segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Crítica - Persépolis


por Pablo Villaça do site especializado www.cinemaemcena.com.br


Persépolis é uma animação que inclui estupro, morte de manifestantes em uma passeata, execução de presos políticos e uma conversa entre Deus e Marx. Não é, portanto, um filme feito para crianças, mas sim para adolescentes e adultos – e, ao lado das maravilhas criadas pelos japoneses Satoshi Kon e Hayao Miyazaki, serve para ilustrar como uma técnica historicamente associada a filmes infantis vem criando obras que representam o que de melhor o Cinema mundial tem oferecido ao público mais maduro (e que, em minha opinião, tem em O Túmulo dos Vagalumes, de Isao Takahata, seu representante máximo).


Adaptado e dirigido por Vincent Paronnaud e Marjane Satrapi a partir da graphic novel autobiográfica (dividida em quatro volumes) escrita por esta última, Persépolis segue a trajetória de amadurecimento de sua protagonista a partir de seu relacionamento conturbado com seu país, o Irã, cuja história mais recente é recapitulada numa maravilhosa seqüência estrelada por bonecos de papel, quando vemos o futuro Xá Reza Pahlavi entregar o petróleo de seu país à Inglaterra em troca do apoio para subir ao poder – o que não impediu que ele fosse eventualmente substituído pelo filho ainda mais repressor. E é assim que chegamos a 1979, quando a pequena Marjane, aos 9 anos de idade, testemunha o golpe que levaria o Aiatolá Khomeini ao controle da recém-declarada (com apoio da população) República Islâmica – o que conduziria o Irã a um estado ainda maior de repressão e medo, além de uma longa e sangrenta guerra com o Iraque de Saddam Hussein.


Narrado a partir do infantil ponto de vista da protagonista, o filme acompanha todos estes acontecimentos com um ar de mistério e até fantasia que os tornam ainda mais assustadores, embora a incapacidade da garota de absorver a gravidade de tudo permita que ela também os enxergue de forma distanciada, através de um véu de ingenuidade que traz até mesmo um forte e bem-vindo senso de humor à narrativa. Assim, a preferência de Marjane por representantes da música ocidental, proibida no Irã, levam a divertidas buscas de fitas no mercado negro e a confrontos que beiram o absurdo graças à sua jaqueta que traz uma afirmação hilária naquele contexto. E se fiz Persépolis parecer uma obra séria e sombria nos parágrafos anteriores, perdoem-me, pois o fato é que o longa jamais deixa de provocar o riso graças à sua abordagem sempre inventiva.


Construído com claras influências expressionistas (em certo momento, há uma referência especialmente eficaz a “O Grito”, de Munch), o filme investe num preto-e-branco marcante – e mesmo as cenas ambientadas no presente são coloridas em tons nada intensos. Da mesma maneira, o design de produção contribui para que mergulhemos na realidade entristecida e opressora de um país que encontra, na repressão, uma maneira cruel de manter-se estável: observem, por exemplo, a penitenciária que abriga os presos políticos ou o angustiante plano que revela a solidão de Marjane através das sombras que cercam o telefone que esta usa para uma ligação para casa. E não há como negar a genialidade da cena em que os combatentes de ambos os lados de uma batalha trocam tiros que já os derrubam na vala comum que os separa.


Aliás, Persépolis é particularmente inteligente ao adotar estratégias visuais que ilustram a violência da guerra e da repressão sem que, com isso, se torne excessivamente gráfico, como demonstram as seqüências que revelam apenas as silhuetas de manifestantes em confronto com o exército. Esta inventividade se aplica, também, aos momentos de maior leveza da narrativa, como ao retratar as mudanças físicas sofridas por Marjane na adolescência e, particularmente, ao apresentar seu primeiro grande amor ao público: do carro flutuante ao corrimão cuja base remete a dezenas de corações, a seqüência consegue ilustrar algo mais complexo do que meros incidentes do roteiro, servindo para mergulhar o espectador no universo emocional da personagem – algo que atinge seu ápice na cena em que seu namorado traga um cigarro cuja fumaça é expelida pela protagonista, representando a união máxima do casal. E se o estado de espírito da garota em um instante de depressão é representado pela poltrona cujo encosto remete claramente a uma lápide, a transição temporal no terceiro ato é igualmente brilhante, sendo alcançada através de uma imperceptível fusão diante da entrada do aeroporto Orly.


Fascinante estudo de personagem que não romantiza sua protagonista apenas por esta ser também a autora do texto original, Persépolis acompanha Marjane enquanto esta foge do fundamentalismo islâmico apenas para cair no fundamentalismo católico – e, ao renegar (mesmo que quase inconscientemente) suas origens e sua religião, ela trai tudo aquilo pelo qual seus antepassados aceitaram morrer enquanto defendiam. Torturada pela culpa que enxerga na futilidade de sua vida na Europa enquanto seus parentes sofrem na guerra, ela se entrega a uma rotina de clara auto-punição – e não deixa de ser curioso que, ainda hoje, Satrapi pareça não perceber suas motivações inconscientes para aquele comportamento, já que o roteiro atribui sua degradação a uma frustração romântica quando esta claramente foi apenas a gota final de um processo que se iniciou no momento em que ela viu a mãe desmaiar de tristeza por ter que dar adeus à filha. Por outro lado, Marjane demonstra uma compreensão exemplar das conseqüências morais de uma vida sob uma ditadura impiedosa: aos poucos, os cidadão se vêem compelidos a abandonar suas convicções e até mesmo seu compasso moral, trocando a consciência pela segurança provisória.


Enriquecido pela maravilhosa dublagem da pequena Gabrielle Lopes, que empresta sua voz à versão infantil de Marjane, Persépolis também conta com um elenco de peso que traz Chiara Mastroianni como a protagonista na adolescência e em sua fase adulta; Catherine Deneuve como sua mãe; e a veterana Danielle Darrieux no papel da divertida, sensata, forte e cativante avó da menina. Aliás, esta escalação torna-se ainda mais eficaz graças à ligação existente entre as atrizes, já que Chiara é realmente filha de Deneuve (e seu sobrenome vem do pai, Marcello). Como se isto não bastasse, Darrieux interpretou a mãe de Deneuve em Duas Garotas Românticas, dirigido pelo casal Jacques Demy e Agnès Varda em 1967. Mais apropriado, impossível.

Um dos melhores filmes de 2007, Persépolis é uma obra historicamente abrangente e psicologicamente complexa, o que não a impede também de ser simultaneamente engraçada e profundamente tocante.


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