quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

18/12: O Profeta (Jacques Audiard, 2009)

O Profeta - Jacques Audiard (2009)

Sinopse
Condenado a seis anos de prisão, Malik El Djebena, meio árabe, meio córsico, é analfabeto. Ao chegar à prisão, totalmente sozinho, ele parece mais jovem e mais frágil do que os outros presos. Ele está com 19 anos. O líder da facção dos córsicos dá a Malik uma série de “missões” a serem cumpridas. Ele aprende rápido e se fortalece, ganhando a confiança do chefe da facção. Malik usa toda a sua inteligência para desenvolver discretamente o seu plano. Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 2009. Duração: 155 minutos

Crítica: O Profeta (Jacques Audiard, 2009)

por Régis Trigo
Extraído de http://www.cineplayers.com/critica.php?id=1955


Certamente um dos melhores filmes exibidos no Brasil em 2010.

Desde que estreou no Festival de Cannes de 2009, quando disputou cabeça a cabeça a Palma de Ouro com A Fita Branca, O Profeta vem sendo considerado uma unanimidade entre a crítica (inclusive a americana). Com tamanha credencial, era de se esperar que o novo trabalho do diretor Jacques Audiard tivesse algo de especial, que ao menos driblasse os clichês do subgênero de “filmes de prisão”. Agora, quase um ano após essa peregrinação internacional, O Profeta aporta na salas brasileiras. E a conclusão é: não é que os críticos estavam certos? O Profeta é, de fato, cinema de alta qualidade.

A narrativa começa com a detenção do jovem Malik El Djebena (Tahar Rahim). Com um olhar assustado, ele ouve os gritos de outros detentos que se encontram nos corredores ao lado. Malik conversa com o defensor público. Ele sabe que foi condenado a 6 anos, mas parece não dar conta da gravidade da situação. O advogado logo deixa claro: “Você está entre os grandões”. Ele é transportado para a prisão. Sentado à janela do camburão, observa as últimas paisagens de uma Paris que está prestes a ficar para trás. Ao chegar ao presídio, Malik passa pela revista tradicional. As cicatrizes que coleciona pelo corpo indicam um passado difícil. Ficamos sabendo que sua condenação decorre de uma agressão a um policial. Como a maioria dos outros presos, Malik se considera inocente. De fato, não há maldade em seu rosto ainda adolescente.

Em certo sentido, Malik parece um recém-nascido. Não sabe ler nem escrever. É descendente de árabes, mas a religião muçulmana é algo que lhe diz muita coisa (ele come carne de porco sem qualquer problema). Fora dali, não tem pais, parentes ou amigos a quem possa recorrer. A prisão será seu primeiro lar.

Nos seus primeiros dias, Malik tenta ficar isolado. Passa o tempo trabalhando numa oficina de confecção de calças jeans e andando no pátio a esmo. Ele observa que os detentos se dividem em dois grandes grupos: os muçulmanos e os corsos, considerados presos políticos. Estes últimos são chefiados por César Luciani (Neils Arestrup). O poder de César no interior daqueles muros é tanto que ele circula livremente pelos corredores da prisão, recebe informações privilegiadas de funcionários, tem direito a audiências com seu advogado à hora que bem entender, e, claro, carrega sempre consigo um telefone celular.

Um dia, uma nova leva de muçulmanos chega à prisão. Entre eles está o árabe Reyeb, que servirá de testemunha de um caso importante. De fora do presídio, César recebe a ordem de assassiná-lo. Ele vê no tímido Malik a pessoa perfeita para a tarefa. César o procura com uma oferta irrecusável. Malik terá que matar Reyeb. Se recusar, ele será morto pela gangue de César. O confronto entre Malik e Reyeb é violento. Prepare-se: a cena é filmada de forma seca, realista, sem floreios. Dificilmente o espectador passará ileso por ela. É o batismo de Malik. Dali pra frente, sua proteção na prisão está garantida.

Lá pelas tantas, o roteiro de O Profeta tem o seu ponto de virada. Na televisão, é anunciado que o Presidente Nicolas Sarkozy aprovou a legislação que prevê a transferência dos presos de origem corsa. Para evitar o isolamento, César se aproxima de Malik. Em certo sentido, ambos passam a representar o pai e o filho que não tiveram ou não conheceram no seu devido tempo. César mexe seus pauzinhos e faz com que Malik ganhe o direito de sair periodicamente da prisão pelo espaço de um dia. Nas ruas, Malik se transforma no mensageiro de César. Faz contatos, organiza novos crimes, mantém a aquela estrutura organizacional ainda de pé, por assim dizer. Não demora muito, e Malik logo começa a usar essas saídas para iniciar seus próprios negócios, que envolvem basicamente o tráfico de haxixe. É o filho que aos poucos vai se desgarrando do pai.



O Profeta é um tipo raro de filme que funciona em praticamente todos os seus níveis. No tema macro, o roteiro aborda bem a rivalidade e o xenofobismo entre árabes e corsos. Considerando que o presídio é um microcosmo da França atual, não é difícil perceber que Audiard nos quer mostrar a turbulência social que o País atravessa. Já no tema menor, O Profeta mostra que o sistema penitenciário francês é tão precário, ineficiente e corrupto quanto de qualquer outra parte do mundo.

O Profeta é um exemplo de personagens bem desenvolvidos. Tome-se o exemplo de César: seu nome não foi escolhido à toa. Dentro daquele mundo, ele é um verdadeiro imperador. Sempre seguido por seu asseclas, ele tem o poder de comandar o crime organizado. Seu modo de andar, com as mãos nos bolsos do casaco, revela um certo orgulho com a posição; os cabelos penteados para trás, um lado vaidoso. E são justamente os cabelos despenteados (quando César acorda no meio da noite e senta na beirada da cama), que marcam o início da derrocada do personagem. Num certo sentido, César é uma espécie de Príncipe Salinas. Ele sabe que sua geração são os leopardos de antigamente que, num futuro muito próximo, será substituída por uma nova casta de criminosos. Na prisão também vale a regra não tipificadas de que as coisas devem mudar para ficar como estão.

Malik, por sua vez, é daqueles adolescentes que foram educados pela escola da vida. Aos 19 anos, quando é detido, seu currículo não exibe qualquer formação acadêmica ou experiência profissional. Na prisão aprenderá a ler, a escrever e a desempenhar um ofício. Malik fala pouco e escuta mais. E aprende rapidamente a engrenagem das coisas. Sua descendência árabe permite que ele transite bem entre os dois mundos, manipulando ambos os lados de acordo com os seus interesses. Numa comparação, Malik entra na prisão como um jovem Michael Corleone e sai dela como um Scarface.

O roteiro de O Profeta abre espaço para outro importante personagem: o árabe Ryad. Instrutor de Malik, eles se tornam grandes amigos. Ryad acabara de debelar um câncer nos testículos. De fora da prisão, ele mantém contato com Malik por cartas. Tem dificuldade de se reintegrar à sociedade. Aceita um trabalho de operador de telemarketing. Tão humilhante quanto o salário miserável que lhe pagam é ter que alterar sua identidade para um nome mais afrancesado. O drama de Ryad serve para o diretor dar o recado: para muitos detentos, a verdadeira pena começa a ser cumprida fora da cadeia.

A direção é de Jacques Audiard. Nascido em 1952, o cineasta possui apenas seis filmes no currículo. Até então, seu melhor filme fora Sobre Meus Lábios, em que contava a interessante e ao mesmo tempo improvável história do relacionamento entre um surda e um ex-presidiário. No Brasil, sua obra mais conhecida era De Tanto Bater Meu Coração Parou, que narrava a trajetória de um homem dividido entre a pressão de seguir a carreira de corretor imobiliário, tal e qual o pai (interpretado pelo mesmo Neils Arestrup) ou de enveredar pela carreira de pianista, tal e qual a mãe. O Profeta é, de longe, seu projeto mais ambicioso e, sem dúvida, o mais bem sucedido. A temática permite que ele explore ao máximo seu estilo de filmagem em closes, com a câmera praticamente colada no rosto dos atores, acentuando o tom documental da história. Talvez o principal defeito de Audiard é que seus filmes demoram demais a ficar prontos.


Se Audiard dá as cartas atrás das câmeras, na frente delas o elenco é de primeira. O destaque, claro, vai para a dupla central. No papel de Malik, o jovem Tahar Rahim mostra um talento de quem veio para ficar. Sua interpretação é mais baseada nos olhares, nos gestos e na movimentação corporal. Todas essas características se encaixam perfeitamente com a personalidade do seu personagem, que aprende mais observando e escutando do que falando. Já o veterano Niels Arestrup, na pele do temível César Luciani, não fica atrás. As marcas de expressão de seu rosto (já vai longe o visual mais jovial do drama musical Encontro com Vênus), conferem uma autenticidade natural ao seu personagem. Mesmo sem conhecermos seu passado, ele nos parece tão real que conseguimos imaginar as várias batalhas que a vida lhe reservou, algumas políticas em nome da causa da Córsega, outras nem tanto.

Alguns poderão implicar com a duração relativamente excessiva, ou do ingrediente sobrenatural introduzido no roteiro (que, inclusive, justifica o título do filme). Mas se encarados como defeitos, são detalhes menores que não retiram o impacto da obra.

O Profeta é um dos melhores filmes a estrear no Brasil em 2010.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

11/12: Papillon (Franklin J. Schaffner, 1973)

Papillon - Franklin J. Schaffner (1973)

Sinopse
Papillon narra a impressionante determinação de um homem em se libertar das grilhetas que o mantém preso por um crime que sempre declarou ser inocente. Steve McQueen é Henri Charrière, conhecido como Papillon. Acusado e condenado por homicídio tentou por várias vezes a sua sorte em arriscadas fugas, até finalmente conseguir. Dustin Hoffman é Dega, o seu parceiro de prisão. Papillon é um verdadeiro hino à coragem, determinação e disciplina e principalmente ao que um espírito verdadeiramente livre e indestrutível pode conseguir face a desafios terríveis. Um dos grandes clássicos do cinema, com memoráveis atuações de Steve McQueen e Dustin Hoffman. Duração: 150 minutos

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

04/12: A um passo da liberdade (Jacques Becker, 1960)

A um passo da liberdade - Jacques Becker (1960)

Sinopse
Homem que divide a cela numa prisão em Paris com mais de quatro priosioneiros, aceita elaborar um meticuloso plano de fuga com os companheiros. Explêndida e sombria direção, com uma iluminação fantástica, excelente interpretações e um roteiro que é uma verdadeira aula. Maravilhoso testamento fílmico de Becker, sem dúvida seu melhor filme. Duração: 125 minutos

Crítica: A um passo da liberdade (Jacques Becker, 1960)


“A Um Passo da Liberdade” (ou, em tradução literal do título francês Le trou, “o buraco”) conta a história de cinco prisioneiros que tentam escapar da prisão La Santé, em Paris, pelos esgotos.

O diretor e roteirista Jacques Becker insistia que a história era totalmente baseada em fatos reais. Reforça essa suposta fidedignidade o fato de Jean Keraudy, um dos envolvidos no caso real, atuar como Roland, que praticamente é o líder dos fugitivos. É ele, também, que faz uma breve introdução ao filme, antes dos créditos iniciais. Além disso, outros dois participantes na fuga ajudaram na reconstituição dos detalhes, durante as filmagens.

