quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Crítica: Veludo Azul (David Lynch, 1986)

por Daniel Dalpizzolo
Extraído de http://www.cineplayers.com/critica.php?id=1989


"Go to sleep. Everything is all right."

Quando In Dreams, a bela e soturna canção de Roy Orbison, irrompe o silêncio da madrugada para embalar o espancamento de Jeffrey Beumont, nosso protagonista e guia em Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), já estamos suficientemente imersos no universo subversivo de David Lynch. O carro está estacionado à beira de uma auto-estrada mal iluminada, pessoas bêbadas riem da desgraça de Jeffrey, que por sinal está com a boca toda borrada de batom vermelho, assim como seu algoz, Frank Booth, o insano personagem de Dennis Hopper que acabava de lhe beijar antes de sentar a porrada. Uma mulher de formas estranhas dança sobre a lataria do carro, um homem com aspecto de boneco de cera acompanha tudo com encantamento. Arquitetura de um pesadelo, e Jeffrey o sente na pele; é real.

Mesmo em seus filmes mais narrativos, como é o caso de Veludo Azul, o cinema de David Lynch é todo sensorial. Imagens, canções, diálogos, os elementos são dispostos cuidadosamente para a composição de uma atmosfera onírica, e geralmente possuem significância metafórica ou dúbia. Lynch é um grande reconhecedor da essência artística de construção de novas realidades; os filmes discursam sobre nosso mundo, sobre como nos relacionamos com ele e com quem o habita, sobre as perversões, fobias e sentimentos diversos destes habitantes, mas sua representação extrapola os significados que estes signos receberiam do lado de cá. Filmar, para Lynch, não é cercar, induzir ou subtrair-se até atingir a fórmula precisa; mas desbravar, expandir e, principalmente, explorar sensações, nem que isso resulte em um filme de três horas cheio de excessos.

Veludo Azul inicia mostrando o cotidiano de uma pacata cidade do interior dos Estados Unidos. Casas com cerquinhas brancas, flores coloridas, crianças brincando no jardim, o caminhão de Bombeiros passeando lentamente pela rua enquanto seus passageiros, sorridentes e num slow motion tosco, acenam para os vizinhos. Tudo muito bonito e tranquilo em Lumberton. A superfície da cidade é a representação estética do american way of life, o tal sonho estadunidense, a vida perfeita, aquela comercializada nas publicidades de creme dental onde o branco soa mais branco do que você jamais poderá ver, mas debaixo da grama os insetos remoem a terra e compõem uma paisagem negra de depredação, e a câmera de Lynch, é claro, faz questão de os perseguir.

Viver na cidade dos sonhos? Ah, puta tédio, viu. Andar pelo campo sentindo o ar fresco da natureza? Tédio. Tédio redobrado. A vida só volta a ficar interessante para Jeffrey em sua viagem ao interior quando finalmente encontra uma orelha humana grudada na grama, apodrecendo aos poucos. A câmera de Lynch, é claro, faz questão de persegui-la. E mais: penetrá-la. A orelha é um portal e um brilhante truque narrativo: adentramos ao outro lado desta realidade. The dark side. Sai o sonho idealizado, surge o pesadelo do obscuro e do sadomasoquismo, essa mistura de dor e fascínio que nos regra. Um lado precisa existir para que também exista o efeito do outro, e é a partir deste paradoxo que Lynch dá início à sua viagem por esse pesadelo carnal – e real.

O universo de Veludo Azul respira ares de sarcasmo em torno desta relação paradoxal. O romantismo soa cafona, a perversão uma comédia, o sexo quase um ato de violência. Aqui, a excitação é medida na ponta da navalha. Se Jeffrey tem duas opções (dificilmente existe apenas uma saída para qualquer situação, isso na vida mesmo), depois da orelha escolhe sempre a mais estranha. “Não sei se você é um detetive ou um pervertido”, diz a formosa loira (Laura Dern, é, nem tão formosa assim) pela qual ele se apaixona, depois de vê-la surgir da escuridão da forma mais brega possível durante uma caminhada noturna – aparição que inclui iluminação over no rosto da atriz e trilha de conto de fadas. “Isto eu sei, e você terá que descobrir”, responde. Dito isso, se enfia dentro de um armário e observa uma mulher perturbada tirar a roupa e, mais adiante, trepar de um jeito um tanto quanto maluco com seu homem, que a espanca, preenche a boca com pedaços de veludo e respira com auxílio de um inalador aos gritos de “baby wants to fuck!”.

Depois de situados nessa ótica perversa de Lynch, só resta mesmo nos entregarmos e aproveitar o espetáculo. E Veludo Azul é um deslumbre. Suspense oitentista com cara de aventura juvenil filmada por alguém que viu muito filme noir e, depois disso, resolveu desmistificar o lado negro do ser humano misturando aromas vespertinos com odor de sangue e esperma. David Lynch abre espaço para diversas sensações, algumas delas chegando juntas num misto de fascínio e horror bastante semelhante ao vivido por Jeffrey nessa jornada insana. As reações do lado de cá soam tão subversivas quanto alguns dos melhores momentos do filme; ou vai dizer que as bizarrices de Dennis Hopper e suas dezenas de frases de efeitos, palavrões e atitudes inconsequentes não são o máximo de comicidade que se pode extrair de um filme que chafurda tão a fundo na podridão dos instintos carnais humanos?

É de Hopper os melhores momentos de Veludo Azul, aqueles que os fãs do filme lembram com maior entusiasmo e dos quais sabem todos os diálogos de cor. Não é pra menos. Frank Booth é seguramente o personagem mais icônico construído pelo cinema de Lynch, que se aproveita da figura doentia do ator para deitar e rolar em sequências que beiram o seu surrealismo futuro. De frases antológicas como “I'll fuck everything that moves!” a imagens bizarras como as inspirações com inalador, Frank Booth é ele próprio um genuíno personagem de pesadelos, mas que, em Veludo Azul, representa perigo real ao nosso protagonista. E se Lynch ao final de tudo insinua um retorno aos comerciais de creme dental com aquele epílogo sobre pintarroxos e novos sonhos idealizados, o belo e vasto gramado do quintal não nos deixa iludir. Afinal, debaixo dele sempre existirão os insetos.

Nenhum comentário: