por Carlos Fernandes
A grande surpresa no mundo
cinematográfico na segunda metade da última década foi, sem dúvida, o
Cinema Romeno, que outrora desconhecido, passou a ser uma das mais
revigorantes forças do cinema europeu do século XXI. Os olhos de todos
voltaram-se para o cinema desse pequeno país do Leste Europeu a partir
de 2005, quando o longa A Morte do Sr. Lazarescu (Cristi Puiu, 2005) venceu a mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes em 2005. No ano seguinte, foi a vez de À Leste de Bucareste (Corneliu Porumboiu, 2006) ganhar a Câmara de Ouro desse mesmo festival e em 2007, 4 meses, 3 semanas, 2 dias (Cristian
Mungiu, 2007) levar a Palma de Ouro, o prêmio máximo de Cannes. Desde
então, o cinema romeno passou a ser um grande destaque no mundo
cinematográfico e diversos outros filmes foram aclamados pela crítica
internacional, entre eles, Como festejei o fim do mundo (Catalin Mitulescu, 2007), California Dreaming (Cristian Nemescu, 2007), Polícia, Adjetivo (Corneliu Porumboiu, 2009), Contos da era dourada (Ioana Uricaru, Hanno Höffer, Räzvam Márculescu, Constantin Popescu, Cristian Mungiu, 2009) e Se eu quiser assobiar, eu assobio (Florin Serban, 2010).
Uma das coisas que mais chama atenção
nessa recente safra do cinema romeno, além do uso de uma estética
realista e minimalista e da recorrente presença de um afiado humor
negro, lembrando muitas vezes a obra do cineasta sérvio Emir Kusturica, é
a presença quase que constante do ditador romeno Nicolae Ceausescu e
dos últimos momentos de seu governo até a sua queda. Se ele e os últimos
dias de sua ditadura não são o tema principal, como é o caso de À Leste de Bucareste, Como festejei o fim do mundo e Contos da Era Dourada,
eles aparecem como plano de fundo, em silêncio, mas plenamente ativos
na cabeça e nas ações dos seus personagens, sufocando-os, como em 4 meses, 3 semanas, 2 dias (o comércio ilegal de cigarros, a proibição do aborto, a necessidade constante de se andar com um documento de identidade) e Polícia, Adjetivo
(a força da polícia romena, a crença de que a lei mudará em breve).
Mas, de onde vem essa obsessão pelos últimos dias de Ceausescu?
Nicolae Ceausescu (1918-1989), líder
então do Partido Comunista Romeno, que apesar de repudiar Stalin e
adotar uma política de enfrentamento antirrussa, presidiu a Romênia de
1965-1989 com mão de ferro e utilizando-se da propaganda de culto à sua
personalidade, criou uma tirania rígida e feroz, onde a Romênia era
essencialmente um Estado policial, dada a onipresença de sua polícia
secreta (Securitate). Além disso, as políticas econômicas e de
desenvolvimento de Ceausescu, muitas vezes megalomaníacas, promoveram
uma grave escassez de comida, medicamentos e energia, levando à pobreza a
população. A reclusão desse regime era tanta que em Como festejei o fim do mundo, o “fim do mundo” é uma clara alusão ao fim do regime de Ceausescu.
No ano de 1989, movimentos de erradicação
ao comunismo vinham de Berlim, onde o muro havia caído em novembro, no
sentido do Leste Europeu. Em 17 de dezembro, na cidade romena de
Timisoara, manifestantes foram recebidos a tiro pela Securitate, o que
provocou uma reação da população em diversas cidades. Cinco dias depois,
esse movimento chegaria à capital, Bucareste, e no mesmo dia Ceausescu e
sua esposa seriam presos. Por isso, dia 22 de dezembro é considerada a
data da chamada Revolução Romena. No dia 25, Ceausescu e sua esposa
foram julgados por um tribunal irregular e condenatos à morte por
fuzilamento. São executado no mesmo dia e o fuzilamento é exibido pela
televisão romena (e as imagens estão disponíveis no Youtube). A Romênia
foi um dos últimos países do Leste Europeu a derrubar o regime
socialista e foi o único que teve um fim violento para o seu regime.