Já bastante doente durante a produção, Becker, que morreria apenas alguns dias depois, teve a ajuda de seu filho, o também diretor Jean Becker, em algumas cenas


O uso de atores não-profissionais em quase todos os papéis principais, aliado aos inúmeros longos planos dando ênfase às tarefas repetitivas da prisão e aos preparativos relacionados à fuga, garantiram uma narrativa naturalista, quase de documentário, que é o ponto alto do filme. O “realismo” é reforçado também pela ausência de qualquer música, até os créditos finais, sendo a trilha sonora composta unicamente pelos mais variados ruídos (como os de buracos sendo abertos em pisos e paredes ou de grades sendo serradas). É impossível não fazermos uma analogia com “Rififi” (“Du Rififi Chez Les Hommes”, dir. Jules Dassin, 1955) e sua antológica cena do assalto, com 27 minutos de duração sem qualquer trilha sonora ou diálogo. Também em “Le Trou”, os ruídos, sem música que os amenize, vão gradativamente criando uma enorme tensão no espectador.

Roland, Manu, Monsigneur e Geo dividem uma cela e planejam a fuga. Quando chega um novo preso para sua cela, Claude, hesitam em inclui-lo nos planos, afinal pode se tratar de um “dedo-duro” plantado ali por conta de alguma suspeita do diretor do presídio. Mais tarde, porém, Claude, que dizia ter sido preso injustamente, por conta de uma acusação falsa de sua esposa, ganha certa confiança dos demais (que nunca é total) e assume algumas tarefas nos preparativos.

As incursões dos presos aos subterrâneos, durante os preparativos, proporcionam cenas marcantes. Quando Manu e Claude conseguem abrir a última passagem e chegar até a rua (sem, no entanto, fugir, já que a fuga seria no dia seguinte, com todos os demais), Claude vê um táxi passando e diz que “quase poderia pegá-lo”. É o típico momento “tão perto, tão longe”.

“Le Trou” é, para mim, filme de prisão e fuga que pode facilmente ser colocados entre os melhores do gênero. Filmaço!

Biografia: Jacques Becker

Apesar de hoje parecer obscuro e desconhecido, Jacques Becker é com certeza um dos maiores diretores de cinema franceses. Responsável pelos maiores filmes franceses nas décadas de 40 e 50, Jacques Becker foi exerceu grande influência sobre a Nouvelle Vague, sobretudo em François Truffaut.

Jacques Becker nasceu em Paris em 1906. Iniciou-se no início da década de 30 como assistente de direção de Jean Renoir, com quem trabalhou até 1940. Em 1941, lança seu primeiro longa metragem solo, Dernier Atout, um pastiche dos trillers americanos. Com seus dois próximos filmes, Mãos Vermelhas (1943 - retrata aspectos dos camponeses franceses na década de 40) e Nas rendas da sedução (1944 - retrata a alta costura parisiense), faz um enorme sucesso de crítica e público, graças a sua extrema habilidade de construir um drama intenso e cativante.

Em 1947 lança O Tonio e a Toninhas onde retrata a classe média suburna parisiense da época, em 1949 lança Rendez-vous de juillet onde critica acidamente a a vida intelectual de Saint-Germain-des-Prés. Em 1952 e 1953, lança respectivamente, duas das maiores obras primas do cinem francês: Casque d'or e Grisbi. Em Casque d'or retrata um trágico romance ocorrido durante Belle Époque francesa. Com Grisbi, graças a acão e a densidade dos ambientes e das personagens, Becker abre caminho à subsequente série de produções de filme noir de que o cinema francês seria fértil nas décadas de 50 e 60.

Entretanto, seus dois filme seguintes Ali Baba et les quarante voleurs (1954) e As aventuras de Arsène Lupin (1957) são fracassos retumbantes. Retorna em grande estilo com Os Amantes de Montparnasse (1958) onde retrata o último ano de vida do pintor Modigliani. Este filme era o último projeto de Max Öphuls, interrompido por sua morte e é retomado por Jacques Becker. Segundo Godard, este “não é um filme, mas a descrição do medo de fazer um filme”.

Mas indubitavelmente seu melhor trabalho é A um passo da Liberdade (1960) onde se afasta do romantismo, que marcara sua carreira e mergulha em um neo-realismo, retratando um eletrizante plano de fuga de prisão de presos franceses. É uma das maiores obras primas do cinema francês, infelizmente um pouco esquecida pelo tempo e ofuscada pelo enorme sucesso da Nouvelle Vague na década de 60.

Já bastante doente durante a produção de A um passo da Liberdade, Becker, que morreria apenas alguns dias depois, teve a ajuda de seu filho, o também diretor Jean Becker, em algumas cenas.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Programação Dezembro 2010: O Cárcere no Cinema

O encarceramento sempre foi um tema recorrente do cinema, que desde os seus primórdios, fascinou-se em exibir em suas telas, os cárceres, os presídios, a claustrofobia de estar atrás das grandes e eminente necessidade do homem tentar escapar dela, através dos mais mirabolantes e audaciosos planos.

No mês de dezembro o Cine Clube Ybitu Katu exibirá dois clássicos filmes sobre tentativas de fuga de prisão e um filme que aborda as relações internas entre os presos. Este último, apesar de recente, recebeu grande destaque em Cannes (Prêmio do Júri em 2009) e na Mostra Internacional de São Paulo de 2009, e é candidatíssimo a se tornar um grande e imperdível clássico com o passar dos anos.

04/12: A um passo da liberdade (Jacques Becker, 1960)
Grande clássico do cinema francês, A um passo da liberdade conta a história de um homem que divide a cela numa prisão em Paris com mais de quatro priosioneiros, aceita elaborar um meticuloso plano de fuga com os companheiros. Explêndida e sombria direção, com uma iluminação fantástica, excelente interpretações e um roteiro que é uma verdadeira aula. Maravilhoso testamento fílmico de Becker, sem dúvida seu melhor filme. Duração: 125 minutos.

11/12: Papillon (Franklin J. Schaffner, 1973)
Papillon narra a impressionante determinação de um homem em se libertar das grilhetas que o mantém preso por um crime que sempre declarou ser inocente. Steve McQueen é Henri Charrière, conhecido como Papillon. Acusado e condenado por homicídio tentou por várias vezes a sua sorte em arriscadas fugas, até finalmente conseguir. Dustin Hoffman é Dega, o seu parceiro de prisão. Papillon é um verdadeiro hino à coragem, determinação e disciplina e principalmente ao que um espírito verdadeiramente livre e indestrutível pode conseguir face a desafios terríveis. Um dos grandes clássicos do cinema, com memoráveis atuações de Steve McQueen e Dustin Hoffman. Duração: 150 minutos

18/12: O Profeta (Jacques Audiard, 2009)
Condenado a seis anos de prisão, Malik El Djebena, meio árabe, meio córsico, é analfabeto. Ao chegar à prisão, totalmente sozinho, ele parece mais jovem e mais frágil do que os outros presos. Ele está com 19 anos. O líder da facção dos córsicos dá a Malik uma série de “missões” a serem cumpridas. Ele aprende rápido e se fortalece, ganhando a confiança do chefe da facção. Malik usa toda a sua inteligência para desenvolver discretamente o seu plano. Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 2009. Duração: 155 minutos

Cartaz Programação Dezembro 2010: O Cárcere no Cinema

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

27/11: Cidade dos Sonhos (David Lynch, 2001)

Cidade dos Sonhos - David Lynch (2001)

Sinopse
Um acidente automobilístico na estrada Mulholland Drive, em Los Angeles, dá início a uma complexa trama que envolve diversos personagens. Rita escapa da colisão, mas perde a memória e sai do local rastejando para se esconder em um edifício residencial que é administrado por Coco (Ann Miller). É nesse mesmo prédio que vai morar Betty, uma aspirante a atriz recém-chegada à cidade que conhece Rita e tenta ajudar a nova amiga a descobrir sua identidade. Em outra parte da cidade o cineasta Adam Kesher, após ser espancado pelo amante da esposa, é roubado pelos sinistros irmãos Castigliane. Duração: 140 minutos.

Crítica: Cidade dos Sonhos (David Lynch, 2001)

por Marina Alves
Extraído de http://cinemacomrapadura.com.br/criticas/84185/cidade-dos-sonhos-2001-84185/


Típico caso de “ame ou odeie” em Hollywood, David Lynch tem como marca pessoal histórias complexas e bizarras, que instigam e confundem o espectador que se propõe a mergulhar no universo onírico do diretor. No caso de “Cidade dos Sonhos” – que em seu título original recebe apenas o nome de uma famosa avenida de Hollywood chamada “Mulholland Drive” – não é diferente. Para desfrutar do cinema de Lynch precisa-se estar escolado: os mínimos detalhes e as mais estranhas cenas aparecem sempre por algum motivo. Nada escapa por entre os dedos do meticuloso diretor que utiliza a objetiva da câmera como uma lupa de investigador, preocupando-se em colher as pistas com cuidado, mas não fazendo questão de organizá-las de modo coerente.

“Cidade dos Sonhos” não é um filme filosófico nem filme que instiga grandes reflexões, mas uma verdadeira aula de linguagem cinematográfica. Alguns dos motivos pelos quais tornou-se um clássico contemporâneo são mais fáceis de observar: David Lynch sempre trabalha com diretores de arte e diretores de fotografia que sabem como fazer emergir da tela um clima sombrio e, para isso, os usos constantes dos cenários em tons de vermelho e azul ajudam a dar personalidade ao filme. Esse recurso foi anteriormente utilizado em outros de seus filmes, como “Veludo Azul” e “Twin Peaks”.

A novidade, entretanto, é o recurso da fragmentação da narrativa, que contribui para dificultar o entendimento do filme. Entender, aliás, é algo que Lynch não espera que aconteça, pois, questionado em entrevistas na época em que “Cidade dos Sonhos” estreou, o diretor fugia das perguntas que culminavam em apelos para dicas de resolução desse quebra-cabeça.


Naomi Watts encarna uma aspirante a atriz que nós conhecemos no decorrer do filme por Betty. A história de Betty é inclusive muito parecida com a história da própria atriz, que demorou cerca de 20 anos para conseguir o reconhecimento da indústria do cinema. Betty, porém, acaba conhecendo uma misteriosa mulher que se envolveu em um acidente de carro e que, olhando para um pôster do filme de Rita Hayworth, resolve adotar o nome da atriz, já que perdeu a memória e não se lembra do seu próprio. Na bolsa de Rita (Laura Harring), elas encontram muito dinheiro e uma estranha chave azul, a primeira grande incógnita do filme que é a responsável pelo turning point mais para frente. Rita acaba lembrando-se de alguns fatos e Betty resolve ajudá-la a decifrar o enigma por trás do misterioso acidente que aconteceu em Mulholland Drive.

Em meio aos testes que Betty realiza para conseguir uma boa personagem em algum filme, as duas protagonistas acabam se apaixonando. Quando Rita acorda e pede que Betty a acompanhe até o Clube Silêncio, finalmente podemos sentir David Lynch no roteiro.
Em uma das cenas mais elogiadas pelos fãs e por parte da crítica que elogiou o diretor, o apresentador do “teatro” tenta nos avisar de que o que estamos vendo é apenas uma ilusão. A trilha sonora envolvente de Angelo Badalamenti dá lugar a uma versão em espanhol da música “Crying” de Roy Orbison, um dos momentos mais intensos da película.


Quando Rita resolve usar a chave azul para abrir a caixa que encontrou no Clube, tudo vira de pernas para o ar. A sensação do espectador é que, ao invés de ter encontrado a peça necessária para resolver o mistério, Rita abriu uma verdadeira caixa de Pandora, liberando a dolorosa verdade cheia de simbolismos das histórias de ambições e sonhos que permeiam Hollywood. Falar além disso seria estragar o exercício de percepção e concentração que David Lynch nos propõe.

