Extraído de http://www.revistacinetica.com.br/romenia.htm
O cinema romeno carrega as contradições e os paradoxos comuns aos personagens e situações dos poucos (e premiados) filmes produzidos nos últimos anos no país. Para o padrão europeu de produção, o da Romênia é miúra: pouco mais (ou menos) de uma dezena de filmes produzidos por ano; um circuito com pouco (ou menos) de uma centena de salas; um instituto estatal de cinema cujos financiamentos não são especificados em valores – embora se fale em orçamentos médios de 500 mil euros – e onde as informações sobre a produção nacional são praticamente inexistentes – sem dados sobre quantidade de filmes produzidos, dinheiro investido, formas de investimento e público dos filmes produzidos ano a ano.
Embora tenha vivido um período de transição de regime econômico e político nos anos 90, como de resto todo o Leste Europeu e a Rússia, a Romênia parece ainda lidar com o cinema como se estivesse fora do capitalismo cinematográfico. Em um cenário desses, sem mercado, sem estatísticas, sem a cultura do cinema, com salas de exibição pouco disputadas por espectadores, e diretores fazendo comerciais para sobreviver, nem ter seus filmes premiados em Cannes, como tem acontecido com alguns dos filmes romenos recentes, permite fechar sua conta em casa: é preciso viabilizar o comércio da exibição em outros países. Os prêmios em Cannes, nesse sentido, são a senha do cofre. Esses filmes podem não ser sucessos de bilheteria onde passam, mas têm seus preços de comercialização inflacionados após as premiações e, com isso, acabam valorizando por tabela qualquer filme romeno. Por tabela e na tabela.
Se o mercado de compra e venda de direitos de exibição tem momentos de ascensão da produção de algum país específico ou de alguns países de determinado continente, como foi com o Irã, tem sido com a(s) China(s) e foi em menor medida com a Argentina, agora é a vez da Romênia viver seu ápice de projeção nessa bolsa de cotações – ao menos de acordo com a curadoria e com os jurados de Cannes, que, em matéria de premiações e de prestígio, têm catapultado os filmes romenos à condição de protagonistas mundial. Se esta é só uma onda como outras ou evidência de consolidação de uma geração de cinema no país (dentro dos limites de um país periférico em matéria de produção cinematográfica, claro), não há ainda como prever apenas com base nos últimos anos e prêmios internacionais. Por ser hoje um cinema nacional de prestígio, mas sem mercado interno, a Romênia nem ocupa espaço no Atlas da Cahiers du Cinema, que faz um breve panorama do mercado de vários países do mundo.
É por ser um país cujo cinema, mesmo sem público doméstico, tem um público seleto de admiradores, que se abriu espaço para essa produção da ala pobre do cinema na Europa em um seminário realizado em São Paulo, no Reserva Cultural. Organizado pela jornalista Maria do Rosário Caetano, e produzido pelo próprio Reserva, o evento tinha por objetivo ampliar os enfoques sobre cada país tratado pelos Cahiers – mantendo como prioridade um espírito de diagnóstico de momento de mercado para os cinemas nacionais, com sorrisos de satisfação ao se ouvir falar do cinema em países cuja ocupação de mercado é em sua maioria de ingressos vendidos para a soma dos filmes nacionais (como Coréia, Índia, Irã, Nigéria). Por trás dessa iniciativa, tanto dos Cahiers quanto de Reserva/Maria do Rosário Caetano, existe uma atitude política: a de manter o olhar crítico em estado de alerta para os sinais de resistência e de crises nos cinemas nacionais, que, além de serem tradicionalmente ameaçados ou implodidos pela onipresença do cinema americano em quase todos os países com telas no planeta, também têm de lidar com a transnacionalidade de vários diretores e produções, criando uma confusão de identidades, conceitos, origens e pertencimentos, cuja discussão ainda está distante de se esgotar e de ter chegado a bons termos, como impedem as simplificações e os maniqueísmos trajados de discurso anti-globalização.
Nesse sentido, a Romênia sempre teve um cinema nacional, ainda que nunca muito importante na perspectiva internacional – sem nenhum cineasta a se tornar uma questão crítica, como tiveram o cinema tcheco, iugoslavo, polonês e húngaro desde os anos 60, de alguma forma influenciados por características do cinema moderno. Houve sim uma geração de cineastas romenos dos anos 70, assim tratada como tal, que tinha como destaques diretores como Dan Pita e Mircea Daleniuc, ainda ativos no cinema contemporâneo.