Entretanto, passados mais do que 20 anos da Revolução Romena, inúmeras
questões ainda permanecem sem resposta e ainda geram controvérsias.
Pouco se sabe sobre a real atuação dos líderes da Revolução e suas
verdadeiras intenções já que muitos deles ainda pertenciam ao velho
regime. Questiona-se ainda a razão de alguns fatos terem ocorrido e se
tudo não foi apenas uma armação para se tirar vantagem do caos e encenar
um golpe. Nesse ínterim, indaga-se se realmente o levante popular
houve importância ou foi apenas um elemento que acabou servindo de
joguete para essa encenação. É aí que entra Corneliu Porumboiu e seu
magnífico À Leste de Bucareste.
Podemos dividir À Leste de Bucareste
em duas partes, cada qual representando uma metade do filme. Na
primeira metade, vemos o cotidiano dos três personagens centrais do
filme em uma pequena cidade do interior da Romênia: Virgil Jderescu, um
egocêntrico jornalista da televisão local; Emanoil Piscoci, um velho
senhor famoso por se vestir de Papai Noel no Natal e; Tiberiu Manescu,
um professor de história alcoólatra. E na segunda metade, temos a
exibição do programa de Jderescu, que convidou Piscoci e Manescu para
debaterem em seu programa comemorativo dos 16 anos da Revolução Romena,
se naquela cidade houve ou não a Revolução. E é aí que o filme carrega
todo o seu brilhantismo. Por quarenta minutos, temos apenas uma única
cena que é a exibição do programa de Jderescu, onde Manescu conta sobre
como foi à praça da cidade e iniciou ali a revolução, para logo depois
ser desmentido por um grande número de pessoas ao vivo na televisão,
deixando Jderescu totalmente sem graça. E nós ficamos presos à tela,
pela extrema comicidade da cena e pelo trabalho brilhante dos atores
Mircea Andreescu (Piscoci), Teodor Corban (Jderescu) e Ion Sapdaru
(Manescu). E utilizando-se do escracho, Porumboiu faz daquela pequena
cidade um símbolo para toda a Romênia, mostra ao mundo as recentes
controvérsias históricas romenas e convida brilhantemente o povo romeno a
se lembrar daquela revolução para finalmente compreendê-la e usá-la
para se construir um futuro melhor, como o próprio Jderescu propõe em
seu programa. Além disso, Porumboiu critica e ameniza o povo romeno. Se
por um lado, ele demonstra que a população talvez não tivesse a real
dimensão de tudo aquilo (dado pela fala de Piscoci “fui à praça para mostrar à minha esposa que eu podia ser um herói”),
por outro ele argumenta que a nova geração (os alunos de Manescu) não
se importa com a história da Romênia, já que preferem conhecer mais a
Revolução Francesa que o Império Otomano, o qual a Romênia fez parte.
Por fim, na primeira metade do filme, Porumboiu ainda nos faz pensar se
realmente houve uma revolução propriamente dita na Romênia já que muitas
coisas permaneciam iguais há 16 anos: mesmo estando em 2005 o professor
ainda tinha que retirar o seu pagamento na escola, a rede de televisão
no qual Jderescu é dono é uma cópia idêntica das televisões estatais dos
regimes socialistas da Cortina de Ferro, além da própria arquitetura da
cidade, que não parece ter mudado em nada nos últimos 30 anos. Além
disso, Porumboiu dá sinais que a transição para o capitalismo e
globalização tem sido difícil para o povo (tema mais explorado em A Morte do Sr. Lazarescu), é o comerciante chinês sendo ofendido, é a banda da televisão tocando pateticamente uma música latina.
A Romênia fez do seu cinema recente um divã para as suas questões históricas. À Leste de Bucareste
é a sessão de psicanálise que mergulha mais profundamente em suas
agonias. Entretanto, sua mensagem final é bastante positiva, com a
esperança de dias melhores à Romênia com o acender das luzes, com a neve
que volta a cair depois de tanto tempo e com a frase “Pacífica e bela, é tudo o que eu lembro da revolução”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário