sábado, 20 de novembro de 2010

Crítica: Uma História Real (David Lynch, 1999)

por Roberto Ribeiro
Extraído de http://www.cineplayers.com/critica.php?id=451

Um trabalho linear e surpreendentemente normal de um dos diretores mais bizarros que existem. Comovente e cheio de simbolismos. Uma belo filme.

Uma expressão para categorizar História Real é 'não-convencional': ele é um drama, mas não há conflito; ele é um road-movie, mas não há velocidade; ele é um David Lynch, mas completamente normal. Aliás, normal é uma das interpretações para o título original, Straight Story. Depois de ser massacrado pela crítica por seu A Estrada Perdida, um filme brilhante, porém, absurdo e difícil de se entender, Lynch resolve contar uma estória de narrativa linear, em boa parte alegre e sem grandes surpresas (inclusive, outro significado para 'straight' é careta, o que este filme é, se comparado aos outros projetos do diretor).

História Real conta a estória de Alvin Straight, um idoso cidadão do meio-oeste americano que, ao saber de um enfarte de seu irmão, resolve visitá-lo. O problema é que o irmão mora em outro estado, e Alvin já não pode mais dirigir, então resolve ir dirigindo um cortador de grama. Quebrando a convenção de road-movies da velocidade construída em Sem Destino, o cortador de grama usado por Alvin é um meio de transporte talvez até mais lento que andar à pé, e isso é mostrado bem numa tomada onde a câmera está focalizada nas linhas de divisão da estrada, passa a focalizar Alvin e seu veículo, mostra as nuvens por um tempo e depois volta a olhar para baixo, mostrando que ele mal saiu do lugar. Aliás, essa tomada das faixas divisórias já havia sido utilizada em Coração Selvagem e Estrada Perdida antes, mas em ambos os casos a câmera se movia freneticamente na estrada, enquanto aqui o movimento é suave e lento, refletindo a natureza do filme. Mas o motivo pelo qual Alvin viaja no cortador vai além da sua impossibilidade de dirigir, ou de sua alegada desconfiança para com motoristas de ônibus; uma viagem dessas demora muito, tanto que ele tem de dormir nos acostamentos das estradas, num mini-trailer que é puxado pelo cortador. Isso lhe dá a oportunidade não apenas de apreciar mais a bela paisagem do local, mas também de refletir. O fato é que os dois irmãos já não se falavam fazia 10 anos, devido a uma troca de insultos no passado, e Alvin quer usar esta oportunidade para refletir sobre seus erros e engolir seu orgulho, botando os pensamentos em ordem.

A trama não nos proporciona situações adversas, nem grandes momentos de tensão onde o personagem tem de se superar para conseguir sobreviver, aprendendo assim uma importante lição de vida (outra convenção de road-movies). Pelo contrário, Alvin sempre tem tudo sobre controle (com exceção de uma ladeira onde o cortador acaba descendo rápido demais), e a viagem segue no ritmo esperado. Ele já é um homem vivido, ex-combatente, e tem muito mais a ensinar que a aprender; a cada nova pessoa que ele encontra, é uma nova lição a dar, e não a receber. Mas essas lições acabam refletindo tudo aquilo de que ele se arrepende, como quando ele diz para dois irmãos mecânicos que só faziam brigar que o irmão é a pessoa que melhor te conhece, e que eles deveriam evitar brigar e aproveitar o irmão que têm, numa clara alusão aos erros que ele próprio cometeu no passado. Essas lembranças acabam mostrando Alvin como um sujeito bem mais amargurado que a impressão tranquila e mansa que ele passa, e isso é mostrado em duas situações: sentindo o peso da velhice cair sobre os ombros (ele já não enxerga bem, e tem de andar com duas bengalas por causa da artrite), ele constata ao ver um acampamento de uma maratona de ciclistas, que a pior coisa em se envelhecer é relembrar a juventude; ao encontrar um outro ex-combatente da Segunda Guerra, ele relembra de um incidente em que talvez tenha matado um companheiro, e a dúvida que o levou a se afundar na bebida após a guerra.

Tecnicamente o filme também é exemplar, com uma fotografia belíssima dos vastos campos de trigo e uma trilha sonora que, como de costume nos filmes do diretor, acaba falando mais do filme que o filme em si. As atuações estão no geral muito boas; tanto a filha de Alvin quanto seu irmão conseguem transmitir muito bem as angústias dos personagens, apesar de seu pouco tempo de tela, mas o destaque realmente vai para Richard Farnsworth, que cria um Alvin extremamente carismático e comovente, num papel que caberia como uma luva para Jack Nance, antigo regular de Lynch. Richard, inclusive, poderia ter vindo a se tornar um novo habitual colaborador do diretor, se não tivesse infelizmente suicidado pouco após o término do filme. Apesar de ser um filme bem diferente, podemos ainda ver claras marcas lynchenianas nele, como a presença de eletricidade (na forma dos trovões), coincidências (o número de veados mortos pela mulher na estrada é o mesmo número de filhos que teve Alvin), a cabana pegando fogo e a pacata vida do interior americano. Além de que, a cena inicial onde vemos uma mulher obesa tomando banho de sol e ouvimos Alvin cair dentro de casa é típica do diretor.

O título em português deve-se provavelmente ao fato de que o filme é baseado em um fato verídico, que chegou a Lynch através de um recorte de jornal com a estória do sujeito. Lynch depois retornaria ao seu lado obscuro e surreal com Cidade dos Sonhos e a mini-série Rabbits, mas História Real foi uma agradável surpresa, e nos deixa todos numa expectativa de um dia poder revisitar este lado mais sensível do diretor. O saldo no final é de um filme bastante comovente, mas que nos deixa sair da projeção com um leve sorriso no rosto, como se também tivessemos aprendido algo mais com o velho Alvin.

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