Nos anos 90, após a queda da Ceauscescu, houve um boom de estreantes: uma dezena deles entre 1991 e 1992 (Laurentiu Damian, Daniel Barbulescu, George Busecam, Bogdan Dumitrescu, Adrian Istratescu-Lener e Radu Nicoara), todos eles nascidos entre o fim dos anos 40 e o fim dos anos 50, poucos deles com continuidade na carreira (entre as raras exceções, Bamian, Busecam e Dumitrescu). O único dessa leva a fazer a diferença, a ponto de ser considerado uma referência em alguma medida para a atual geração de novos diretores, foi Nae Caranfil. Seu cinema é marcado pelo interesse pelas contradições sociais e por enfoques politizados, e seu filme de maior circulação e aceitação foi Filantopica (2002) – seu quarto longa-metragem, quando já era um paradigma e não mais uma revelação.
Ainda nos anos 90, a Romênia mandou sinais de cinema para fora de suas fronteiras com Trem da Vida (1999), de Radu Mihaileanu, ganhador do prêmio da crítica em Cannes e São Paulo, prêmio do público no Sundance e o italiano Donatello de lançamento estrangeiro. Nunca antes um filme romeno havia sido tão internacional: em sua produção – com a França, Bélgica, Holanda, Romênia e Israel – e em sua carreira. O diretor havia realizado um curta francês nos anos 80, quando estudava cinema em Paris, e estreou em longa com um filme de pouca repercussão (Tahir, 1993), co-produção multieuropéia parcialmente falada em francês. Mihaileanu ganhou experiência como diretor de segunda unidade ou assistente de direção em filmes de Marco Ferrerei (I Love You, 1986, e Come Sono Buoni Bianco, 1988) e Vicente Trueba (O Sonho do Macaco Louco, 1989), antes de fazer seus longas com dinheiro de diferentes países. Aos 50 anos, Mihaileanu, em seu filme mais recente, Herói de Nosso Tempo, ambientado na Etiópia, ganhou prêmio de público em Berlim e o César de roteiro, com uma repercussão razoável – mas o diretor não é considerado parte da nouvelle vague romena, ou sequer do novo cinema romeno.
A nova ondaAntes de ganhar a mostra Un Certain Regard com seu longa de estréia, A Morte do Senhor Lazarescu (2005), também ganhador dos festivais de Chicago, Copenhague, Trieste e da Transilvânia, Cristi Puiu havia se destacado internacionalmente com duas narrativas de poucos minutos: Marfa Si Banii (2001) ganhou o prêmio de melhor curta no festival independente de Buenos Aires e o prêmio da crítica em Thessaloniki. E o curta seguinte, Un cartus de kent si un pachet de cafea (2004), ganhou o Urso de Ouro em Berlim.
Corneliu Porumboiu, antes de levar a Camera d’Or por A Leste de Bucareste (2006), já era querido em Cannes – tendo ganho prêmio no Cinéfondation, para competição para filmes de estudantes, com seu curta, Calatorie Las Oras. Catalin Mitulescu, cuja estréia em longa, Como Festejei o Fim do Mundo (2006), rendeu prêmio no Un Certain Regard em Cannes para a atriz Doroteea Petre, era curta-metragista notável. Bucuresti-Wien, 8-15 (2000) e 17 minute intarziere (1999), esse segundo apenas em 2002, ganharam o festival de cinema romeno para estudantes. E Traffic (2004), dando um passo mais alto, ganhou a Palma de curta em Cannes. Antes de estrear em longa com Maria (2003), premiado em Locarno (especial do júri), Calin Peter Netzer foi premiada em Dresden, um segundo lugar, com seu curta Zapada Meillor (1998). E Cristian Nemescu teve uma bem aceita trajetória no curta, com destaque para Poveste La Scara “C”, ganhador de um menção especial no Festival de Berlim, antes de estrear em longa com California Dreaming (2007) – sem chegar a terminar a montagem do filme, por conta de sua morte em um acidente de carro. Mesmo com um corte provisório, Cannes exibiu o filme assim mesmo e ele saiu com o principal prêmio da Un Certain Regard – apenas dois anos depois de Puiu.
Finalmente, temos Cristian Mungiu, ganhador do prêmio máximo em Cannes com 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (2007 - foto que abre este texto), que veio da escola (formou-se em 1998 na Universidade do Filme), mas veio também da prática. Trabalhou alguns anos em tarefas diferentes em sets de filmes estrangeiros e estreou em longa com o razoavelmente premiado Occident (2002), que saiu com troféus importantes em festivais europeus, como os de Transilvânia, Thessalonoki, Sofia e Mons. Em matéria de renovação e revelação, o cinema romeno, na Europa, só tem equivalente no cinema francês.