Aqueles que procuram uma saída fácil para a trama ou sua auto-resolução ao término dos 145 minutos cometem um terrível engano, pois Lynch nunca gostou de entregar o jogo para seu público e, nesse caso em especial, até mesmo os mais atentos podem se perder. Não existe apenas um final para o filme, possibilitando que criemos tantos finais quanto nossa imaginação permitir. “Cidade dos Sonhos” não é um filme para ser compreendido, e sim absorvido como uma aula de cinema.

sábado, 20 de novembro de 2010

20/11: Uma História Real (David Lynch, 1999)

Uma História Real - David Lynch (1999)

Sinopse
Um retrato lírico da real viagem de um homem através do coração da América. Filmado ao longo da rota de 260 milhas que Alvin Straigt percorreu em 1994, indo de Laurens, Iowa para Mr. Zion, Wisconsin. História Real conta as crônicas da odisséia de Alvin e das pessoas com as quais encontrou ao longo da travessia. Duração: 112 minutos.

Crítica: Uma História Real (David Lynch, 1999)

por Roberto Ribeiro
Extraído de http://www.cineplayers.com/critica.php?id=451

Um trabalho linear e surpreendentemente normal de um dos diretores mais bizarros que existem. Comovente e cheio de simbolismos. Uma belo filme.

Uma expressão para categorizar História Real é 'não-convencional': ele é um drama, mas não há conflito; ele é um road-movie, mas não há velocidade; ele é um David Lynch, mas completamente normal. Aliás, normal é uma das interpretações para o título original, Straight Story. Depois de ser massacrado pela crítica por seu A Estrada Perdida, um filme brilhante, porém, absurdo e difícil de se entender, Lynch resolve contar uma estória de narrativa linear, em boa parte alegre e sem grandes surpresas (inclusive, outro significado para 'straight' é careta, o que este filme é, se comparado aos outros projetos do diretor).

História Real conta a estória de Alvin Straight, um idoso cidadão do meio-oeste americano que, ao saber de um enfarte de seu irmão, resolve visitá-lo. O problema é que o irmão mora em outro estado, e Alvin já não pode mais dirigir, então resolve ir dirigindo um cortador de grama. Quebrando a convenção de road-movies da velocidade construída em Sem Destino, o cortador de grama usado por Alvin é um meio de transporte talvez até mais lento que andar à pé, e isso é mostrado bem numa tomada onde a câmera está focalizada nas linhas de divisão da estrada, passa a focalizar Alvin e seu veículo, mostra as nuvens por um tempo e depois volta a olhar para baixo, mostrando que ele mal saiu do lugar. Aliás, essa tomada das faixas divisórias já havia sido utilizada em Coração Selvagem e Estrada Perdida antes, mas em ambos os casos a câmera se movia freneticamente na estrada, enquanto aqui o movimento é suave e lento, refletindo a natureza do filme. Mas o motivo pelo qual Alvin viaja no cortador vai além da sua impossibilidade de dirigir, ou de sua alegada desconfiança para com motoristas de ônibus; uma viagem dessas demora muito, tanto que ele tem de dormir nos acostamentos das estradas, num mini-trailer que é puxado pelo cortador. Isso lhe dá a oportunidade não apenas de apreciar mais a bela paisagem do local, mas também de refletir. O fato é que os dois irmãos já não se falavam fazia 10 anos, devido a uma troca de insultos no passado, e Alvin quer usar esta oportunidade para refletir sobre seus erros e engolir seu orgulho, botando os pensamentos em ordem.

A trama não nos proporciona situações adversas, nem grandes momentos de tensão onde o personagem tem de se superar para conseguir sobreviver, aprendendo assim uma importante lição de vida (outra convenção de road-movies). Pelo contrário, Alvin sempre tem tudo sobre controle (com exceção de uma ladeira onde o cortador acaba descendo rápido demais), e a viagem segue no ritmo esperado. Ele já é um homem vivido, ex-combatente, e tem muito mais a ensinar que a aprender; a cada nova pessoa que ele encontra, é uma nova lição a dar, e não a receber. Mas essas lições acabam refletindo tudo aquilo de que ele se arrepende, como quando ele diz para dois irmãos mecânicos que só faziam brigar que o irmão é a pessoa que melhor te conhece, e que eles deveriam evitar brigar e aproveitar o irmão que têm, numa clara alusão aos erros que ele próprio cometeu no passado. Essas lembranças acabam mostrando Alvin como um sujeito bem mais amargurado que a impressão tranquila e mansa que ele passa, e isso é mostrado em duas situações: sentindo o peso da velhice cair sobre os ombros (ele já não enxerga bem, e tem de andar com duas bengalas por causa da artrite), ele constata ao ver um acampamento de uma maratona de ciclistas, que a pior coisa em se envelhecer é relembrar a juventude; ao encontrar um outro ex-combatente da Segunda Guerra, ele relembra de um incidente em que talvez tenha matado um companheiro, e a dúvida que o levou a se afundar na bebida após a guerra.

Tecnicamente o filme também é exemplar, com uma fotografia belíssima dos vastos campos de trigo e uma trilha sonora que, como de costume nos filmes do diretor, acaba falando mais do filme que o filme em si. As atuações estão no geral muito boas; tanto a filha de Alvin quanto seu irmão conseguem transmitir muito bem as angústias dos personagens, apesar de seu pouco tempo de tela, mas o destaque realmente vai para Richard Farnsworth, que cria um Alvin extremamente carismático e comovente, num papel que caberia como uma luva para Jack Nance, antigo regular de Lynch. Richard, inclusive, poderia ter vindo a se tornar um novo habitual colaborador do diretor, se não tivesse infelizmente suicidado pouco após o término do filme. Apesar de ser um filme bem diferente, podemos ainda ver claras marcas lynchenianas nele, como a presença de eletricidade (na forma dos trovões), coincidências (o número de veados mortos pela mulher na estrada é o mesmo número de filhos que teve Alvin), a cabana pegando fogo e a pacata vida do interior americano. Além de que, a cena inicial onde vemos uma mulher obesa tomando banho de sol e ouvimos Alvin cair dentro de casa é típica do diretor.

O título em português deve-se provavelmente ao fato de que o filme é baseado em um fato verídico, que chegou a Lynch através de um recorte de jornal com a estória do sujeito. Lynch depois retornaria ao seu lado obscuro e surreal com Cidade dos Sonhos e a mini-série Rabbits, mas História Real foi uma agradável surpresa, e nos deixa todos numa expectativa de um dia poder revisitar este lado mais sensível do diretor. O saldo no final é de um filme bastante comovente, mas que nos deixa sair da projeção com um leve sorriso no rosto, como se também tivessemos aprendido algo mais com o velho Alvin.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

13/11: Veludo Azul (David Lynch, 1986)

Veludo Azul - David Lynch (1986)

Sinopse
Jeffrey retorna para sua cidade depois de estar fora algum tempo e descobre uma orelha humana sobre o chão, em meio ao mato. Não satisfeito com a passividade da polícia em relação ao caso, ele e a filha de um detetive da polícia resolvem fazer sua própria investigação. Eles acabam entrando em um submundo bizarro, envolvendo um homem diabólico e uma linda, porém misteriosa, mulher. Duração: 120 minutos

Crítica: Veludo Azul (David Lynch, 1986)

por Daniel Dalpizzolo
Extraído de http://www.cineplayers.com/critica.php?id=1989


"Go to sleep. Everything is all right."

Quando In Dreams, a bela e soturna canção de Roy Orbison, irrompe o silêncio da madrugada para embalar o espancamento de Jeffrey Beumont, nosso protagonista e guia em Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), já estamos suficientemente imersos no universo subversivo de David Lynch. O carro está estacionado à beira de uma auto-estrada mal iluminada, pessoas bêbadas riem da desgraça de Jeffrey, que por sinal está com a boca toda borrada de batom vermelho, assim como seu algoz, Frank Booth, o insano personagem de Dennis Hopper que acabava de lhe beijar antes de sentar a porrada. Uma mulher de formas estranhas dança sobre a lataria do carro, um homem com aspecto de boneco de cera acompanha tudo com encantamento. Arquitetura de um pesadelo, e Jeffrey o sente na pele; é real.

Mesmo em seus filmes mais narrativos, como é o caso de Veludo Azul, o cinema de David Lynch é todo sensorial. Imagens, canções, diálogos, os elementos são dispostos cuidadosamente para a composição de uma atmosfera onírica, e geralmente possuem significância metafórica ou dúbia. Lynch é um grande reconhecedor da essência artística de construção de novas realidades; os filmes discursam sobre nosso mundo, sobre como nos relacionamos com ele e com quem o habita, sobre as perversões, fobias e sentimentos diversos destes habitantes, mas sua representação extrapola os significados que estes signos receberiam do lado de cá. Filmar, para Lynch, não é cercar, induzir ou subtrair-se até atingir a fórmula precisa; mas desbravar, expandir e, principalmente, explorar sensações, nem que isso resulte em um filme de três horas cheio de excessos.

Veludo Azul inicia mostrando o cotidiano de uma pacata cidade do interior dos Estados Unidos. Casas com cerquinhas brancas, flores coloridas, crianças brincando no jardim, o caminhão de Bombeiros passeando lentamente pela rua enquanto seus passageiros, sorridentes e num slow motion tosco, acenam para os vizinhos. Tudo muito bonito e tranquilo em Lumberton. A superfície da cidade é a representação estética do american way of life, o tal sonho estadunidense, a vida perfeita, aquela comercializada nas publicidades de creme dental onde o branco soa mais branco do que você jamais poderá ver, mas debaixo da grama os insetos remoem a terra e compõem uma paisagem negra de depredação, e a câmera de Lynch, é claro, faz questão de os perseguir.

Viver na cidade dos sonhos? Ah, puta tédio, viu. Andar pelo campo sentindo o ar fresco da natureza? Tédio. Tédio redobrado. A vida só volta a ficar interessante para Jeffrey em sua viagem ao interior quando finalmente encontra uma orelha humana grudada na grama, apodrecendo aos poucos. A câmera de Lynch, é claro, faz questão de persegui-la. E mais: penetrá-la. A orelha é um portal e um brilhante truque narrativo: adentramos ao outro lado desta realidade. The dark side. Sai o sonho idealizado, surge o pesadelo do obscuro e do sadomasoquismo, essa mistura de dor e fascínio que nos regra. Um lado precisa existir para que também exista o efeito do outro, e é a partir deste paradoxo que Lynch dá início à sua viagem por esse pesadelo carnal – e real.

O universo de Veludo Azul respira ares de sarcasmo em torno desta relação paradoxal. O romantismo soa cafona, a perversão uma comédia, o sexo quase um ato de violência. Aqui, a excitação é medida na ponta da navalha. Se Jeffrey tem duas opções (dificilmente existe apenas uma saída para qualquer situação, isso na vida mesmo), depois da orelha escolhe sempre a mais estranha. “Não sei se você é um detetive ou um pervertido”, diz a formosa loira (Laura Dern, é, nem tão formosa assim) pela qual ele se apaixona, depois de vê-la surgir da escuridão da forma mais brega possível durante uma caminhada noturna – aparição que inclui iluminação over no rosto da atriz e trilha de conto de fadas. “Isto eu sei, e você terá que descobrir”, responde. Dito isso, se enfia dentro de um armário e observa uma mulher perturbada tirar a roupa e, mais adiante, trepar de um jeito um tanto quanto maluco com seu homem, que a espanca, preenche a boca com pedaços de veludo e respira com auxílio de um inalador aos gritos de “baby wants to fuck!”.

Depois de situados nessa ótica perversa de Lynch, só resta mesmo nos entregarmos e aproveitar o espetáculo. E Veludo Azul é um deslumbre. Suspense oitentista com cara de aventura juvenil filmada por alguém que viu muito filme noir e, depois disso, resolveu desmistificar o lado negro do ser humano misturando aromas vespertinos com odor de sangue e esperma. David Lynch abre espaço para diversas sensações, algumas delas chegando juntas num misto de fascínio e horror bastante semelhante ao vivido por Jeffrey nessa jornada insana. As reações do lado de cá soam tão subversivas quanto alguns dos melhores momentos do filme; ou vai dizer que as bizarrices de Dennis Hopper e suas dezenas de frases de efeitos, palavrões e atitudes inconsequentes não são o máximo de comicidade que se pode extrair de um filme que chafurda tão a fundo na podridão dos instintos carnais humanos?

É de Hopper os melhores momentos de Veludo Azul, aqueles que os fãs do filme lembram com maior entusiasmo e dos quais sabem todos os diálogos de cor. Não é pra menos. Frank Booth é seguramente o personagem mais icônico construído pelo cinema de Lynch, que se aproveita da figura doentia do ator para deitar e rolar em sequências que beiram o seu surrealismo futuro. De frases antológicas como “I'll fuck everything that moves!” a imagens bizarras como as inspirações com inalador, Frank Booth é ele próprio um genuíno personagem de pesadelos, mas que, em Veludo Azul, representa perigo real ao nosso protagonista. E se Lynch ao final de tudo insinua um retorno aos comerciais de creme dental com aquele epílogo sobre pintarroxos e novos sonhos idealizados, o belo e vasto gramado do quintal não nos deixa iludir. Afinal, debaixo dele sempre existirão os insetos.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

06/11: O Homem Elefante (David Lynch,1980)

O Homem Elefante - David Lynch (1980)

Sinopse
John Merrick um inglês que vive recluso em um circo por ter uma doença que desfigurou seu rosto. Ele é descoberto por um médico, que deseja integrá-lo à sociedade não como um "esquisito", mas como alguém normal e culto. O problema é que as pessoas não estão prontas para isso, e John terá que sofrer muito para ser tratado como ser humano. Duração: 120 minutos

Crítica: O Homem Elefante (David Lynch, 1980)


por José Carlos Avelar
Extraído de http://www.escrevercinema.com/Lynch_elefante.htm

Ver ou não ver, eis a questão

Antes mesmo de entrar no cinema o espectador já sabe que o personagem principal desta história é um homem exibido em barracas de feiras e de parques de diversões como um monstro, vítima, talvez, de um acidente durante a gravidez de sua mãe, metade gente metade elefante. Não por acaso a ação se passa em grande parte num espaço de diversão popular anterior ao tempo do cinema – os parques de diversões, os museus de cera, os trens fantasmas – e o filme se insinua como espetáculo metade do tempo do circo de horrores, que mais sugere do que efetivamente mostra, metade do tempo do cinema, que mais mostra que sugere. De um certo modo, antes do filme o espectador já viu o filme ou pelo menos já sabe como é o filme que vai ver. O anúncio no jornal, o cartaz na porta do cinema e o trailer exibido nas semanas anteriores desenhavam a imagem de um indivíduo fisicamente deformado.

Logo que O homem elefante começa o espectador está portanto à espera de um aleijão. Do monstro anunciado no convite irônico da última frase do trailer: o vigia do hospital diz que por um preço justo todos poderão ver algo que jamais viram em vida. À espera do monstro, anunciado mas não mostrado no trailer, nem no anúncio de jornal, nem no cartaz na porta do cinema. Em todas as peças de divulgação ele aparece como sombra ou com o rosto coberto por um capuz.

Certo, não convém exagerar, não necessariamente o espectador passa pelo material de divulgação antes de pegar o filme no cinema. A escolha do filme pode se dar ao acaso. O público pode ser levado pelo hábito de ir ao cinema ou de frequentar determinada sala de cinema, pode não ter sido preparado para ver o filme do ponto de vista sugerido pela publicidade em torno dele. Mas em O homem elefante, mesmo o espectador ocasional conta com preparação semelhante nas primeiras imagens: a reação dos personagens em cena anunciam que o aleijão que ainda não vemos é mais deformado do que se pode imaginar.

O filme começa, mas o personagem principal não aparece logo. Quer dizer, ele está lá, em cena, mas não podemos vê-lo. Ou porque a câmera olha para ele apenas nos momentos em que ele está numa parte escura do cenário, ou porque na maior parte do tempo a câmera prefere se desviar para as pessoas que olham o homem elefante e se esquece de vê-lo, de mostrar-nos tal como ele é. O filme avança, passa-se o tempo, o monstro continua sem aparecer na tela.

Rapidamente a história muda de assunto quando parece que ele finalmente vai aparecer aos nossos olhos. Bytes, o homem que se dizia seu proprietário e o explorava nas feiras e parques de diversões, abre a cortina, mas o homem elefante não aparece para o espectador. Treeves, o médico que estuda anatomia e se interessa em especial pelo caso do homem elefante, se aproxima dele e pede licença para examiná-lo, mas ainda aí ele não aparece na tela. Ele não aparece nem mesmo quando sua deformação física é descrita e analisada num simpósio de médicos.

Assim, exagerando um pouco, podemos dizer que quando ele finalmente pode ser visto já ninguém mais na platéia está à espera dele, ninguém mais tem um interesse especial em vê-lo. A curiosidade do espectador foi contida, a narração muito habilmente tratou de desviá-la para as pessoas em torno do homem elefante e para o cenário em que estas pessoas se movimentam.

Quando John Merrick aparece pela primeira vez na tela o espectador já tinha visto em detalhe um dos verdadeiros monstros de que se ocupa The Elephant Man: Bytes, o que se diz proprietário do homem elefante e que, irritado com a demorada permanência de Merrick no hospital, aplica-lhe uma violenta surra. Quando Merrick aparece pela primeira vez na tela o espectador já se acostumara a um cenário — mais do que a uma ação: a um cenário, a um espaço — fisicamente deformado.

Uma boa parte desta sensação de se encontrar diante de uma paisagem deformada vem da fotografia em preto e branco. Vem da fotografia não porque ela seja em preto e branco, mas porque ela se serve do preto e branco para endurecer e fomentar os contrastes, para encher a tela de sombras, de fumaças escuras, de montes de carvão, de porões sem luz alguma.

Outra parte desta sensação de espaço deformado vem do som, dos ruídos aparentemente desligados da ação mas que insistem em se infiltrar ali onde não parecem ser chamados: ruídos de goteiras, barulho de esgotos, o arranhado de máquinas, o bater pesado da engrenagem do relógio e a gritaria incômoda das mulheres que brigam na entrada do hospital, os grunhidos dos bêbados no bar.

Só depois de ver tudo isto, só depois de ter os olhos acostumados a este ambiente rude e deformado como há tempo não se costuma ver no cinema (quase todo o tempo feito de cores quentes e brilhantes), só depois de uma meia hora de passeio por esta Londres sombria, é que conseguimos ver o homem elefante. E então ele nos parece uma pessoa nem tão deformada assim, porque inserida num quadro semelhante a ele próprio.

Isto é, a caracterização do ator John Hurt é até bastante fiel à tradição dos monstros do cinema. Mas quando aparece como aqui, cercada de imagens deformadas pela fotografia, surge como figura normal. O espectador está então preparado para ver logo o que o protagonista grita desesperado já perto do final da história, que ele é um ser humano e não um animal. O espectador vê logo o que poucos dos personagens que se mexem no universo do homem elefante conseguem entender.

Levado pela muito hábil imagem promocional, que estimula a invenção de uma horror visual, e pela não menos hábil construção dramática, que promete uma determinada atração para depois dela se desviar, para levar o espectador a criticar durante a projeção exatamente o que parecia a própria razão de ser do filme, levado por esta meia hora em que o homem elefante não se dá a ver na tela, o espectador pode mais facilmente perceber o personagem como ele realmente é.

Uma representação alegórica, gentil – “um Romeu e não um animal”, define uma personagem – retrato de um ser humano que numa sociedade agressiva e deformada se vê perseguido e rechaçado como se fora um mostro. John Merrick é um quase adolescente que chora ao imaginar o desgosto que deu à sua mãe. É um jovem rejeitado, que por medo do contato com os outros permanece calado, não fala. É um homem sofrido, que quase ao final da vida descobre que estar no mundo vale á pena quando a presença de um amigo dá algum sentido às coisas. É um homem que se esconde para que a deformidade de seu rosto não continue a fazer dele uma pessoa que só é olhada para não ser vista.

[A nota acima, escrita em julho de 1981, foi originalmente publicada em jornal na semana de lançamento do segundo longa-metragem de David Lynch nos cinemas do Rio de Janeiro. Talvez, hoje, O homem elefante, depois de ser visto como o filme que efetivamente é, possa ser tomado como uma antecipação dos filmes que Lynch fez em seguida para cinema. No universo do diretor continuamos a encontrar um personagem gentil e ingênuo como um Romeu oculto numa aparência monstruosa que se desfaz apenas quando o espectador percebe a deformação do meio em que ele se encontra. E continuamos a passear por uma espécie de labirinto escuro (como se estivéssemos num trem-fantasma de parque de diversões) sem uma precisa noção de onde estamos e do que realmente vemos. A questão continua a mesma: ver ou não ver.]


Programação Novembro 2010: David Lynch

Através de uma votação aberta a todos os que frequentaram as nossas sessões nos meses de setembro e outubro, o público escolheu o cineasta norte-americano David Lynch como tema para o mês de novembro. Além disso, o público também teve a oportunidade de escolher os filmes que seriam exibudos. Eis os escolhidos:

06/11: Homem Elefante (1980)
John Merrick um inglês que vive recluso em um circo por ter uma doença que desfigurou seu rosto. Ele é descoberto por um médico, que deseja integrá-lo à sociedade não como um "esquisito", mas como alguém normal e culto. O problema é que as pessoas não estão prontas para isso, e John terá que sofrer muito para ser tratado como ser humano. Duração: 120 minutos

13/11: Veludo Azul (1986)
Jeffrey retorna para sua cidade depois de estar fora algum tempo e descobre uma orelha humana sobre o chão, em meio ao mato. Não satisfeito com a passividade da polícia em relação ao caso, ele e a filha de um detetive da polícia resolvem fazer sua própria investigação. Eles acabam entrando em um submundo bizarro, envolvendo um homem diabólico e uma linda, porém misteriosa, mulher. Duração: 120 minutos

20/11: Uma História Real (1999)
Um retrato lírico da real viagem de um homem através do coração da América. Filmado ao longo da rota de 260 milhas que Alvin Straigt percorreu em 1994, indo de Laurens, Iowa para Mr. Zion, Wisconsin. História Real conta as crônicas da odisséia de Alvin e das pessoas com as quais encontrou ao longo da travessia. Duração: 112 minutos.

27/11: Cidade dos Sonhos (2001)
Um acidente automobilístico na estrada Mulholland Drive, em Los Angeles, dá início a uma complexa trama que envolve diversos personagens. Rita escapa da colisão, mas perde a memória e sai do local rastejando para se esconder em um edifício residencial que é administrado por Coco (Ann Miller). É nesse mesmo prédio que vai morar Betty, uma aspirante a atriz recém-chegada à cidade que conhece Rita e tenta ajudar a nova amiga a descobrir sua identidade. Em outra parte da cidade o cineasta Adam Kesher, após ser espancado pelo amante da esposa, é roubado pelos sinistros irmãos Castigliane. Duração: 140 minutos.

Cartaz Programação Novembro 2010: David Lynch

Visita de Carlos Reichenbach - 30 de outubro de 2010

Em nossa última sessão, no dia 30 de outubro, esteve presente o consagrado diretor Carlos Reichenbach. Foi um excelente encontro!

