e deu dimensões mais universais à obra.
Assim, mesmo que a história se passe em um apartamento frio e monótono de um país do Leste Europeu, na verdade, dentro daquelas paredes, desenvolve-se um drama universal: um pai e professor universitário, dividido entre a crença científica e a fé religiosa; uma mulher que engravida de seu amante e resolve abortar; outra mulher que, para procurar seu marido desaparecido, pede ajuda a um antigo amante; uma jovem de 20 anos que descobre, por meio de cartas escritas pela mãe, que o homem viúvo com quem vive não é seu verdadeiro pai; três personagens (um desempregado, um taxista e um advogado novato) reunidos por causa de um crime; um jovem que declara seu amor a uma vizinha; uma garota que entrega sua filha para a avó criar; o encontro entre uma pesquisadora judia com sua ex-professora universitária que, há 45 anos, negara-lhe ajuda durante a Segunda Guerra Mundial; uma mulher que se envolve com um jovem amante após descobrir a impotência sexual de seu marido; uma família em busca de segurança após a morte de seu patriarca, um filatelista, que deixou uma grande fortuna.
Histórias singelas e comuns, mas que questionam profundamente, em cada decisão, em cada circunstância, as "certezas" da vida. Nem tudo é preto ou branco: é em uma zona incerta que a desobediência dos personagens a um dos mandamentos bíblicos se coloca. Decisões certas ou erradas? O espectador não é convidado a dar seu veredito final: espera-se que ele reflita eticamente: o que eu faria em seu lugar?
Os desafios da convivência humana
Foi por isso que outro grande diretor do século XX, Stanley Kubrick, do clássico "Laranja Mecânica" (1971), relutou em escrever um posfácio ao livro publicado com os roteiros de "Decálogo", exatamente para não simplificar e reduzir a obra. Porém, afirma Kubrick, Kieślowski e Piesiewicz "tiveram a habilidade muito rara de dramatizar suas ideias, em vez de apenas falar sobre elas". Ao apresentá-las por meio da ação dramática da história, comenta Kubrick, "eles ganharam o poder adicional de permitir que os espectadores descubram o que realmente está acontecendo", em vez de simplesmente ficarem sabendo por meio de um narrador. Segundo ele, em "Decálogo", "você nunca vê as ideias vindo e só percebe muito depois o quão profundamente elas atingiram o seu coração".
Em época de preparação para a Páscoa, a obra irá permitir uma reflexão profunda sobre as possibilidades e os limites éticos da convivência humana nas situações mais comuns do dia-a-dia. Em uma análise cristã, a Páscoa nos relembra as consequências extremas que nossas decisões podem acarretar, mesmo que vislumbremos sempre a vitória, manifestada na Ressurreição de Cristo. Em uma perspectiva laica, a vida nos propõe desafios e situações em que nos é exigido um posicionamento, uma resposta pessoal. Nossa esperança é que essa contrapartida pessoal nos leve à felicidade. Por isso, acompanhando as histórias de "Decálogo", podemos pensar sobre a nossa postura ética diante de situações extremas que talvez ainda não vivemos, ou diante de situações comuns que enfrentamos cotidianamente, mas cujas consequências passam-nos despercebidas.
Nesse sentido, há em toda a série um personagem anônimo, interpretado por Artur Barciś, que não fala absolutamente nada, em nenhum dos filmes, apenas presenciando os momentos chave das histórias, sem nunca tomar parte neles. Alguns veem nesse personagem a representação do divino. Mas, talvez, essa seja a postura que nós, enquanto espectadores, somos chamados a ter: durante a exibição, apenas acompanhar de perto tudo aquilo que os personagens vivem, sem julgá-los. Depois que as luzes se acendem, do lado de fora da sala de exibição, nossa vida diária nos oferecerá, talvez, as mesmas situações. E, nesse momento, seremos convidados a fazer uma escolha pessoal, não mais embasada em "tábuas de pedra", mas sim em "tábuas de carne", em nossos corações, como diria Paulo de Tarso, séculos mais tarde, a respeito do Decálogo bíblico. Para que "vivais e sejais felizes, e vossos dias se prolonguem", como disse Moisés, há 6.000 anos, ao transmitir os mandamentos ao povo.
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