sábado, 28 de abril de 2012

28/04: À Leste de Bucareste (Corneliu Porumboiu, 2006)

À Leste de Bucareste - Corneliu Porumboiu (2006)

Sinopse
No aniversário de 16 anos da queda do ditador Ceausescu na Romênia, uma emissora de TV local decide reunir pessoas para um debate sobre o tema. Entre os convidados estão Piscoci (Mircea Andreescu), um velho aposentado, e Manescu (Ion Sapdaru), um professor de história que analisa as mudanças locais ocorridas desde 25 de dezembro de 1989, data de execução do ditador.  Duração: 89 minutos

Crítica: A agonia romena dos últimos dias de Ceausescu: À Leste de Bucareste (Corneliu Porumboiu, 2006)

por Carlos Fernandes


A grande surpresa no mundo cinematográfico na segunda metade da última década foi, sem dúvida, o Cinema Romeno, que outrora desconhecido, passou a ser uma das mais revigorantes forças do cinema europeu do século XXI. Os olhos de todos voltaram-se para o cinema desse pequeno país do Leste Europeu a partir de 2005, quando o longa A Morte do Sr. Lazarescu (Cristi Puiu, 2005) venceu a mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes em 2005. No ano seguinte, foi a vez de À Leste de Bucareste (Corneliu Porumboiu, 2006) ganhar a Câmara de Ouro desse mesmo festival e em 2007, 4 meses, 3 semanas, 2 dias  (Cristian Mungiu, 2007) levar a Palma de Ouro, o prêmio máximo de Cannes. Desde então, o cinema romeno passou a ser um grande destaque no mundo cinematográfico e diversos outros filmes foram aclamados pela crítica internacional, entre eles, Como festejei o fim do mundo (Catalin Mitulescu, 2007), California Dreaming (Cristian Nemescu, 2007), Polícia, Adjetivo (Corneliu Porumboiu, 2009), Contos da era dourada (Ioana Uricaru, Hanno Höffer, Räzvam Márculescu, Constantin Popescu, Cristian Mungiu, 2009) e Se eu quiser assobiar, eu assobio (Florin Serban, 2010).

Uma das coisas que mais chama atenção nessa recente safra do cinema romeno, além do uso de uma estética realista e minimalista e da recorrente presença de um afiado humor negro, lembrando muitas vezes a obra do cineasta sérvio Emir Kusturica, é a presença quase que constante do ditador romeno Nicolae Ceausescu e dos últimos momentos de seu governo até a sua queda. Se ele e os últimos dias de sua ditadura não são o tema principal, como é o caso de À Leste de Bucareste, Como festejei o fim do mundo e Contos da Era Dourada, eles aparecem como plano de fundo, em silêncio, mas plenamente ativos na cabeça e nas ações dos seus personagens, sufocando-os, como em 4 meses, 3 semanas, 2 dias (o comércio ilegal de cigarros, a proibição do aborto, a necessidade constante de se andar com um documento de identidade) e Polícia, Adjetivo (a força da polícia romena, a crença de que a lei mudará em breve). Mas, de onde vem essa obsessão pelos últimos dias de Ceausescu?

Nicolae Ceausescu (1918-1989), líder então do Partido Comunista Romeno, que apesar de repudiar Stalin e adotar uma política de enfrentamento antirrussa, presidiu a Romênia de 1965-1989 com mão de ferro e utilizando-se da propaganda de culto à sua personalidade, criou uma tirania rígida e feroz, onde a Romênia era essencialmente um Estado policial, dada a onipresença de sua polícia secreta (Securitate). Além disso, as políticas econômicas e de desenvolvimento de Ceausescu, muitas vezes megalomaníacas, promoveram uma grave escassez de comida, medicamentos e energia, levando à pobreza a população. A reclusão desse regime era tanta que em Como festejei o fim do mundo, o “fim do mundo” é uma clara alusão ao fim do regime de Ceausescu.