Nós do Cine Clube Ybitu Katu agradecemos ao Carlos Reichenbach pel do convite, à Secretaria de Cultura pelo apoio fornecido e, principalmente ao grande público presente.


Confira aqui todas as imagens do evento fotografadas por David Devidé.

sábado, 30 de outubro de 2010

30/10: Dois Córregos (Carlos Reichenbach, 1999) - com a presença de Carlos Reichenbach!

Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo - Carlos Reichenbach (1999)

Sinopse
Em meio à repressão imposta pela ditadura militar vivem Ana Paula e Lydia, duas adolescentes burguesas e inexperientes que passam uma temporada em uma fazenda. Lá elas conhecem Tereza e convivem por um fim de semana prolongado com o tio de uma delas, Hermes, um homem misterioso que está clandestino no país. Duração: 112 minutos.

NÃO PERCAM: A SESSÃO CONTARÁ COM A PRESENÇA DO DIRETOR CARLOS REICHENBACH. APÓS A SESSÃO, CARLOS REICHENBACH PARTICIPARÁ DE UM DEBATE SOBRE A PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA DO INTERIOR PAULISTA E RESPONDERÁ PERGUNTAS DOS PRESENTES.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Sábado, 30 de outubro, Carlos Reichenbach visitará Botucatu

No próximo sábado, dia 30 de outubro, às 19:30 o consagrado diretor Carlos Reichenbach estará em Botucatu, no Centro Cultural de Botucatu para uma sessão no Cine Clube Ybitu Katu de seu renomado filme Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo, filmado em Dois Córregos em 1998.

Após a sessão, Carlos Reichenbach participará de um debate sobre a produção cinematográfica do interior paulista e responderá perguntas dos presentes.

Não percam!

Entrevista com Carlos Reichenbach

Extraída da Revista ContraCampo de Cinema. http://www.contracampo.com.br/01-10/reichenbachentrevista.html

O Começo no udigrudi

Com Dois Córregos você faz agora 35 anos de carreira, mais ou menos, se considerarmos que você começou em 64 com Uma Rua Tão Augusta...

66, 65 na verdade. Foi quando eu entrei na ESC. Agora você me pegou... 66, não foi 64. Peraí, fazendo as contas: entrei em 65 na Escola São Luís e aí começamos a filmar esse filme em 65, mas depois ele terminou só depois de As Libertinas. Ele ficou parado, não tinha dinheiro para acabar, foi tudo feito na raça. Aí foi o Luís Sérgio Person, que era da Secretaria de Cultura e eles abriram um concurso para curta-metragem que teoricamente existe até hoje,que premia doze curtas por ano.

O Prêmio Estímulo?

Prêmio Estímulo. O primeiro Prêmio Estímulo foi... acho que três ou quatro alunos da São Luís pegaram. Ana Carolina, Paulo Rufino e teve mais um outro. Aí ele falou: "Entra no Prêmio pra terminar aquela merda que você deixou incompleta, né?"

Pra começar: você tem mais ou menos dois perídos marcados, ou então três. Um começo que está mais associado ao pessoal do underground, com dois curtas de filmes, o Libertinas e...

Audácia.

...o Audácia. Depois um período pontuado de... em que você tentou fazer uma mistura de um conteúdo intelectual em uma forma pop. E depois os filmes mais marcadamente dramas ou então especialmente melodrama, como é o caso do Arrabalde. Como seria uma síntese do Reichenbach que permeia os três períodos? Quais são as preocupações que desde o começo estão presentes?

Na minha primeira fase eu tenho pra mim que era um momento em que a vida era mais importante que o cinema. O cinema era mais alguma coisa. Um pouco como o poder de apreensão do que a gente tava vivendo naquele momento. Não canso de dizer que fui de uma geração que viveu muita coisa em muito pouco tempo. Desde a experiência política, a experiência de rua até o desbunde, a contracultura, a fase mística... foi isso tudo em quatro, cinco anos. Pelo menos pra mim, naqulele momento, eu tenho essa visão muito clara, distanciada hoje, pra mim foi um período muito grande de desbunde, mesmo. Onde a coisa mítica do cinema foi dinamitada, na verdade. Eu trocava o melhor pelo pior. Quando eu entrei na São Luís, eu entrei imbuído com aquela idéia do Cinema Novo, de fazer um cinema revolucionário, um cinema que afetasse a realidade, (ri) que mudasse a realidade. Um ano de São Luís, que foi em 65, o momento mais agônico dessa mudança, quando você descobria o que podia acontecer, não o que a gente pensava que ia acontecer. Um certo desencanto, também. Aí um pouco esse pensamento muda, também. Muda na essência da gente não achar que devia mudar o mundo, devia mudar a gente mesmo primeiro. A gente sempre fala que o... o pós-novo (não gosto da palavra underground, os ingleses é que chamavam de pós novo) trocou a sucessão pela transgressão. Os filmes estavam muito próxmios da vida. Eram quase o prolongamento do que a gente estava vivendo no cotidiano. Por isso talvez esse excesso de barato nos filmes, escarro, vômito, uma coisa niilista, eminentemente niilista. Anárquica, mas muito mais niilista, em todos os filmes daquele momento. Mas mesmo assim eu acho que como um olho de cinema eu devo dizer que não entrei na São Luís para ser diretor, eu entrei para ser roteirista. Eu tenho uma formação literária. Sou filho de editor, neto de editor, sobrinho de editor... E pra mim, aquele momento, até 69, até aquele episódio, o segundo episódio, que se chama A Badaladíssima dos Trópicos com os Picaretas do Sexo, eu não gosto desse cinema que eu fiz. Eu tenho a maior admiração pelos filmes dos meus amigos. Em geral eu tive um envolvimento com eles, como O Pornógrafo, que foi feito pelo cara que fez o Libertinas comigo, o Callegaro. Eu achava que o Callegaro tinha muito mais talento... O Orgia, do João Silvério Trevisan, o Bang-Bang... esses filmes são importantes. Tanto o Alice quanto o Badaladíssima dos Trópicos não têm importância nenhuma. São mais exemplos de um determinado momento da minha vida. Eu acho que o que eu fazia na minha vida particular é mais importante do que esses filmes. Eu tenho hoje essa visão muito clara. É claro que daí se inclui o Bandido, se inclui uma série de filmes que foram feitos naquele momento, o Candeias. Eu acho que o cinema passou a ter realmente uma importância para mim como linguagem na virada da década, quando a dispersão começou a acontecer. Eu digo que, de certa forma, o cinema pra mimfoi uma salvação. Quando eu terminei Audácia, eu comecei a produzir um filme que eu cheguei a filmar algumas coisas, chamado Guatemala Ano Zero. Ficou inacabado, e que era realmente a tentativa de fazer alguma coisa mais conseqüente do que eu sempre quis fazer antes. Eu acho que tanto As Libertinas quanto Audácia são filmes circunstanciais. Tanto que eu não gosto. Não gosto muito de rever. Eu fico olhando: "Como eu era analfabeto"... em cinema, né?? (risos)

E Guatemala Ano Zero?

Guatemala Ano Zero não, Guatemala Ano Zero é um filme pretensioso mesmo. TInha um bando de gente indo embora do Brasil. A idéia era essa, partia dessa frase: o último que sair apaque a luz. Todo mundo se mandando... Eu cheguei a filmar quase 60 travelings pela 23 de Maio, todos os caminhos conduzindo ao aeroporto. Mas obviamente não conseguimos grana para terminar esse filme. Foi ujm filme indesejado na minha própria família.

O filme tem alguma parte montada?

Não. Só tinha coisa filmada. Esse copião inclusive eu acabei dando pro Andrea Tonacci. Ele estava também preparando um outro filme que ele nunca terminou, dois projetos sensacionais, um projeto chamado Abracadabra, que nunca terminou mas que também tinha esse senso, essa idéia da estrada vazia. Que eu acho que é a imagem que marca... a imagem mais marcante que tem por exemplo no final do Orgia. Eu acho que é a imagem símbolo. Orgia foi o último filme, junto com República da Traição, de um momento cinematográfico, desse chamado cinema underground. Foram os dois últimos filmes daquele período totalmente interditados pela censura, e os dois últimos filmes a serem liberados dez anos depois. Claro, porque nesse momento, já eram filmes datados, de uma certa forma. Mas eu acho que a imagem do Orgia sintetiza muito aquele momento, porque o filme termina em silência com uma câmara na mão numa estrada vazia. Não dá em lugar nenhum. Você teve a oportunidade de ver?

Vou ver agora, na Mostra...

Você vai sentir. Depois de cair um abismo total, os personagens são marginais que vão se juntando e terminam num cemitério, uma orgia no cemitério, onde tudo acontece. O filme se autodefine, entra um locutor falando em tupi guarani: "Essa é a geração da sífilis". É o clima da virada da década, mesmo, talvez mais niilista. É o último filme, um filme terminal. O Trevisan é o Pasolini do cinema marginal. O Salò do cinema udigrudi. O filme era detestado por muita gente. Eu adoro esse filme, acho fantástico. Eu acompanhei porque eu fui fotógrafo do filme, e a forma como ele foi feito é muito inteligente. Mas tem pessoas que detestam, odeiam, carregam uma coisa maldita, pesada. Pra mim, naquele momento, eu estava mais como testemunha, um espectador, do que realmente como um autor. O cinema pra mim começa em 71 com Corrida em Busca do Amor. Esse é o meu primeiro filme. Porque foi um desafio, exatamente pela proposta ter sido um desafio. Naquele momento eu começo a enxergar o que vai ser a minha linguagem daí pra frente. E de uma certa forma quebrar um certo preconceito, umas amarras, etc. e tal, e essa idéia de trabalhar clichê. Converter clichês.

A Autoconsciência

Talvez seja a primeira tentativa dum cineasta que trabalha com vocabulário intelectual de tentar mexer com um lado mais popular, com o gênero no Brasil.

