por Pablo Villaça do site especializado www.cinemaemcena.com.br
Na maior parte das vezes, assim que acabo de assistir a um filme considero-me preparado para escrever sobre o que vi: posso até ter perdido um detalhe ou outro, mas nada que comprometa o quadro geral. Por outro lado, ocasionalmente me deparo com um projeto como As Bicicletas de Belleville e descubro-me incapaz de redigir uma única linha antes de vê-lo mais uma ou duas vezes. A sensação, que poderia ser frustrante (principalmente por impedir, ao menos temporariamente, que eu realize meu trabalho), acaba se revelando desafiadora – talvez seja assim que um matemático se sinta ao atacar um problema particularmente complexo.
Não que eu tivesse alguma dúvida sobre se havia gostado ou não do filme; era apenas uma questão de `quanto` e `por quê`. Dirigido pelo francês Sylvain Chomet, As Bicicletas de Belleville não é uma produção que se destaca por seu roteiro, mas sim por seu visual absolutamente arrebatador, que consegue contar a história e desenvolver os personagens sem precisar de uma trama definida ou sequer de diálogos - ver seus protagonistas em movimento é o bastante para que o espectador aprenda tudo o que precisa sobre estes: suas fraquezas, suas metas e, principalmente, suas personalidades.
Tomemos, como exemplo, a heroína da história, Madame Souza, uma velhinha portuguesa que, pequena e aparentemente frágil, possui uma força física surpreendente que reflete justamente sua inabalável determinação. Responsável pela criação do neto tristonho, com quem leva uma vida silenciosa e entediante, a personagem faz de tudo para descobrir algo que possa alegrá-lo: sua primeira tentativa é presenteá-lo com um cachorro, que logo é esquecido e se torna mais um deprimido integrante da família; e, em seguida, com uma bicicleta, que, apesar de não servir realmente para trazer alegria ao menino, ao menos lhe oferece um passatempo que, anos depois, se transforma em uma ocupação em tempo integral, já que ele se transforma em um atleta (tendo a avó como treinadora e preparadora física).
Sem contar com diálogos (há apenas uma ou duas falas ao longo de toda a projeção), As Bicicletas de Belleville mergulha o espectador em um universo bizarro que, mesmo em meio à melancolia de suas cores e cenários, consegue fazer rir através do absurdo. Os fãs de animação, por exemplo, certamente reconhecerão a influência dos traços expressionistas de Chuck Jones (como o próprio ciclista, com sua imensa musculatura) e, é claro, o estilo inconfundível das gags visuais de Tex Avery (como na seqüência em que vemos Fred Astaire ser engolido por seus sapatos e Django Reinhardt tocar violão com os pés). Além disso, o apuro técnico de Chomet é responsável por várias seqüências plasticamente maravilhosas, como no plano em que vemos a luz atravessando as nuvens durante um temporal.
Mas acho que estou passando uma idéia errada sobre o filme, apresentando-o apenas como um prazer `intelectual`, cult. Então permitam que eu desfaça esta impressão (apesar de ter certeza de que este longa se transformará, sim, em um verdadeiro objeto de adoração por parte de um grande número de pessoas): As Bicicletas de Belleville é uma produção engraçada que também pode ser vista como um bom passatempo: seu humor bizarro e por vezes cruel inclui seqüências surpreendentes, como aquela em que vemos várias mulheres obesas saindo de carros pequenos enquanto arrastam seus maridos como se estes fossem pequenas bolsas (e, para elas, são mesmo); e outra na qual uma velhinha caça sapos em um brejo utilizando granadas.
Ainda assim, devo fazer a mesma ressalva que fiz ao escrever sobre A Viagem de Chihiro: este não é um filme para crianças: o mundo concebido por Chomet é, em vários momentos, assustador e gráfico, como na cena em que Madame Souza visita um velho prédio habitado por prostitutas decadentes e cujos sanitários se encontram abarrotados de fezes humanas. Vale observar, também, que a Belleville apresentada pelo cineasta funciona como uma visão ácida da sociedade consumista norte-americana, com seus cidadãos obesos e suas onipresentes lanchonetes de fast food (até mesmo a `Estátua da Liberdade` aparece gorda e segurando um imenso sorvete).
Por outro lado, o preguiçoso cachorrinho Bruno revela-se encantador, embora esteja longe de ser mais um `animalzinho engraçadinho` das animações - seu carisma não é conseqüência de um visual bonitinho ou de suas gracinhas, mas sim de sua personalidade: quando filhote, Bruno teve a cauda atropelada pelo trenzinho elétrico de seu dono e, traumatizado pela experiência, passa a vida esperando pelos momentos em que pode latir para os vagões que passam ao lado de sua casa (sua obsessão é tamanha que acaba invadindo seus sonhos). Porém, é claro que Chomet não poupa o personagem de seu humor impiedoso, encontrando várias maneiras de submetê-lo a diversas humilhações (com destaque para a seqüência em que Madame Souza descobre uma maneira inovadora de consertar um pneu furado).
As Bicicletas de Belleville é, de fato, um filme inesquecível. E, se precisei assistir a esta animação três vezes somente para poder escrever esta análise, não posso sequer imaginar quantas vezes voltarei a vê-la somente pelo prazer de visitar novamente a impressionante criação de Sylvain Chomet.
Observação: não deixe de conferir a pequena cena que surge após os créditos, e que conclui uma das piadas presentes no filme.