No ano de 1989, movimentos de erradicação ao comunismo vinham de Berlim, onde o muro havia caído em novembro, no sentido do Leste Europeu. Em 17 de dezembro, na cidade romena de Timisoara, manifestantes foram recebidos a tiro pela Securitate, o que provocou uma reação da população em diversas cidades. Cinco dias depois, esse movimento chegaria à capital, Bucareste, e no mesmo dia Ceausescu e sua esposa seriam presos. Por isso, dia 22 de dezembro é considerada a data da chamada Revolução Romena. No dia 25, Ceausescu e sua esposa foram julgados por um tribunal irregular e condenatos à morte por fuzilamento. São executado  no mesmo dia e o fuzilamento é exibido pela televisão romena (e as imagens estão disponíveis no Youtube). A Romênia foi um dos últimos países do Leste Europeu a derrubar o regime socialista e foi o único que teve um fim violento para o seu regime. Entretanto, passados mais do que 20 anos da Revolução Romena, inúmeras questões ainda permanecem sem resposta e ainda geram controvérsias. Pouco se sabe sobre a real atuação dos líderes da Revolução e suas verdadeiras intenções já que muitos deles ainda pertenciam ao velho regime. Questiona-se ainda a razão de alguns fatos terem ocorrido e se tudo não foi apenas uma armação para se tirar vantagem do caos e encenar um golpe.  Nesse ínterim, indaga-se se realmente o levante popular houve importância ou foi apenas um elemento que acabou servindo de joguete para essa encenação. É aí que entra Corneliu Porumboiu e seu magnífico À Leste de Bucareste.

Podemos dividir À Leste de Bucareste em duas partes, cada qual representando uma metade do filme. Na primeira metade, vemos o cotidiano dos três personagens centrais do filme em uma pequena cidade do interior da Romênia: Virgil Jderescu, um egocêntrico jornalista da televisão local; Emanoil Piscoci, um velho senhor famoso por se vestir de Papai Noel no Natal e; Tiberiu Manescu, um professor de história alcoólatra. E na segunda metade, temos a exibição do programa de Jderescu, que convidou Piscoci e Manescu para debaterem em seu programa comemorativo dos 16 anos da Revolução Romena, se naquela cidade houve ou não a Revolução. E é aí que o filme carrega todo o seu brilhantismo. Por quarenta minutos, temos apenas uma única cena que é a exibição do programa de Jderescu, onde Manescu conta sobre como foi à praça da cidade e iniciou ali a revolução, para logo depois ser desmentido por um grande número de pessoas ao vivo na televisão, deixando Jderescu totalmente sem graça. E nós ficamos presos à tela, pela extrema comicidade da cena e pelo trabalho brilhante dos atores Mircea Andreescu (Piscoci), Teodor Corban (Jderescu) e Ion Sapdaru (Manescu). E utilizando-se do escracho, Porumboiu faz daquela pequena cidade um símbolo para toda a Romênia, mostra ao mundo as recentes controvérsias históricas romenas e convida brilhantemente o povo romeno a se lembrar daquela revolução para finalmente compreendê-la e usá-la para se construir um futuro melhor, como o próprio Jderescu propõe em seu programa. Além disso, Porumboiu critica e ameniza o povo romeno. Se por um lado, ele demonstra que a população talvez não tivesse a real dimensão de tudo aquilo (dado pela fala de Piscoci “fui à praça para mostrar à minha esposa que eu podia ser um herói”), por outro ele argumenta que a nova geração (os alunos de Manescu) não se importa com a história da Romênia, já que preferem conhecer mais a Revolução Francesa que o Império Otomano, o qual a Romênia fez parte. Por fim, na primeira metade do filme, Porumboiu ainda nos faz pensar se realmente houve uma revolução propriamente dita na Romênia já que muitas coisas permaneciam iguais há 16 anos: mesmo estando em 2005 o professor ainda tinha que retirar o seu pagamento na escola, a rede de televisão no qual Jderescu é dono é uma cópia idêntica das televisões estatais dos regimes socialistas da Cortina de Ferro, além da própria arquitetura da cidade, que não parece ter mudado em nada nos últimos 30 anos. Além disso, Porumboiu dá sinais que a transição para o capitalismo e globalização tem sido difícil para o povo (tema mais explorado em A Morte do Sr. Lazarescu), é o comerciante chinês sendo ofendido, é a banda da televisão tocando pateticamente uma música latina.

A Romênia fez do seu cinema recente um divã para as suas questões históricas. À Leste de Bucareste é a sessão de psicanálise que mergulha mais profundamente em suas agonias. Entretanto, sua mensagem final é bastante positiva, com a esperança de dias melhores à Romênia com o acender das luzes, com a neve que volta a cair depois de tanto tempo e com a frase “Pacífica e bela, é tudo o que eu lembro da revolução”.

sábado, 21 de abril de 2012

21/04: Katalin Varga (Peter Strickland, 2009)

Katalin Varga - Peter Strickland (2009)

Sinopse
Expulsa pelo marido e pelo povo de sua aldeia, Katalin Varga fica sem escolha a não ser ir em busca do verdadeiro pai de seu filho, Orbán. Levando o menino com ela sob outro pretexto, ela viaja através dos Cárpatos, onde decide reabrir um capítulo sinistro de seu passado e se vingar. A caçada leva a um lugar ao qual ela jurou 11 anos antes nunca mais voltar. Duração: 82 minutos.