Sim, sim. Houve outros cineastas que fizeram isso. O Antonio Calmon fez isso muito bem. Eu gosto demais dos filmes do Calmon, acho que ele consegue ter uma certa identidade. Depois dos primeiros filmes (antes tem o Capitão Bandeira contra o Dr. Moura Brasil, que é uma coisa mais pretensiosa, uma coisa mais de cinéfilo), aí ele embarca mesmo no cinema de gênero, manipula a pornochanchada. Mas também de uma forma absolutamente libertária, filmes como Gente Fina É Outra Coisa, O Bom Marido. Poucos filmes brasileiros conseguiram ser tão amorais como O Bom Marido e Gente Fina É Outra Coisa, o empregado comendo as patroas... Uma verdadeira revolução social do pau, né? Eu gosto muito dessa fase do cinema dele. Mas talvez seja a primeira vez porque foi em 71. Em 71 talvez tenha sido o primeiro filme que não tenha tido o pudor de mexer com esse tipo de repertório. Como eu disse outro dia, isso começa pela minha profunda admiração por um cara chamado Roger Corman, que foi a base pra fazer esse filme. E foi a base pra aceitar fazer esse filme sobre um assunto com o qual eu não tinha a menor vontade de mexer, porque eu nunca me interessei por corrida de automóvel. Mas a proposta era fazer um filme pra criança, uma comédia e o meu co-roteirista, que é o crítico Jairo Ferreira, que escreveu Cinema de Invenção e foi meu assistente de direção e roteirista, no caso... Já tinha um roteiro, mas era muito ruim, então a gente só aproveitou a primeira metade. A segunda metade, como não havia condições financeiras pra fazer um filme up to date com corrida de automóvel... A primeira coisa que faltava era carro pra correr, então a gente era obrigado a improvisar cotidianamente. E antes de começar a fita a gente foi ver tudo que era filme a respeito de casais jovens, Sandra Dee, Bobby Perrin, Frankie Avalon, Annette Funicello, o pior do cinema comercial e o melhor também. Até os filmes do Blake Edwards, um filme com o jack Lemmon e o Tony Curtis, um clássico do Blake Edwards sobre corrida. Agora eu não me lembro o nome. [É The Great Race/A Corrida do Século, 1965. N. do E.]. Mas isso com uma puta consciência de que se estava lidando com Terceiro Mundo, miséria e falta de condições. Mas esse era exatamente o conceito. O roteiro que me foi dado já era um puta de um clichê, a escuderia rica, a escuderia pobre, tinha que dividir o prêmio, quem ia ficar com a filha do patrocinador, essa bobageira toda. Se acrescenta a isso a idéia do grosso daqueles filmes de turma de praia que fazia o Corman, e sempre de uma certa forma conseguia extrapolar. O curioso é que depois eu descobri que vários outros diretores fizeram filmes de corrida de automóvel, também. Entre eles David Cronenberg, Monte Hellman fez um filnme antológico, Two-Lane Blacktop. Se eu tivesse visto na época seria até mais decisivo ainda. Só fui ver há poucos anos atrás. É um filme sobre caras consertando carros, o tempo inteiro umas mulheres gostosérrimas e os caras discutindo motor de carro o tempo todo e as mulheres dando sopa. Filme com o Dennis Wilson, que é fantástico, eu sou um fã incondicional do Brian Wilson, pra mim é o grande gênio... Com o Dennis Wilson, o irmão preferido do Brian, o único irmão com quem ele se dava bem. Com o James Taylor... só cantores... eram três ídolos da época. E é um filme antológico. Um filme sobre motores. E com aquela assinatura do Monte Hellman mesmo. Parece que ele trabalha só a essência. Fazer western com dois, três atores... Foi um dos cineastas que foi bem importante ter conhecido alguma coisa no começo. Eu acho que é a partir daí, o cinema começa a existir a partir daí. Eu vivi muito o período underground mas eu não me considerava ainda cineasta. Pra falar a verdade, eu tinha mais afeição pelos filmes que eu fiz como técnico no período ou de uma certa forma tive um envolvimento como colaborador, por isso que eu marquei de propósito O Pornógrafo e o Orgia dio que os filmes que diretamente eu tenha feito. O que eu fiz é muito ruim. Mas a partir de Corrida nasce um cinema com uma assinatura, uma coisa que sempre me interessou que é trabalhar a narrativa, uma coisa que eu rejeitei muito naquele período do "vamos ver".

Digressão: cinefilia e Cahiers du Cinéma

O Carlão cinéfilo já existia naquela época?

Existiu desde os dezesseis anos de idade. Foi quase uma disputa com os colegas, quem assistia mais filme por ano. Eles não tinham muito pudor, a gente aprendeu a... É óbvio que foi muito importante no meio dessa coisa, o fato de fazer cinema, o contato com o Luís Sérgio Person. Ele ficou perplexo porque, por uma casualidade, não vou nem saber precisar por quê, eu era muito mais interessado no texto do que no próprio filme. Eu era assinante, talvez o único assinante no Brasil, da revista Film Culture, do Jonas Mekas... O Person caiu de quatro. E pediu uma informação, eu passei pra ele, e talvez tenha sido por isso que ele falou: "é o único cara daqui que vai ser diretor, da turma dele". E fui mesmo. Eu assinava o Cahiers du Cinéma, lia a Sight and Sound, e tinha a Film Culture. E foi espantoso, porque ele precisava de um... uma vez, a Film Culture publicou um catálogo de todos os filmes que tinham sido produzidos e que o Jonas Mekas distribuía. O famoso filme Creatures, do jack Smith, que é considerado o mártir do udigrudi. Mas naquela época eu já tinha essa dúvida. Eu exercia crítica no jornal de bairro. Tava com um pé entre a crítica e o roteiro até realmente passar pra prática. Eu acho que talvez o fato fundamental para ter passado à prática foi gostar disso. [momento incvompreensível]... mas o cinema é Nicholas Ray. Godard era fã de Nicholas Ray, Samuel Fuller então era fã de carteirinha. Claro que foi fundamental pra mim, pra minha formação e para a fdormaçãso dos meus parceiros, Carlos Alberto Ebert, João Callegaro, o Cahiers du Cinéma da década de 60, da época do Jacques Doniol-Volcroze. Que foi o momento mais inventivo, relamente o Cahiers tinha uma importância fundamental na cinematografia, na forma de cinematografia.

É um período que vai de 63 até mais ou menor 68.

É, acho que os anos 60, né?

Mas o Volcroze já estava antes...

Mas depois a revista teve formato maior, passou a se abrir mais para o cinema B, para as cinematografias de Terceiro mundo. Se via nitidamente que deixavam de ser os monstros sagrados.

É, realmente ela se abre...

Ela se abre. Toda essa fase, até entrar na fase Dziga Vertov... [Refer6encia à época dita maoísta da revista, quando deixou de ter uma periodicidade regular; coincidiu com o Grupo Dziga Vertov de Godard, daí a referência. N. do E.] Aí acabou a revista, por um bom tempo. Também tinha a função daquele momento, era uma outra coisa, um outro caminho. Mas aquele instante foi um instante de formação, mesmo. Essa geração toda é extremamente influenciada pelos Cahiers. Por mais que alguns cineastas hoje possam negar – Bressane vai negar de pé junto, o Rogério Sganzerla –, mas pode tirar o cavalo da chva. Nessa época eu convivia com essas pessoas, trocavam Cahiers como figurinha carimbada. Aliás eu tenho umas da coleção da época que sumiram na mão de uns colegas, inclusive um especial sobre o Skolimowski que nunca mias... Eu já precisei uma vez e não achava, aí eu lembrei "ficou na mão de um cidadão"... (risos)

Os ladrões de Cahiers não se revelam...

Não, não se revelam. Mas depois eu parei de assinar.

São Paulo exibia todos esses filmes? Dreyer, filmes japoneses?

Filmes japoneses vinham mais pra nós do que pra Europa toda. Era o segundo maior mercado de cinema japonês do mundo, o Brasil.

São Paulo principalmente, né?

São Paulo e o interior. As cidades do interior, como Presidente Prudente, tinham muita colônia.

Mas os filmes mudos, os filmes nórdicos, Dreyer...

Mais a nível de cinemateca. Por exemplo, demorou pra gente ver Gertrud, Ordet. Mas Ordet pode ver em qualquer momento, em 80 anos continuará sendo o maior filme da história. É o maior filme que eu já vi na minha vida. Tem que ter um olho lido pra poder amar Dreyer. Uma coisa de religiosidade, o filme tem uma ressurreição. Só o Dreyer pra conseguir filmar uma ressurreição. Como diz um amigo, é de assistir ajoelhado (risos). Mas é verdade que os clássicos eu passei a gostar mais recentemente. Hoje eu tenho um entendimento melhor pra ver Dias de Ira do que tinha naquele instante.

De volta à obra: Maturidade

Os seus filmes normalmente tem um caráter libertário, e é engraçado que o seu lado religioso não aflora.

É porque eu não tenho essa preocupação. Uma vez me perguntaram isso. O estrangeiro tem uma visão... foi a primeira pergunta que eles me fizeram quando eu estive na Holanda, por que que não tinha religião nos meus filmes. Porque pra mim é um problema resolvido. Se em 80% dos cineastas brasileiros esse problema não é resolvido é questão deles. Eles achavam que aquilo era marca registrada dos filmes brasileiros.

Mas no seu caso a religiosiodade é muito forte pessoalmente.

Mas é uma questão resolvida. Fui batizado em igreja católica, fui criado na igreja luterana, fui zen-budista... É um assunto que não me incomoda, na verdade. É uma questão resolvida. Eu acho que quando essas questões não são resolvidas elas afloram, não é verdade?

O desejo e a política nunca se resolvem...

Ou se resolvem, não sei...

É o que mais aparece, o desejo, a política e no momento cada vez mais memórias.

Sim, sim. Mas aí é que tá. Você perguntou da primeira fase. Essa é a parte talvez onde esse tipo de cinema nitidamente está em busca de uma linguagem própria. Isto eu acredito que vá claramente até Filme Demência. Minha obra muda em Filme Demência. Eu acho que ela dá uma virada do avesso. Vai até Extremos do Prazer, Extremos do Prazer é o último filme de um período cinematográfico. Embora tenham filmes que tenham isso muito mais resolvido, como Lilian M. Estou pegando a minha visão. Em Lilian M e O Império do Desejo essa questão está mais bem resolvida. São filmes mais radicais com essa coisa de lidar com o gênero no cinema, de lidar com a linguagem do cinema, uma coisa que sempre pra mim foi fundamental, que é a música como personagem. Esses filmes, exatamente por uma certa radicalidade, são mais bem resolvidos. Com Filme Demência a coisa dá uma virada do avesso como opção pessoal, mesmo.

Você acha que Filme Demência é o primeiro filme que já passa a ser de maturidade?

Não sei se de maturidade, mas um filme que nasce pelas tripas. De Corrida em Busca do Amor até Extremos do Prazer são filmes movidos pelo desejo, mas são exercícios, estão em busca da depuração de um estilo. Eu acho que a partir de Filme Demência os filmes nascem pelo estômago, pela necessidade de fazer. São filmes que nitidamente têm uma coisa a ser purgada. E aí sim eles passam pela experiência pessoal. Tanto que é o filme que eu mais gosto. Por ser o mais torto nesse sentido.

Engraçado, porque olhando as entrevistas antigas são três filmes que você fala serem o melhor filme, você fica cambiando; quando você lança Anjos do Arrabalde você diz que é o seu melhor filme; em certos momentos você fala que é O Império do Desejo; mas o mais constante é realmente Filme Demência...

Tem filmes que me agradam por algum motivo especial. O filme que me dá prazer de rever é Império do Desejo. Eu acho que é um exercício de liberdade como eu nunca tinha feito antes. É um filme que sempre me dá prazer de rever. Lilian M também tem um pouco essa coisa de saber que teve um filme feito com 10, 15 anos antes. Tanto que foi dez anos depois o filme que me levou pro mundo. Não foi descoberto no Brasil, ele foi descoberto fora do Brasil, pelo mesmo cara que descobriu todos os cineastas mais importantes hoje, o Hubert Bals, diretor de Roterdã. Descobriu de Fassbinder a Tarkovski a Wim Wenders a pessoas que inclusive estão sendo reconhecidas hoje, Atom Egoyan. Descobriu Krzysztof Kieslowski. Esse homem é um dicionário.

Hoje tem um prêmio com o nome dele lá em Roterdã.

Não é bem um prêmio, é uma grana que você recebe pra poder desenvolver, que era a idéia dele desde o começo. Era uma pessoa extremamente generosa, ele pegava dinheiro do festival. Por exemplo, ele deu grana pro Jarmusch terminar Permanent Vacation. Faltava cinco mil dólares pra sonorizar e ele deu o dinheiro. Falou "termina e traz o filme pro festival". Ele tinha esse tipo de postura. Ele sempre disse, "no dia em que você precisar de dez mil dólares, se resolver o problema pra terminar o filme, me avisa". No Brasil é mais caro, lá por cinco mil dólares você sonoriza um filme. Com mil dólares tira uma cópia, aqui custa quanto? Por isso eu tinha uma coisa com Lilian M. É um filme que sempre me dá satisfação de ver. É um filme que dá prazer. Eu me lembro que quando eu estava com o roteiro pronto eu mostrava pros amigos, mostrei pro Inácio Araújo, que é meu co-roteirista em vários outro filmes, e ele falou assim, "Você tá louco se você vai filmar isso". Eu falei assim, "Eu vou filmar isso" (risos). Ele não acreditava que aquilo fosse pra tela. Gosto muito de Alma Corsária, é um filme que nasceu de uma necessidade, eu tinha abandonado, voltei, aquela coisa. Foi um filme que foi construído e consolida uma idéia que me agrada muito, que é a idéia de cinema artesanal, trabalhar o mais sozinho possível. Meu projeto de cinema ideal é o cinema feito em casa

Você uma vez demonstrou a sua admiração pelo sistema de fazer filme do Éric Rohmer.

