Extraído de http://www.cinereporter.com.br/criticas/decalogo/
“Decálogo” (Dekalog, Polônia, 1987), do grande diretor polonês Krzysztof Kieslowski, é um projeto difícil de classificar e árduo de descrever. Alguns críticos preferem vê-lo não como um filme, mas como dez médias-metragens independentes entre si. Eles não estão errados, mas também não estão certos. Difícil de entender? É o seguinte: as dez histórias independentes de “Decálogo” possuem uma unidade temática e narrativa rara. Você pode ver um só episódio ou os dez, e então perceber conexões aparentemente invisíveis entre elas. De qualquer forma, a minissérie filmada para a TV polonesa está sendo, desde 2000, comercializada como um único pacote de três DVDs, nos EUA.
O formato é virtualmente perfeito para introduzir o espectador num dos projetos mais densos e belos já formatados para a telinha da TV. “Decálogo” é Kieslowski – o último dos grandes cineastas europeus a beber na fonte do existencialismo, a exemplo de Bergman e Antonioni – na plenitude de seus poderes de dramaturgo. Nas dez histórias, todas ambientadas em um conjunto residencial de Varsóvia, pessoas comuns enfrentam problemas cotidianos que se manifestam em diversas camadas de significados. Nas histórias, Kieslowski propõe uma discussão livre sobre temas universais da condição humana: amor, culpa, solidão, amizade, tristeza, ética, medo.
A idéia inicial do cineasta, que escreveu os dez roteiros junto com o parceiro Krzysztof Piesiewicz, era fazer um pequeno filme sobre cada um dos Dez Mandamentos. O projeto partiria de uma reflexão mais ampla a respeito da decadência dos valores católicos em uma Polônia transformada durante o século XX em terra devastada, pelos nazistas, e depois em território de ateísmo obrigatório, pelos comunistas. Enquanto escrevia as histórias, contudo, KIeslowski mudou de idéia. Retirou todas as referências à política, ao tempo e ao país, e deu dimensões mais universais à narrativa.
Além disso, o diretor não cometeu o erro de restringir cada história à abordagem de um único mandamento. Essa abordagem, pelo contrário, era sempre fluida, mera desculpa para a investigação de problemas que todos nós vivemos, em algum momento de nossas vidas. O fio narrativo comum é o espaço em que as tramas se desenrolam. O conjunto de apartamentos, com sua arquitetura monótona típica dos países do Leste europeu, sugere que, dentro de cada uma daquelas janelas, um drama universal e, ao mesmo tempo, particular se desenrola. Kieslowski sugere ter escolhido, quase aleatoriamente, dez dessas histórias para narrar.
Agindo assim, o diretor conseguiu produzir uma pequeno conjunto de filmes que pode ser assistido tanto como um projeto único quanto como dez pedaços de vida independentes. Coletivamente, “Decálogo” ganha ares de obra-prima; trata-se de uma coleção completa de histórias intimistas, que cobre todo o espectro de emoções a que um ser humano está exposto durante sua breve passagem pela Terra. Nesse sentido, “Decálogo” consegue algo que nem mesmo os melhores trabalhos de Kieslowski (“A Dupla Vida de Verónique” e a trilogia das Cores) ousou atingir: transcendência. A soma dos dez fatores supera, e muito, o valor individual de cada um deles. É um caso atípico em que 2 mais 2 são 5.
Quando se observa os dez pequenos filmes como um conjunto único, fica difícil apontar destaques. Os episódios têm uma admirável coerência e uma força coletiva inigualável. Entre os meus preferidos está o terceiro, em que uma mulher desesperada bate à porta da casa de um ex-amante, em plena noite de Natal, e pede a ajuda dele para encontrar o marido desaparecido. O sexto, que narra a história de um rapaz tímido que se apaixona por uma vizinha e adquire o hábito de espiá-la e segui-la sempre que tem chance, é também surpreendente. Mas todas as histórias, de certa forma, o são. Elas estão muito distante do tipo de narrativa clássico, com começo, meio e fim bem demarcados. São pequenas fatias de vida, como se o Robert Altman de “Short Cuts” fizesse um filme menos dramático e enfocasse problemas mais banais.
Kieslowski filmou os dez episódios com diferentes diretores de fotografia, mas a unidade visual é bastante evidente. Ele também providenciou que os diferentes protagonistas de cada episódio aparecessem, como figurantes, em outros; assim, o espectador atento pode reconhecer o médico do episódio 2 dividindo um elevador com o casal que protagoniza o episódio 3, e assim por diante. Há ainda um personagem misterioso, que não tem nome e jamais abre a boca, que aparece nos dez episódios, observando a ação sem nunca tomar parte dela. O sujeito é um mistério que Kieslowski nunca quis elucidar. Ele só pediu que o “homem sem nome” não servisse de distração para os verdadeiros mistérios que quis apresentar nos enredos de cada história. Que assim seja. “Decálogo” é cinema em um nível de excelência que não existe mais, obrigatório na coleção de qualquer cinéfilo que se interessa pelos mistérios da natureza humana.
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