Crítica: Katalin Varga (Peter Strickland, 2009)

por Marcelo Hessel


História forte de acerto de contas cava o que a Romênia tem de mal-assombrada


Depois de uma leva de filmes romenos urbanos, com preocupações frequentemente associadas ao fim do comunismo, como os premiados À Leste de Bucareste e 4 Meses, 3 Semanas, 2 dias, pra ficar em dois que chegaram ao nosso circuito comercial, eis que surge esse corpo estranho que é Katalin Varga, resgatando o que a Romênia rural tem de mais atemporal, mal-assombrada. Não é a Romênia dos vampiros, mas há fantasmas por todo lado.

Um desses fantasmas assombra a personagem-título. Katalin Varga (Hilda Péter) está sendo expulsa de casa pelo marido, porque um segredo seu, de anos atrás, chegou aos ouvidos de todo o vilarejo. Ela mal tem tempo de se despedir - junta algumas roupas, coloca o filho sobre a carroça e pega a estrada. Katalin diz ao menino que eles vão para a casa da avó, que está doente, mas logo descobrimos que o destino dos dois é outro.

Durante boa parte do filme o roteirista e diretor inglês Peter Strickland nos esconde o tal segredo. Mas pela forma como filma a viagem da mulher, com o som desenhado para amplificar os menores barulhos, dá a entender que o ambiente (e a forma como o homem interage com esse ambiente) tem parte de culpa nessa história. Sinos de gado, trote de cavalo, um regato, o vento, o barulho da carroça, sons de inseto, tudo contribui para o tormento de Katalin Varga, como se Terrence Malick filmasse uma história de Cormac McCarthy.

Se o uso do som não é muito sutil em alguns momentos, Strickland compensa com a criação de um competente universo bucólico de fantasmagoria. Não por acaso, o acerto de contas de Katalin começa ao redor de uma fogueira, com uma dança acelerada que parece se passar nos portões do inferno. Quando o diretor finalmente nos conta em detalhes o tal segredo da mulher, ela está sentada numa canoa em movimento, e a paisagem turva ao fundo adiciona vertigem a essa viagem no tempo a que somos submetidos. Para um estreante, Strickland faz um trabalho bastante seguro. A menção a McCarthy não é gratuita - as narrativas sangrentas do escritor têm a mesma preocupação com a descrição de pequenas coisas que a câmera do diretor tem para eleger planos-detalhes. Ele não vitimiza Katalin além da conta (ela não perde o sono, por assim dizer, como mostra o filme) e reúne religiosidade, selvageria e memória em um combinado forte. É um cineasta a acompanhar.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

07/04: 4 meses, 3 semanas, 2 dias (Cristian Mungiu, 2007)

4 meses, 3 semanas, 2 dias - Cristian Mungiu (2007)

Sinopse
Em 1987, nos últimos dias do comunismo, Otilia (Anamaria Marinca) e Gabita (Laura Vasiliu) dividem um quarto num dormitório estudantil. Elas são colegas de classe na universidade de uma pequena cidade romena. Gabita está grávida e o aborto é ilegal no país. Otilia aluga um quarto num hotel barato. Lá elas recebem um certo Sr. Bebe (Vlad Ivanov) , chamado para resolver a questão. Mas, ao saber que Gabita está com a gravidez mais adiantada do que havia informado, Sr. Bebe aumenta as exigências para o serviço. Ele cobra um preço que as duas não estão preparadas para pagar. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes no ano de 2007. Duração: 113 minutos

Crítica: 4 meses, 3 semanas, 2 dias (Cristian Mungiu, 2007)

por Rodrigo Carreiro
Extraído de http://www.cinereporter.com.br/criticas/4-meses-3-semanas-e-2-dias/

Palma de Ouro em Cannes 2007, filme romeno prossegue tradição do país: contar histórias muito humanas de gente miúda.

Filmes que ganham a mais prestigiosa láurea do cinema de autor – a Palma de Ouro no Festival de Cannes – conquistam, também, a responsabilidade de ter que satisfazer a enorme expectativa criada instantaneamente na comunidade cinéfila internacional. Não é uma tarefa fácil. Do ponto de vista do espectador, encarar um longa-metragem premiado em Cannes significa estar frente a frente com um candidato a obra-prima. Pois bem: jogando no lixo todo o aparato estético disponível para apegar-se apenas a uma narrativa crua e muito bem construída, “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” (4 Luni, 3 Saptamani si 2 Zile, Romênia, 2007) sacia todas as expectativas, e vai além.