Sim, como estrutura, é a ideal. o Rohmer faz primeiro um filme em Super-8, todos os atores ficam ensaiadíssimos e depois roda um por um. Ele tem um sistema de produção que o produtor dá o dinheiro pra ele sobreviver. Ele também sobrevive da obra.

Ele é profundamente religioso, também...

Vou dizer a verdade, vou dizer que você está com uma opinião meio preconceituosa. É além disso. Eu digo o seguinte: essa questão da religião é aquilo que o Penderecki fala quando ele faz as missas dele, que ele mata na mosca. Ele falou que ele não está interessado na religião, ele está interessado no culto, no mistério e é por isso que a obra dele é sensacional, as missas dele são geniais. "Eu não estou interessado no dogma, pelo dogma eu não tenho interesse nenhum, eu não sou católico." Mas ele está interessado no mistério, isso eu acho do cacete. No ritual, entende, essas coisas. É uma grande cagada querer adaptar tudo aos tempos. O desaprender do latim. Por mais arcaico que possa parecer a idéia, essa cultura foi dinamitada, destruída, na verdade. O Murilo Mendes diz uma coisa genial: "Só é novo quem é antigo". Por isso que eu gosto cada vez mais de Dreyer, eu acho que mesmo naquela época, do cinema mudo, e da passagem do mudo pro sonoro, realizadores que são muito mais modernos do que uma cinematografia aparentemente moderna.

O Jean Vigo é um desses cineastas que não tem herdeiros.

Exato, exato. (...)

Em certos filmes seus, sobretudo da década de 70, trazem ressonância com um momento de época. Te compararam na Europa com o Fassbinder... E, aqui, pelo menos com um filme de uma cineasta que é a Ana Carolina, um filme que apesar de um estilo completamente diferente, mas que trabalham um pouco com a temática de Mar de Rosas, que tem certas semelhanças, colcar a questão sexual, da liberdade sexual, de jogos de guerra sentimentais. Isso era uma coisa consciente naquela época ou foi como uma busca pessoal isso?

Não. Pra dizer a verdade, eu só fui entender a comparação com o Fassbinder posteriormente quando o Bals terminou de ver Anjos do Arrabalde. Ao contrário do que se pensa, fui entender que gostava de melodrama só mais tarde. Mas pra mim isso não era uma coisa muito clara não. Eu achava que eu fazia um cinema completamente diferente, eu não tinha visto o cineasta que é o mais próximo do Fassbinder, o Douglas Sirk, que nunca foi um cineasta que particularmente me chamou a atenção. Até aquele momento. Era uma comparação que, vou dizer com toda a verdade, não ma agradava em nada. Mas era um cineasta que tinha um respaldo. E eu sempre disse isso, que se tinha um cineasta que tinha uma influência grande sobre a minha obra, sobre o que eu vinha fazendo de um momento pra trás foi o Valerio Zurlini. Zurlini é o cineasta que sempre me serviu muito de ponto de referência. Foi muito difícil chegar até ele, chegar a depurar a obra dele. Porque se o cinema dele se aproxima em alguma coisa do melodrama, aí eu aceito, a idéia do melodrama me interessa. Quando eu descobri que o cinema dele se aproximava do melodrama. Mas pra mim era muito mais a coisa da tragedia familiar, do cinema de sentimentos. E o Zurlini era um cara que curiosamente na Europa era muito mal valorizado, só está sendo valorizado agora. O que não há nada mais sintomático, porque eu fui aluno do Luís Sérgio Person, o Person foi aluno do Zurlini, tem uma coisa curiosa no meio desse processo. Eu posso dizer pra você que, desde o amor pela prostituta, algumas coisas em Lilian M, mas sobretudo com O Paraíso Proibido, que é tirado de um personagem quase zurliniano. O personagem do Jonas Bloch é quase totalmente arrancado de A Primeira Noite de Tranqüilidade, que é o cara que está de passagem pela cidade balneária fora de temporada, que tem essa coisa de trabalhar o sentimento. A gente mesmo nunca é a pessoal ideal para detectar a personalidade da obra. O João Carlos Rodrigues, que é um crítico de cinema, ele detectou um negócio que eu agora entendo, ele separou minha obra em filmes masculinos e filmes femininos. Ele dividiu a obra. E pra cada filme masculino se interpõe um filme feminino. Agora virou uma obrigação (risos).

Dois Córregos é um filme feminino, então?

Totalmente feminino. E é o filme mais próximo talvez do Zurlini, então por isso ele esteja surpreendendo algumas pessoas. Mas ao mesmo tempo as pessoas que amam a obra do Zurlini, como o Inácio Araújo, falaram, "agora você pode seguir o lugar e chegar" (risos). Porque é um filme que se aproxima muito de Verão Violento. De Verão Violento e A Moça com a Valise. Aquela coisa de trabalhar o lado político na periferia, uma coisa que está acontecendo lá fora e a burguesia tá vivendo uma coisa completamente diferente. (...) Precisam tirar da cabeça que o Zurlini não é um sub-Antonioni. Talvez o Antonioni é que seja um sub-Zurlini (risos). Mas como eu gosto dos dois, não posso nem brincar muito (risos).


A Cinefilia e a crítica

Mas o Antonioni lida muito mais com linguagem...


Mas a carreira do Antonioni fodeu, esmagou a do Zurlini. Se comparar, realmente, não tem nada a ver. No Antonioni foi uma falta de sentimento, no Zurlini só tem o sentimento. É o inverso.


Eu só vi
A Primeira Noite de Tranqüilidade, mas a influência do melodrama...


Nitidamente... Mas ele termina como o Fritz Lang, aqueles finais que só o Fritz Lang sabia fazer. Eu acho que o cinema contemporâneo, o cinema sonoro deve tudo ao Fritz Lang. Isso aí o Hitchcock já falava. O Welles deve ao Fritz Lang. Foi a grande escola. Se você for buscar você acha Fritz Lang nos melhores. Nicholas Ray, Samuel Fuller falam textualmente. A gente está redescobrindo um cineasta francês chamado Jacques Becker, eu consegui trazer a cópia do Le Trou da França e exibimos para mais de cinqüenta estudiosos de cinema numa aula de crítica cinematográfica que o Inácio Araújo deu, e foi um estado de... quem é este cara? Foi um dos maiores realizadores franceses. O filho não é tão talentoso, mas está aí fazendo filmes, o Jean Becker. Ele foi assistente, braço direito do Jean Renoir, e que fez antes de morrer uma obra-prima que o Truffaut dizia que era um dos filmes mais bem feitos da história do cinema. E eu assino embaixo, pra mim é um dos dez maiores filmes que eu já vi na minha vida. Le Trou, A Um Passo da Liberdade.


Eu não conheço, do Becker eu vi o
Grisbi.


Grisbi
, né? Desse eu tenho cópia. Não é grande coisa não, mas Le Trou é um filme de final de... Truffaut dizia isso bem claro, Truffaut detestava os cineastas antigos.


Apesar de um dos textos de base da Política dos Autores ter sido a crítica do
Ali Babá, em que ele fala que o pior Jacques Becker é ainda Jacques Becker.


Pois é, ele tem uma admiração, mas ele fala que Le Trou é o maior filme de Jacques Becker, e realmente é o filme de uma obra inteira. Acho que é um filme inclusive que define a obra do Jacques Rivette. Fica vinte minutos filmando o cara quebrando uma pedra! Fica o cara quebrando o assoalho e você não desgruda o olho da tela! Isso aí é coisa de gênio.


Acho que um detalhe fundamental que é assumidamente uma coisa... falei isso muito quando fui lançar Alma Corsária, eu sempre fui um apaixonado pelo cinema brasileiro. Sempre. Sem o menor preconceito contra o cinema brasileiro. O período mudo, a chanchada... Eu adorava os filmes do Luís Carlos Burle. Todo mundo fala do Carlos Manga, o Burle é que tinha o estilo. O Burle era um intelectual. O Carlos Manga não é exatamente um intelectual, mas o Burle é um intelectual. Fez um filme belíssimo, Também Somos Irmãos. Tinha uma coisa de formação e as chanchadas desse cara são muito especiais. Era inclusive uma tentativa de escapar da obviedade da chanchada, etc. E ao contrário, eu gostava de Mojica à Vera Cruz. Vera Cruz alguma coisa, na verdade. Gostava muito do Abílio Pereira de Almeida, que até hoje é um puta cineasta, que hoje está sendo redescoberto.


O Abílio dirigiu os primeiros filmes do Mazzaropi.


Foi. Eram ótimos, por sinal. Candinho, O Homem da Carrocinha, se não me engano [na verdade chama-se Sai da Frente. N. do E.]. Era um chofer de praça. Mas sobretudo Candinho, que é um belíssimo filme. Eu não tenho o menor pudor de dizer que a última parte de Filme Demência foi totalmente inspirada num filme chamado Chico Alves Não Morreu. O encontro com a cigana está nesse filme que foi dirigido por um mexicano no Brasil. Mas tem uma seqüência que eu vi quando criança que nunca me saiu da cabeça. O Chico Alves ia visitar uma cigana, a cigana lê a mão dele e fala pra ele tomar cuidado na estrada. Isso no meio do filme. No final do filme, tem um plano dele pegando a Via Dutra e tem uma panorâmica, coisa de gênio mesmo, uma panorâmica do carro dele em alta velocidade pela Dutra, a panorâmica termina com a cigana parada no meio da estrada. Não precisa falar mais nada. Um poder de síntese e de elipse. Começa a tocar a música e você já sabe que o cara se fodeu. Essa seqüência nunca saiu da minha cabeça, eu tinha pesadelos ao lembrar. Por muito tempo eu associei a imagem da cigana à imagem da morte. Eu tinha que tirar isso pra fora, e agora está lá (risos).


A gente estava falando de cinefilia, e o perfil de cinefilia mudou um pouco dos anos sessenta para cá...


Ah! Perdão. Bom, obviamente, cinema japonês.


É, você fala que não via tanto melodrama mas é engraçado porque a carreira inteira do do Mizoguchi é em torno dos melodramas.


Sim, mas eu entendo mais melodrama no sentido do cinema feminino, do chamado filme feminino. Não é tanto essa noção do melodrama, da tragédia. Ele trabalhava muito o lado do íntimo feminino. Essa coisa que o japonês tem que o ocidental não tem que é o respeito pela puta. Uma coisa impressionante. Havia outro cineasta que fazia filmes sobre prostitutas extraordinário chamado Yasuzo Masumura. Num primeiro momento mais do que Mizoguchi tenha influenciado Lilian M, por exemplo. Ele dizia uma frase antológica, e isso me serviu de base para desenvolver o roteiro de Lilian M, que em toda experiência importante, fundamental da vida feminina o sangue está presente. O parto, a menstruação, o rompimento da virgindade. Só um japonês tem uma cabeça dessa. Isso é um registro dos filmes dele, muito pouca coisa desse homem passou no Brasil. A primeira revista que descobriu foi o Cahiers, a obra do Masumura. (...)


Mas voltando à outra pergunta, a cinefilia mudou. Acho que tanto da parte do público, quanto da parte da crítica e da parte dos cineastas também. Vai-se cada vez menos ao cinema, isso vem sendo comprovado [nesse momento a fita acabou e a pergunta não foi registrada N. do E.]


Essa atividade cinéfila ficou confinada a alguns estados fora do eixo Rio-São Paulo. Mas o que eu acho que também faz muita falta é que o material estrangeiro crítico é muito ruim. Se a referência hoje é a revista Première, Studio, que são revistas comerciais, na verdade... Que são revistas que eu leio, óbvio, se você quer se manter informado, mas cujo padrão de produção, o padrão de qualidade está muito ligado ao cinema que dá lucro. Eu acho que tem um pouco isso também. De uma certa forma, essa desmistificação da política dos autores foi promovida pela crítica francesa e abraçada por alguns teóricos brasileiros, também, e estrangeiros. Isso contrbuiu muito para que sumisse, desaparecesse de certa forma uma certa sede de um cinema de qualidade, um cinema fora dos padrões normais. Você não tem mais o escrever sobre cinema, você não tem uma revista como a Film Cultura hoje, aquela revista que pregava o cinema experimental, e que tinha a sua importância, a coisa de resistência como tinha na época. Acabou no final da década de sessenta. O Cahiers parou quinze anos. E voltou com outro corpo. Tentativas esporádicas, a Trafic é uma revista muito legal, de reflexão cinematográfica, do Serge Daney, maravilhosa. Seria a substituta da Cahiers da época de sessenta, deve sair quatro vezes por ano. Mas tem um pensamento diferenciado. Se bem que o Cahiers mantém gente interessante que escreve, mas é aquela coisa, o cara começa a filmar, pára de escrever. O Olivier Assayas é um exemplo típico, começou a filmar... era um cara interessante, que descobriu o cinema de Hong Kong, descobriu King Hu, descobriu uma série de coisas. Eles não tinham nenhum contato. Eu conheci King Hu pessoalmente e o cinema dele, Um Toque de Zen [1972. N. do E.] é uma das coisas mais geniais já feitas na história do cinema nos últimos vinte anos. E nunca passou, por exemplo. Faz falta isso, você precisa desse material, senão fica uma coisa confinada... Esse espírito do crítico da aventura, da descoberta, isso aí foi praticamente perdido. Vingou uma preguiça, a coisa do jogo de poder, a crítica que faz o jogo do poder e não a que se aventura. Isso é mantido até por uma revista muito maldita, uma revista inglesa que até hoje continua, mas que faz muito esporadicamente chamada Frameworks, que é mantida quase heroicamente, com os teóricos mais radicais, que se interessa em descobrir a filmografia do Sri-Lanka, e esgota o assunto. Onde tem isso, entende? Nem vende. Mas eu acho que isso aí faz falta, essa matéria reflexiva. É o mesmo tipo de jornalismo que se faz hoje no mundo inteiro. Eu falo porque eu também escrevo crítica, colaboro com a Folha de São Paulo. O espaço que você recebe hoje para escrever é quase um terço do que você recebia antigamente. Trocou-se o ensaio pela crítica...


Pelo sorrisinho...


Não, nem pelo sorrisinho. Pela crítica rápida, urgente. (...) A coisa fica cada vez mais confinada. Tem uma revista no Brasil chamada Set, eram cinquenta linhas e já está em quinze. Daqui a pouco são cinco, daqui a pouco é uma linha só. E essa é a revista que vende setenta mil exemplares. O cinema brasileiro ocupa um espaço zero, à esquerda. A revista começou a melhorar com o Cristian Peterman e mandaram o cara embora. Você não tem mais o referencial. O cara que começa a gostar de cinema, que aprende cinema, que o incentivo que ele tem a fazer crítica? Eu me lembro que quando eu estudava na São Luís teve cara que entrou pra ser crítico, pra escrever sobre cinema. Isso existia. Vai ver quantos críticos uma escola de cinema forma hoje. E quem tem interesse? Fica com o jornalista, ele vai ganhar um bico, uma grana a mais se fizer uma crítica, um aumento do salário no final do mês. E é verdade, de um momento pro outro passou a ser exercida por repórter policial.


Geralmente os jornais do Rio têm um repórter de cinema e o resto dos críticos é repórter de outra área.


O repórter de cinema por obrigação tem que ser formado em Jornalismo. Não pode ser formado em Cinema ou em Rádio/TV. Tem que ter carteirinha pra poder escrever em jornal, e isso é um problema. O Cacá Diegues, recentemente, depois das críticas do Orfeu, investiu pesado contra a crítica e falou do tratamento diferenciado da visão que se tem do filme brasileiro e a visão de um filme estrangeiro. Por caminhos diversos eu concordo um pouco com ele, não por achar que tem que pensar no emprego das pessoas, mas por achar que quando você vê um filme brasileiro você percebe muito mais os detalhes do que no filme estrangeiro.


Muitas vezes é política da própria mídia. Você pega a Veja como exemplo, a revista semanal mais vendida do Brasil. Ela tem uma política de falar mal de filme brasileiro. É cultural dela. Se ela vai elogiar um filme, ela arruma um jeito de falar mal em algum momento. Eu não tenho o que reclamar, porque ela deu uma página pro Alma Corsária. Falou: é um herói, o cinema brasileiro feito por heróis. Aí você fala: puxa, até que enfim. Aí o final diz assim: mas... como todo filme brasileiro é um filme incompleto. Acabou, fodeu a crítica inteirinha. Ela faz questão. Comingo ela foi gentil. Mas o que ela fez com o Louco por Cinema, do André Luiz Oliveira... Botou três linhas, disse que o filme era uma bosta, execrável e que o júri do Festival de Brasília, que premiou, era incompetente. Ela não dizia nada, só isso. (...)
O futuro (do cinema brasileiro)

Relativamente ao que você considerou em grande parte seu público nos anos 70 e 80, que era o público C e D, que não vai mais ao cinema porque não existe mais cinema nos bairros de periferia, e também pelo cinema ter aumentado em grande parte o preço, nos anos 90 isso não existe mais. Você acha que isso diminui a possibilidade de os seus filmes dois seus filmes ou você acha que Dois Córregos é um filme que não vai sofrer com isso?

É um outro viés, acho que também mudou. Um dos motivos da fuga do espectador foi o aumento desmedido do preço de ingressos, o fechamento de várias salas, mas sobretudo e principlamente a entrada do filme pornográfico no Brasil. E aí não é uma crítica moralista, muito pelo contrário. Todo filme pornográfico entra no mundo todo em gueto. Na Holanda, que é o país mais liberal do mundo, ele foi confinado a gueto. Aqui, pela maneira como ele entrou, ele entrou com o dedo do americano mesmo de destruir o cinema popular, que era o único cinema brasileiro que dava dinheiro. Isso aconteceu em São Paulo com o cinema Art-Palácio, com o Cine Ouro, com o Cine Windsor, que eram pontos onde estreavam os filmes brasileiros e ficavam semanas e semanas em cartaz. Isso tentaram fazer com o Marabá, o que era pior. Aqui no Rio de Janeiro aconteceu com o Cine Vitória, que era o cinema mais popular que você tinha no Centro, o grande cabeça de lançamento que você tinha aqui, da Severiano Ribeiro. Tocaram filme pornográfico e destruíram o cinema. Volto a repetir que não é nem uma questão moralista, ele entrou de uma maneira desbragada, ele entrou de uma maneira autodestrutiva, niilista, suicida. Não é toa que 80% desses cinemas viraram templo depois. Nada mais sintomático. Isso pra mim foi o golpe mais sério. Mas assim como esse público mudou, os filmes mudaram também. Não tem muito mais sentido voltar a trabalhar com o repertório que eu trabalhava na década de 70, 80. Agora tem um novo tipo de relação. Não é você tentar tanto seduzir. Eu acho que o que marca o cinema brasileiro legal nessa década é que o filme brasileiro virou cultura de ponta. Graças a isso é que você está conseguindo trazer um público novo e reciclar cinema hoje no Brasil. E ai do momento em que você perder esse viés. Não é impossível se você encaminhar pra esse lado do cinema industrial, do cinema comercial. Isso hoje seria suicida.


Não tem como brigar.


Tem que acentuar cada vez que o filme é importante que ele seja visto, porque se você não viu o filme você vai estar por fora. O teatro está enxergando isso, a música esté enxergando isso. Não existe esse conceito de cinema industrial, isso sempre foi uma mentira. Em país de Terceiro Mundo não existe esse conceito de cinema comercial. Tudo que vingou aqui foi sempre pelo caminho do artesanal. Desde a época em que exibidor produzia filme com a chanchada. E diga-se de passagem o seguinte: o que sempre tornou o filme do cinema brasileiro rentável foi a parceria com o exibidor. Não dá pra esquecer que a chanchada foi 90% produzida por exibidor, produzida pelo Severiano Ribeiro, pela Atlântida. E a pornochanchada também. 80% dos filmes de pornochanchada tem parceria com os exibidores. Os três filmes que eu fiz com o Galante mais três que eu fiz à parte têm co-produção dos exibidores. Os mais diferentes possíveis. Represa Sul, Represa Havaí, a Paris Filmes, os donos da sala. Acho que isso é determinante. Esse público que se perdeu tem que resistir com o filme de ponta.


A última pergunta é em relação aos seus projetos. Pelo que eu li são dois projetos que seriam feitos antes ou depois do Dois Córregos, O
ABCD Clube Democrático e O Amigo Católico.


É, o Clube Democrático é um projeto de cinco filmes. SÃo quatro longas pra serem filmados simultaneamente. Está inclusive em captação do primeiro filme.


O Schwarzenega, não?
Aurélia Schwarzenega. Descobri que a mãe do cara chamava Auréila também (risos). Vou ser obrigado a mudar o nome. Uma coincidência tão... É que apareceu uma notíica que a mãe dele tinha morrido, Auréila Schwarzenegger. Eu nunca soube que era o nome da mãe dele, podia ser qualquer nome mas se chamar Aurélia... (risos)

E o filme que você ia fazer com os garotos da ECA agora que você saiu não vai mais acontecer?


A idéia era fazer alguma coisa usando o material que estava queimando na TV cultura e o negativo estava hipervencendo. Era um projeto que a escola tinha que ter um interesse também. Eu tenho muitos projetos, vários projetos. O mais importante é o primeiro. Eu não sou vítima de projetos, sabe aquele que fica, "ah, vai dar vinte anos e aquele filma não saiu, vou me trucidar", etc. e tal. O que existe de projetos prontos lá dentro, prontos inclusive para desenvolver, tem um projeto que se chama Sol Vampiro... Enfim, tem uma infinidade de projetos que eu tenho vontade de seguir. Mas eu volto a repetir, o que eu gostaria mesmo de voltar a fazer imediatamente é um filme de maneira totalemente artesanal mesmo. E pra isso tem até quatro projetos nessa forma, o que não é o caso de ABC. ABC é um filme de estúdio, TV Cultura, mas tem quatro, cinco projetos de filmes urgentes, filmes rápidos, filmes como O Chofer do Presidente, um que tem um título do cacete, Phoder com PH (risos), que é um filme que segue um pouco a filosofia de produção do Alma Corsária. Só vai ser começado a filmar quando já tiver a música pronta, sou eu mesmo que vou fazer, eu mesmo que vou fotografar, vou trabalhar com uma equipe reduzidíssima, muito aluno. O projeto que vier primeiro, a gente traça (risos).

entrevista feita por
Ruy Gardnier e Daniel Caetano
na última semana de maio/99