Filmes que ganham a mais prestigiosa láurea do cinema de autor – a Palma de Ouro no Festival de Cannes – conquistam, também, a responsabilidade de ter que satisfazer a enorme expectativa criada instantaneamente na comunidade cinéfila internacional. Não é uma tarefa fácil. Do ponto de vista do espectador, encarar um longa-metragem premiado em Cannes significa estar frente a frente com um candidato a obra-prima. Pois bem: jogando no lixo todo o aparato estético disponível para apegar-se apenas a uma narrativa crua e muito bem construída, “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” (4 Luni, 3 Saptamani si 2 Zile, Romênia, 2007) sacia todas as expectativas, e vai além.
A rigor, Cristian Mungiu fez um filme-irmão do sensacional “A Morte do Sr. Lazarescu” (2005), obra responsável por lançar os holofotes do mundo cinéfilo em direção à minúscula Romênia. Ou seja, fechou um ciclo vitorioso. Graças à exposição gerada pelo filme de Gabriel Puiu (que ganhou a mostra paralela Um Certain Regard em Cannes 2005), o cinema barato e despojado produzido no país do leste europeu conquistou o respeito e a admiração de Cannes, tendo outras obras premiadas por lá (“Como Comemorei o Fim do Mundo”, “A Leste de Bucareste” e “Califórnia Dreaming”). A Palma de Ouro atribuída a “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” coroa esta etapa do cinema romeno. É um troféu que valoriza tanto o filme em si quanto toda a cinematografia do país.
Afinal de contas, o cinema romeno contemporâneo é um movimento articulado e coletivo, como foi o Dogma 95 na Dinamarca (aliás, movimento que lançou um manifesto estético de onde os filmes da Romênia bebem bastante). Os longas produzidos por lá dividem muitas características. A estética é minimalista, crua e despojada, que aparenta desleixo técnico mas tem grande rigor formal: longas tomadas sem cortes, câmera na mão, luz natural e som direto, exclusivamente diegético (ruídos cuja origem está dentro do espaço cênico). Não há música para indicar o que o espectador deve sentir. É um cinema visceral, que quebra intencionalmente diversas regras da gramática cinematográfica clássica, mas o faz com a autoridade de quem sabe que isto é necessário para gerar uma resposta emocional verídica na platéia.
Observe, por exemplo, a longa cena do jantar, em que a câmera permanece parada, focalizando com clareza o desconforto de Otilia (Anamaria Marinca, maravilhosa) diante da situação indesejada. Por longos minutos, enquanto ela permanece estática e impaciente, as pessoas que a rodeiam na mesa conversam despreocupadamente, sem perceber o drama que se desenrola na cabeça da garota – e que nós, a platéia, conhecemos bem, porque estávamos com ela antes. Vários participantes da conversa permanecem fora do quadro quando falam, algo inimaginável em um filme de Hollywood. Só que o diretor Cristian Mungiu sabe o que faz. Ao se recusar a desviar o olhar do rosto de Otilia, ele cria uma tensão e uma angústia crescentes do espectador. Este rigor formal ajuda a platéia a compartilhar a assustadora situação vivida por Otilia e Gabita (Laura Vasiliu, ótima), as duas personagens principais.
As duas moças estão na faixa dos 20 anos e dividem um quarto numa república de estudantes em Bucareste. Como todo estudante, elas não têm grana. A ação se passa em 1987, nos últimos anos da ditadura comunista de Nicolau Ceaucescu, quando produtos ocidentais como cigarros e chicletes só podiam ser encontrados no atuante e caríssimo mercado negro. A história, narrada quase em tempo real, tem semelhanças claras com a contada em “A Morte do Sr. Lazarescu”. Uma das meninas está grávida e deseja se submeter a um aborto ilegal, que só pode ser realizado num hotel vagabundo e por um médico asqueroso (Vlad Ivanov, assustador), que não hesita em tirar proveito da condição de desespero das mulheres. A longa seqüência que reúne os três personagens dentro do hotel é um primor de direção. Mungiu escolhe sabiamente cada posição de câmera, mostrando e deixando de mostrar na medida exata, e consegue criar um instante cinematográfico de fortíssimo impacto emocional.
Também roteirista, Cristian Mungiu escreveu o roteiro do filme em apenas um mês, baseado em uma história verídica que ouviu enquanto era estudante. Durante as filmagens, realizadas ao custo ínfimo de US$ 600 mil, ele se permitiu realizar diversas alterações, cortando e cortando cada vez mais diálogos, de modo a sugerir mais do que explicitar (e note como isto funciona perfeitamente, como na cena em que Otilia suborna sutilmente a atendente de um hotel com uma carteira de cigarros, sem jamais pronunciar uma única palavra sobre o “presente”). A verdade é que há muito talento escondido atrás do trabalho técnico aparentemente desleixado – a fotografia de Oleg Mutu é excepcional, com composições precisas e de clareza narrativa, mesmo sob condições difíceis de iluminação.
O que temos aqui, de fato, é o caso clássico da estética que serve à narrativa. O despojamento técnico ajuda a desnudar por completo a essência do filme: uma história pequena, humana, narrada com grau razoável de distanciamento emocional, com muito respeito à dor e aos sentimentos dos personagens. Como todos os filmes contemporâneos feitos na Romênia, a obra de Cristian Mungiu conta histórias genuinamente humanas de gente miúda, com um grau de naturalismo espantoso, reforçado pelo espetacular elenco jovem e desconhecido. É por tudo isso que “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” sacia as expectativas dos cinéfilos atentos e se configura como um dos grandes filmes de 2007.
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