A rigor, Cristian Mungiu fez um filme-irmão do sensacional “A Morte do Sr. Lazarescu” (2005), obra responsável por lançar os holofotes do mundo cinéfilo em direção à minúscula Romênia. Ou seja, fechou um ciclo vitorioso. Graças à exposição gerada pelo filme de Gabriel Puiu (que ganhou a mostra paralela Um Certain Regard em Cannes 2005), o cinema barato e despojado produzido no país do leste europeu conquistou o respeito e a admiração de Cannes, tendo outras obras premiadas por lá (“Como Comemorei o Fim do Mundo”, “A Leste de Bucareste” e “Califórnia Dreaming”). A Palma de Ouro atribuída a “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” coroa esta etapa do cinema romeno. É um troféu que valoriza tanto o filme em si quanto toda a cinematografia do país.

Afinal de contas, o cinema romeno contemporâneo é um movimento articulado e coletivo, como foi o Dogma 95 na Dinamarca (aliás, movimento que lançou um manifesto estético de onde os filmes da Romênia bebem bastante). Os longas produzidos por lá dividem muitas características. A estética é minimalista, crua e despojada, que aparenta desleixo técnico mas tem grande rigor formal: longas tomadas sem cortes, câmera na mão, luz natural e som direto, exclusivamente diegético (ruídos cuja origem está dentro do espaço cênico). Não há música para indicar o que o espectador deve sentir. É um cinema visceral, que quebra intencionalmente diversas regras da gramática cinematográfica clássica, mas o faz com a autoridade de quem sabe que isto é necessário para gerar uma resposta emocional verídica na platéia.

Observe, por exemplo, a longa cena do jantar, em que a câmera permanece parada, focalizando com clareza o desconforto de Otilia (Anamaria Marinca, maravilhosa) diante da situação indesejada. Por longos minutos, enquanto ela permanece estática e impaciente, as pessoas que a rodeiam na mesa conversam despreocupadamente, sem perceber o drama que se desenrola na cabeça da garota – e que nós, a platéia, conhecemos bem, porque estávamos com ela antes. Vários participantes da conversa permanecem fora do quadro quando falam, algo inimaginável em um filme de Hollywood. Só que o diretor Cristian Mungiu sabe o que faz. Ao se recusar a desviar o olhar do rosto de Otilia, ele cria uma tensão e uma angústia crescentes do espectador. Este rigor formal ajuda a platéia a compartilhar a assustadora situação vivida por Otilia e Gabita (Laura Vasiliu, ótima), as duas personagens principais.

As duas moças estão na faixa dos 20 anos e dividem um quarto numa república de estudantes em Bucareste. Como todo estudante, elas não têm grana. A ação se passa em 1987, nos últimos anos da ditadura comunista de Nicolau Ceaucescu, quando produtos ocidentais como cigarros e chicletes só podiam ser encontrados no atuante e caríssimo mercado negro. A história, narrada quase em tempo real, tem semelhanças claras com a contada em “A Morte do Sr. Lazarescu”. Uma das meninas está grávida e deseja se submeter a um aborto ilegal, que só pode ser realizado num hotel vagabundo e por um médico asqueroso (Vlad Ivanov, assustador), que não hesita em tirar proveito da condição de desespero das mulheres. A longa seqüência que reúne os três personagens dentro do hotel é um primor de direção. Mungiu escolhe sabiamente cada posição de câmera, mostrando e deixando de mostrar na medida exata, e consegue criar um instante cinematográfico de fortíssimo impacto emocional.

Também roteirista, Cristian Mungiu escreveu o roteiro do filme em apenas um mês, baseado em uma história verídica que ouviu enquanto era estudante. Durante as filmagens, realizadas ao custo ínfimo de US$ 600 mil, ele se permitiu realizar diversas alterações, cortando e cortando cada vez mais diálogos, de modo a sugerir mais do que explicitar (e note como isto funciona perfeitamente, como na cena em que Otilia suborna sutilmente a atendente de um hotel com uma carteira de cigarros, sem jamais pronunciar uma única palavra sobre o “presente”). A verdade é que há muito talento escondido atrás do trabalho técnico aparentemente desleixado – a fotografia de Oleg Mutu é excepcional, com composições precisas e de clareza narrativa, mesmo sob condições difíceis de iluminação.

O que temos aqui, de fato, é o caso clássico da estética que serve à narrativa. O despojamento técnico ajuda a desnudar por completo a essência do filme: uma história pequena, humana, narrada com grau razoável de distanciamento emocional, com muito respeito à dor e aos sentimentos dos personagens. Como todos os filmes contemporâneos feitos na Romênia, a obra de Cristian Mungiu conta histórias genuinamente humanas de gente miúda, com um grau de naturalismo espantoso, reforçado pelo espetacular elenco jovem e desconhecido. É por tudo isso que “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” sacia as expectativas dos cinéfilos atentos e se configura como um dos grandes filmes de 2007.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Crítica: O pequeno grande cinema da Romênia

por Cléber Eduardo
Extraído de http://www.revistacinetica.com.br/romenia.htm

O cinema romeno carrega as contradições e os paradoxos comuns aos personagens e situações dos poucos (e premiados) filmes produzidos nos últimos anos no país. Para o padrão europeu de produção, o da Romênia é miúra: pouco mais (ou menos) de uma dezena de filmes produzidos por ano; um circuito com pouco (ou menos) de uma centena de salas; um instituto estatal de cinema cujos financiamentos não são especificados em valores – embora se fale em orçamentos médios de 500 mil euros – e onde as informações sobre a produção nacional são praticamente inexistentes – sem dados sobre quantidade de filmes produzidos, dinheiro investido, formas de investimento e público dos filmes produzidos ano a ano.

Embora tenha vivido um período de transição de regime econômico e político nos anos 90, como de resto todo o Leste Europeu e a Rússia, a Romênia parece ainda lidar com o cinema como se estivesse fora do capitalismo cinematográfico. Em um cenário desses, sem mercado, sem estatísticas, sem a cultura do cinema, com salas de exibição pouco disputadas por espectadores, e diretores fazendo comerciais para sobreviver, nem ter seus filmes premiados em Cannes, como tem acontecido com alguns dos filmes romenos recentes, permite fechar sua conta em casa: é preciso viabilizar o comércio da exibição em outros países. Os prêmios em Cannes, nesse sentido, são a senha do cofre. Esses filmes podem não ser sucessos de bilheteria onde passam, mas têm seus preços de comercialização inflacionados após as premiações e, com isso, acabam valorizando por tabela qualquer filme romeno. Por tabela e na tabela.

Se o mercado de compra e venda de direitos de exibição tem momentos de ascensão da produção de algum país específico ou de alguns países de determinado continente, como foi com o Irã, tem sido com a(s) China(s) e foi em menor medida com a Argentina, agora é a vez da Romênia viver seu ápice de projeção nessa bolsa de cotações – ao menos de acordo com a curadoria e com os jurados de Cannes, que, em matéria de premiações e de prestígio, têm catapultado os filmes romenos à condição de protagonistas mundial. Se esta é só uma onda como outras ou evidência de consolidação de uma geração de cinema no país (dentro dos limites de um país periférico em matéria de produção cinematográfica, claro), não há ainda como prever apenas com base nos últimos anos e prêmios internacionais. Por ser hoje um cinema nacional de prestígio, mas sem mercado interno, a Romênia nem ocupa espaço no Atlas da Cahiers du Cinema, que faz um breve panorama do mercado de vários países do mundo.

É por ser um país cujo cinema, mesmo sem público doméstico, tem um público seleto de admiradores, que se abriu espaço para essa produção da ala pobre do cinema na Europa em um seminário realizado em São Paulo, no Reserva Cultural. Organizado pela jornalista Maria do Rosário Caetano, e produzido pelo próprio Reserva, o evento tinha por objetivo ampliar os enfoques sobre cada país tratado pelos Cahiers – mantendo como prioridade um espírito de diagnóstico de momento de mercado para os cinemas nacionais, com sorrisos de satisfação ao se ouvir falar do cinema em países cuja ocupação de mercado é em sua maioria de ingressos vendidos para a soma dos filmes nacionais (como Coréia, Índia, Irã, Nigéria). Por trás dessa iniciativa, tanto dos Cahiers quanto de Reserva/Maria do Rosário Caetano, existe uma atitude política: a de manter o olhar crítico em estado de alerta para os sinais de resistência e de crises nos cinemas nacionais, que, além de serem tradicionalmente ameaçados ou implodidos pela onipresença do cinema americano em quase todos os países com telas no planeta, também têm de lidar com a transnacionalidade de vários diretores e produções, criando uma confusão de identidades, conceitos, origens e pertencimentos, cuja discussão ainda está distante de se esgotar e de ter chegado a bons termos, como impedem as simplificações e os maniqueísmos trajados de discurso anti-globalização.

