quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Crítica: O Homem Elefante (David Lynch, 1980)


por José Carlos Avelar
Extraído de http://www.escrevercinema.com/Lynch_elefante.htm

Ver ou não ver, eis a questão

Antes mesmo de entrar no cinema o espectador já sabe que o personagem principal desta história é um homem exibido em barracas de feiras e de parques de diversões como um monstro, vítima, talvez, de um acidente durante a gravidez de sua mãe, metade gente metade elefante. Não por acaso a ação se passa em grande parte num espaço de diversão popular anterior ao tempo do cinema – os parques de diversões, os museus de cera, os trens fantasmas – e o filme se insinua como espetáculo metade do tempo do circo de horrores, que mais sugere do que efetivamente mostra, metade do tempo do cinema, que mais mostra que sugere. De um certo modo, antes do filme o espectador já viu o filme ou pelo menos já sabe como é o filme que vai ver. O anúncio no jornal, o cartaz na porta do cinema e o trailer exibido nas semanas anteriores desenhavam a imagem de um indivíduo fisicamente deformado.

Logo que O homem elefante começa o espectador está portanto à espera de um aleijão. Do monstro anunciado no convite irônico da última frase do trailer: o vigia do hospital diz que por um preço justo todos poderão ver algo que jamais viram em vida. À espera do monstro, anunciado mas não mostrado no trailer, nem no anúncio de jornal, nem no cartaz na porta do cinema. Em todas as peças de divulgação ele aparece como sombra ou com o rosto coberto por um capuz.

Certo, não convém exagerar, não necessariamente o espectador passa pelo material de divulgação antes de pegar o filme no cinema. A escolha do filme pode se dar ao acaso. O público pode ser levado pelo hábito de ir ao cinema ou de frequentar determinada sala de cinema, pode não ter sido preparado para ver o filme do ponto de vista sugerido pela publicidade em torno dele. Mas em O homem elefante, mesmo o espectador ocasional conta com preparação semelhante nas primeiras imagens: a reação dos personagens em cena anunciam que o aleijão que ainda não vemos é mais deformado do que se pode imaginar.

O filme começa, mas o personagem principal não aparece logo. Quer dizer, ele está lá, em cena, mas não podemos vê-lo. Ou porque a câmera olha para ele apenas nos momentos em que ele está numa parte escura do cenário, ou porque na maior parte do tempo a câmera prefere se desviar para as pessoas que olham o homem elefante e se esquece de vê-lo, de mostrar-nos tal como ele é. O filme avança, passa-se o tempo, o monstro continua sem aparecer na tela.

Rapidamente a história muda de assunto quando parece que ele finalmente vai aparecer aos nossos olhos. Bytes, o homem que se dizia seu proprietário e o explorava nas feiras e parques de diversões, abre a cortina, mas o homem elefante não aparece para o espectador. Treeves, o médico que estuda anatomia e se interessa em especial pelo caso do homem elefante, se aproxima dele e pede licença para examiná-lo, mas ainda aí ele não aparece na tela. Ele não aparece nem mesmo quando sua deformação física é descrita e analisada num simpósio de médicos.

Assim, exagerando um pouco, podemos dizer que quando ele finalmente pode ser visto já ninguém mais na platéia está à espera dele, ninguém mais tem um interesse especial em vê-lo. A curiosidade do espectador foi contida, a narração muito habilmente tratou de desviá-la para as pessoas em torno do homem elefante e para o cenário em que estas pessoas se movimentam.

Quando John Merrick aparece pela primeira vez na tela o espectador já tinha visto em detalhe um dos verdadeiros monstros de que se ocupa The Elephant Man: Bytes, o que se diz proprietário do homem elefante e que, irritado com a demorada permanência de Merrick no hospital, aplica-lhe uma violenta surra. Quando Merrick aparece pela primeira vez na tela o espectador já se acostumara a um cenário — mais do que a uma ação: a um cenário, a um espaço — fisicamente deformado.

Uma boa parte desta sensação de se encontrar diante de uma paisagem deformada vem da fotografia em preto e branco. Vem da fotografia não porque ela seja em preto e branco, mas porque ela se serve do preto e branco para endurecer e fomentar os contrastes, para encher a tela de sombras, de fumaças escuras, de montes de carvão, de porões sem luz alguma.

Outra parte desta sensação de espaço deformado vem do som, dos ruídos aparentemente desligados da ação mas que insistem em se infiltrar ali onde não parecem ser chamados: ruídos de goteiras, barulho de esgotos, o arranhado de máquinas, o bater pesado da engrenagem do relógio e a gritaria incômoda das mulheres que brigam na entrada do hospital, os grunhidos dos bêbados no bar.

Só depois de ver tudo isto, só depois de ter os olhos acostumados a este ambiente rude e deformado como há tempo não se costuma ver no cinema (quase todo o tempo feito de cores quentes e brilhantes), só depois de uma meia hora de passeio por esta Londres sombria, é que conseguimos ver o homem elefante. E então ele nos parece uma pessoa nem tão deformada assim, porque inserida num quadro semelhante a ele próprio.

Isto é, a caracterização do ator John Hurt é até bastante fiel à tradição dos monstros do cinema. Mas quando aparece como aqui, cercada de imagens deformadas pela fotografia, surge como figura normal. O espectador está então preparado para ver logo o que o protagonista grita desesperado já perto do final da história, que ele é um ser humano e não um animal. O espectador vê logo o que poucos dos personagens que se mexem no universo do homem elefante conseguem entender.

Levado pela muito hábil imagem promocional, que estimula a invenção de uma horror visual, e pela não menos hábil construção dramática, que promete uma determinada atração para depois dela se desviar, para levar o espectador a criticar durante a projeção exatamente o que parecia a própria razão de ser do filme, levado por esta meia hora em que o homem elefante não se dá a ver na tela, o espectador pode mais facilmente perceber o personagem como ele realmente é.

Uma representação alegórica, gentil – “um Romeu e não um animal”, define uma personagem – retrato de um ser humano que numa sociedade agressiva e deformada se vê perseguido e rechaçado como se fora um mostro. John Merrick é um quase adolescente que chora ao imaginar o desgosto que deu à sua mãe. É um jovem rejeitado, que por medo do contato com os outros permanece calado, não fala. É um homem sofrido, que quase ao final da vida descobre que estar no mundo vale á pena quando a presença de um amigo dá algum sentido às coisas. É um homem que se esconde para que a deformidade de seu rosto não continue a fazer dele uma pessoa que só é olhada para não ser vista.

[A nota acima, escrita em julho de 1981, foi originalmente publicada em jornal na semana de lançamento do segundo longa-metragem de David Lynch nos cinemas do Rio de Janeiro. Talvez, hoje, O homem elefante, depois de ser visto como o filme que efetivamente é, possa ser tomado como uma antecipação dos filmes que Lynch fez em seguida para cinema. No universo do diretor continuamos a encontrar um personagem gentil e ingênuo como um Romeu oculto numa aparência monstruosa que se desfaz apenas quando o espectador percebe a deformação do meio em que ele se encontra. E continuamos a passear por uma espécie de labirinto escuro (como se estivéssemos num trem-fantasma de parque de diversões) sem uma precisa noção de onde estamos e do que realmente vemos. A questão continua a mesma: ver ou não ver.]


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