Quase todos esses diretores desta chamada nouvelle vague estão com novos filmes em gestação. Mas o que esperar, para além dos prêmios, dessa geração? Falta tempo e mais filmes para afirmarmos algo sem algum grau de profecia. Faltam os filmes saírem da moda, como estão hoje, porque a moda produz modelos, repetições, diluições e fórmulas – o que, no caso do cinema romeno, é mais ou menos fácil de acontecer por conta das características marcantes de seus premiados em Cannes. É preciso saber se os diretores conseguirão seguir adiante sem atender uma demanda de circuito de festivais e de arte, sem atenderem à expectativa de fazerem um cinema romeno facilmente reconhecível como tal – portanto, sob o risco de virar um estereótipo nacional.
Mas o que se premia em Cannes, o que é a “romenidade” cinematográfica? Premia-se, claramente, menos um rigor estético, como se faz quando se premia a maioria dos filmes asiáticos, e mais um olhar singular/inusitado, nessa fronteira, por meio do qual se confronta o passado (II Guerra, regime comunista). Percursos e dramas individuais, vividos por gente comum em situações incomuns, que se conectam com a Romênia, com seus fantasmas, com seus escombros morais e políticos, com a atmosfera de um lugar em descompasso com seu tempo. Essas voltas ao passado de 20 ou 60 anos atrás, comum e compreensível em filmes de países com experiência traumática na carne e no espírito de regimes de rédeas curtas, não carregam consigo disposição para acertar contas. Nem de denunciar nada. O olhar predominante é o de testemunha para quem nada choca mais ou para quem só é possível rir dos absurdos nacionais.
Não deixa de se ver nesses filmes uma corrosão seca, como em 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, ou cômica, como em A Leste de Bucareste – ou as duas vertentes corrosivas juntas, como em California Dreamin' (foto ao lado). Os universos diante do qual a ironia e a corrosão são despejadas vai da classe média ao caldo cultural romeno, que parece moldar os personagens em percursos nos quais, inevitavelmente, algo de insólito ou absurdo acontecerá – porque, mais que sintomas, esses personagens são atrelados a uma lógica do absurdo hegemônica no país onde vivem (mas não uma lógica estrutural e, sim, intrínseca a condição da Romênia). Seria um cinema cheio de filmes políticos? Ou a despolitização do político em nome do exótico e do sensacionalismo distanciado (4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias)? Cada caso é um caso, mas o que interessa, nesse caso, é menos a ausência de denúncia, porque não se denuncia nada, nem ninguém, nem uma instituição, mas a presença de narrativas singulares, cheia de elipses, buracos, sugestões, avessas aos códigos narrativos, com certa incorporação da aparência de caos, em sintonia com o algo de caótico mostrado em alguns filmes.
Em outro texto, dei a essa característica o nome de “estética e dramaturgia do tripé quebrado”, inspirado no tripé quebrado do cinegrafista do programa de entrevista de A Leste de Bucareste. Sem o tripé, o cinegrafista, no filme, faz na mão. A câmera treme, ele não enquadra dentro dos códigos de um programa de TV – com isso, torna-se outra coisa, com a clara evidência dos problemas financeiros e organizacionais a afetar o produto final. A mesma subversão com o padrão do cinema culto contemporâneo tem levado os diretores a conceberem suas histórias sem respeito pelo “bem contar”. Nesse sentido, Mungiu, em um filme seco e sem humor, com a câmera quieta e observadora, foge à regra, porque, dentro de sua proposta contundente, manifesta a preocupação do “bem contar”, sem o tal tripé quebrado a intervir em sua organização. Seu filme carrega no estilo um ar de realismo europeu (ecos de Dardenne). Influência? Busca de um diálogo estético em vista ao mercado internacional?
Parece não haver opções melhores para quem não se contenta com os limites de se permanecer na Romênia que viabilizar co-produções com empresas de outros países europeus ou mesmo dirigir produções internacionais fora da Romênia. Mungiu, nesse sentido, é precavido. Tem demonstrado precaução com as produções maiores, ou com possíveis convites para trabalhar como diretor contratado de projetos de produtores, porque sua noção de cinema exige controle total, sem interferência de produtores e investidores. Por isso, para seu tipo de cinema, a Romênia, como periferia da produção, é um bom contexto. Permite a ele ter liberdade para fazer os filmes como bem entende porque não deve satisfações a ninguém. Talvez isso venha a mudar se e quando os investidores europeus se interessarem por co-produções. Deverão aparecer os astros internacionais (como têm aparecido nos filmes de Amos Gitai) e os diálogos nos idiomas dos sócios majoritários.
Ou é isso ou Mungiu, assim como outros colegas, terão de pagar o preço – da visibilidade limitada mesmo no próprio pais – de fazer cinema na Romênia. Seus prestígios e ambições podem se tornar superiores às condições estruturais do cinema romeno para atender suas demandas. Por enquanto, porém, são só especulações.
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