Nesse sentido, a Romênia sempre teve um cinema nacional, ainda que nunca muito importante na perspectiva internacional – sem nenhum cineasta a se tornar uma questão crítica, como tiveram o cinema tcheco, iugoslavo, polonês e húngaro desde os anos 60, de alguma forma influenciados por características do cinema moderno. Houve sim uma geração de cineastas romenos dos anos 70, assim tratada como tal, que tinha como destaques diretores como Dan Pita e Mircea Daleniuc, ainda ativos no cinema contemporâneo.

Nos anos 90, após a queda da Ceauscescu, houve um boom de estreantes: uma dezena deles entre 1991 e 1992 (Laurentiu Damian, Daniel Barbulescu, George Busecam, Bogdan Dumitrescu, Adrian Istratescu-Lener e Radu Nicoara), todos eles nascidos entre o fim dos anos 40 e o fim dos anos 50, poucos deles com continuidade na carreira (entre as raras exceções, Bamian, Busecam e Dumitrescu). O único dessa leva a fazer a diferença, a ponto de ser considerado uma referência em alguma medida para a atual geração de novos diretores, foi Nae Caranfil. Seu cinema é marcado pelo interesse pelas contradições sociais e por enfoques politizados, e seu filme de maior circulação e aceitação foi Filantopica (2002) – seu quarto longa-metragem, quando já era um paradigma e não mais uma revelação.

Ainda nos anos 90, a Romênia mandou sinais de cinema para fora de suas fronteiras com Trem da Vida (1999), de Radu Mihaileanu, ganhador do prêmio da crítica em Cannes e São Paulo, prêmio do público no Sundance e o italiano Donatello de lançamento estrangeiro. Nunca antes um filme romeno havia sido tão internacional: em sua produção – com a França, Bélgica, Holanda, Romênia e Israel – e em sua carreira. O diretor havia realizado um curta francês nos anos 80, quando estudava cinema em Paris, e estreou em longa com um filme de pouca repercussão (Tahir, 1993), co-produção multieuropéia parcialmente falada em francês. Mihaileanu ganhou experiência como diretor de segunda unidade ou assistente de direção em filmes de Marco Ferrerei (I Love You, 1986, e Come Sono Buoni Bianco, 1988) e Vicente Trueba (O Sonho do Macaco Louco, 1989), antes de fazer seus longas com dinheiro de diferentes países. Aos 50 anos, Mihaileanu, em seu filme mais recente, Herói de Nosso Tempo, ambientado na Etiópia, ganhou prêmio de público em Berlim e o César de roteiro, com uma repercussão razoável – mas o diretor não é considerado parte da nouvelle vague romena, ou sequer do novo cinema romeno.

A nova onda

A nova geração de cineastas estreantes reúne diretores na casa dos 30/40 anos, com alguma experiência em sets de filmagens de produções internacionais rodadas no país, com passagens pela Universidade do Filme em Bucareste, experiência em curtas metragens universitários e independentes, que já tinham chamado a atenção e conquistado prêmios em festivais importantes – Cannes (sempre Cannes) aí incluído. Napoleon Helmis e Catalin Saizescu foram os estreantes de 2004, o segundo com um sucesso local de público, Milionari de Weekend. Em 2005 e 2006, aumentou a produção, com a militância pelo baixo orçamento com liberdade criativa do ator-diretor Florin Piersic Jr (com Fix Alert, filme em preto e branco) e o erotismo cheio de elipses de Tudor Giurgiu em Love Sick. Mas o destaque maior começou mesmo com Cristi Puiu.

Antes de ganhar a mostra Un Certain Regard com seu longa de estréia, A Morte do Senhor Lazarescu (2005), também ganhador dos festivais de Chicago, Copenhague, Trieste e da Transilvânia, Cristi Puiu havia se destacado internacionalmente com duas narrativas de poucos minutos: Marfa Si Banii (2001) ganhou o prêmio de melhor curta no festival independente de Buenos Aires e o prêmio da crítica em Thessaloniki. E o curta seguinte, Un cartus de kent si un pachet de cafea (2004), ganhou o Urso de Ouro em Berlim.

Corneliu Porumboiu, antes de levar a Camera d’Or por A Leste de Bucareste (2006), já era querido em Cannes – tendo ganho prêmio no Cinéfondation, para competição para filmes de estudantes, com seu curta, Calatorie Las Oras. Catalin Mitulescu, cuja estréia em longa, Como Festejei o Fim do Mundo (2006), rendeu prêmio no Un Certain Regard em Cannes para a atriz Doroteea Petre, era curta-metragista notável. Bucuresti-Wien, 8-15 (2000) e 17 minute intarziere (1999), esse segundo apenas em 2002, ganharam o festival de cinema romeno para estudantes. E Traffic (2004), dando um passo mais alto, ganhou a Palma de curta em Cannes. Antes de estrear em longa com Maria (2003), premiado em Locarno (especial do júri), Calin Peter Netzer foi premiada em Dresden, um segundo lugar, com seu curta Zapada Meillor (1998). E Cristian Nemescu teve uma bem aceita trajetória no curta, com destaque para Poveste La Scara “C”, ganhador de um menção especial no Festival de Berlim, antes de estrear em longa com California Dreaming (2007) – sem chegar a terminar a montagem do filme, por conta de sua morte em um acidente de carro. Mesmo com um corte provisório, Cannes exibiu o filme assim mesmo e ele saiu com o principal prêmio da Un Certain Regard – apenas dois anos depois de Puiu.

Finalmente, temos Cristian Mungiu, ganhador do prêmio máximo em Cannes com 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (2007 - foto que abre este texto), que veio da escola (formou-se em 1998 na Universidade do Filme), mas veio também da prática. Trabalhou alguns anos em tarefas diferentes em sets de filmes estrangeiros e estreou em longa com o razoavelmente premiado Occident (2002), que saiu com troféus importantes em festivais europeus, como os de Transilvânia, Thessalonoki, Sofia e Mons. Em matéria de renovação e revelação, o cinema romeno, na Europa, só tem equivalente no cinema francês.

Perspectivas e Expectativas

Quase todos esses diretores desta chamada nouvelle vague estão com novos filmes em gestação. Mas o que esperar, para além dos prêmios, dessa geração? Falta tempo e mais filmes para afirmarmos algo sem algum grau de profecia. Faltam os filmes saírem da moda, como estão hoje, porque a moda produz modelos, repetições, diluições e fórmulas – o que, no caso do cinema romeno, é mais ou menos fácil de acontecer por conta das características marcantes de seus premiados em Cannes. É preciso saber se os diretores conseguirão seguir adiante sem atender uma demanda de circuito de festivais e de arte, sem atenderem à expectativa de fazerem um cinema romeno facilmente reconhecível como tal – portanto, sob o risco de virar um estereótipo nacional.

Mas o que se premia em Cannes, o que é a “romenidade” cinematográfica? Premia-se, claramente, menos um rigor estético, como se faz quando se premia a maioria dos filmes asiáticos, e mais um olhar singular/inusitado, nessa fronteira, por meio do qual se confronta o passado (II Guerra, regime comunista). Percursos e dramas individuais, vividos por gente comum em situações incomuns, que se conectam com a Romênia, com seus fantasmas, com seus escombros morais e políticos, com a atmosfera de um lugar em descompasso com seu tempo. Essas voltas ao passado de 20 ou 60 anos atrás, comum e compreensível em filmes de países com experiência traumática na carne e no espírito de regimes de rédeas curtas, não carregam consigo disposição para acertar contas. Nem de denunciar nada. O olhar predominante é o de testemunha para quem nada choca mais ou para quem só é possível rir dos absurdos nacionais.

Não deixa de se ver nesses filmes uma corrosão seca, como em 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, ou cômica, como em A Leste de Bucareste – ou as duas vertentes corrosivas juntas, como em California Dreamin' (foto ao lado). Os universos diante do qual a ironia e a corrosão são despejadas vai da classe média ao caldo cultural romeno, que parece moldar os personagens em percursos nos quais, inevitavelmente, algo de insólito ou absurdo acontecerá – porque, mais que sintomas, esses personagens são atrelados a uma lógica do absurdo hegemônica no país onde vivem (mas não uma lógica estrutural e, sim, intrínseca a condição da Romênia). Seria um cinema cheio de filmes políticos? Ou a despolitização do político em nome do exótico e do sensacionalismo distanciado (4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias)? Cada caso é um caso, mas o que interessa, nesse caso, é menos a ausência de denúncia, porque não se denuncia nada, nem ninguém, nem uma instituição, mas a presença de narrativas singulares, cheia de elipses, buracos, sugestões, avessas aos códigos narrativos, com certa incorporação da aparência de caos, em sintonia com o algo de caótico mostrado em alguns filmes.

Em outro texto, dei a essa característica o nome de “estética e dramaturgia do tripé quebrado”, inspirado no tripé quebrado do cinegrafista do programa de entrevista de A Leste de Bucareste. Sem o tripé, o cinegrafista, no filme, faz na mão. A câmera treme, ele não enquadra dentro dos códigos de um programa de TV – com isso, torna-se outra coisa, com a clara evidência dos problemas financeiros e organizacionais a afetar o produto final. A mesma subversão com o padrão do cinema culto contemporâneo tem levado os diretores a conceberem suas histórias sem respeito pelo “bem contar”. Nesse sentido, Mungiu, em um filme seco e sem humor, com a câmera quieta e observadora, foge à regra, porque, dentro de sua proposta contundente, manifesta a preocupação do “bem contar”, sem o tal tripé quebrado a intervir em sua organização. Seu filme carrega no estilo um ar de realismo europeu (ecos de Dardenne). Influência? Busca de um diálogo estético em vista ao mercado internacional?

Parece não haver opções melhores para quem não se contenta com os limites de se permanecer na Romênia que viabilizar co-produções com empresas de outros países europeus ou mesmo dirigir produções internacionais fora da Romênia. Mungiu, nesse sentido, é precavido. Tem demonstrado precaução com as produções maiores, ou com possíveis convites para trabalhar como diretor contratado de projetos de produtores, porque sua noção de cinema exige controle total, sem interferência de produtores e investidores. Por isso, para seu tipo de cinema, a Romênia, como periferia da produção, é um bom contexto. Permite a ele ter liberdade para fazer os filmes como bem entende porque não deve satisfações a ninguém. Talvez isso venha a mudar se e quando os investidores europeus se interessarem por co-produções. Deverão aparecer os astros internacionais (como têm aparecido nos filmes de Amos Gitai) e os diálogos nos idiomas dos sócios majoritários.

Ou é isso ou Mungiu, assim como outros colegas, terão de pagar o preço – da visibilidade limitada mesmo no próprio pais – de fazer cinema na Romênia. Seus prestígios e ambições podem se tornar superiores às condições estruturais do cinema romeno para atender suas demandas. Por enquanto, porém, são só especulações.

Programação Abril de 2012: Cinema Romeno

A grande surpresa no mundo cinematográfica na segunda metade da última década foi o Cinema Romeno com seus filmes extremamente intimistas, muitas vezes com pano de fundo histórico, sobretudo do período correspondente ao final da ditadura de Nicolae Ceausescu, que marcou também o fim do socialismo no país. O Cinema Romeno, sem sombra de dúvidas foi uma das mais revigorantes forças do cinema europeu do século XXI.

O Cine Clube Ybitu Katu exibe:

07/04: 4 meses, 3 semanas, 2 dias (Cristian Mungiu, 2007)
Em 1987, nos últimos dias do comunismo, Otilia (Anamaria Marinca) e Gabita (Laura Vasiliu) dividem um quarto num dormitório estudantil. Elas são colegas de classe na universidade de uma pequena cidade romena. Gabita está grávida e o aborto é ilegal no país. Otilia aluga um quarto num hotel barato. Lá elas recebem um certo Sr. Bebe (Vlad Ivanov) , chamado para resolver a questão. Mas, ao saber que Gabita está com a gravidez mais adiantada do que havia informado, Sr. Bebe aumenta as exigências para o serviço. Ele cobra um preço que as duas não estão preparadas para pagar. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes no ano de 2007. Duração: 113 minutos

14/04: A Morte do Senhor Lazarescu (Cristi Puiu, 2005)
Sr. Lazarescu chama uma ambulância após sofrer com dores de cabeça e de estômago. Inicia-se então uma viagem através da cidade, entre um hospital e outro, em busca de tratamento médico. Duração: 150 minutos

21/04: Katalin Varga (Peter Strickland, 2009)
Expulsa pelo marido e pelo povo de sua aldeia, Katalin Varga fica sem escolha a não ser ir em busca do verdadeiro pai de seu filho, Orbán. Levando o menino com ela sob outro pretexto, ela viaja através dos Cárpatos, onde decide reabrir um capítulo sinistro de seu passado e se vingar. A caçada leva a um lugar ao qual ela jurou 11 anos antes nunca mais voltar. Duração: 90 minutos

28/04: A Leste de Bucareste (Corneliu Porumboiu, 2006)
No aniversário de 16 anos da queda do ditador Ceausescu na Romênia, uma emissora de TV local decide reunir pessoas para um debate sobre o tema. Entre os convidados estão Piscoci (Mircea Andreescu), um velho aposentado, e Manescu (Ion Sapdaru), um professor de história que analisa as mudanças locais ocorridas desde 25 de dezembro de 1989, data de execução do ditador. Duração: 89 minutos