segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Programação Dezembro 2010: O Cárcere no Cinema
No mês de dezembro o Cine Clube Ybitu Katu exibirá dois clássicos filmes sobre tentativas de fuga de prisão e um filme que aborda as relações internas entre os presos. Este último, apesar de recente, recebeu grande destaque em Cannes (Prêmio do Júri em 2009) e na Mostra Internacional de São Paulo de 2009, e é candidatíssimo a se tornar um grande e imperdível clássico com o passar dos anos.
04/12: A um passo da liberdade (Jacques Becker, 1960)
Grande clássico do cinema francês, A um passo da liberdade conta a história de um homem que divide a cela numa prisão em Paris com mais de quatro priosioneiros, aceita elaborar um meticuloso plano de fuga com os companheiros. Explêndida e sombria direção, com uma iluminação fantástica, excelente interpretações e um roteiro que é uma verdadeira aula. Maravilhoso testamento fílmico de Becker, sem dúvida seu melhor filme. Duração: 125 minutos.
11/12: Papillon (Franklin J. Schaffner, 1973)
Papillon narra a impressionante determinação de um homem em se libertar das grilhetas que o mantém preso por um crime que sempre declarou ser inocente. Steve McQueen é Henri Charrière, conhecido como Papillon. Acusado e condenado por homicídio tentou por várias vezes a sua sorte em arriscadas fugas, até finalmente conseguir. Dustin Hoffman é Dega, o seu parceiro de prisão. Papillon é um verdadeiro hino à coragem, determinação e disciplina e principalmente ao que um espírito verdadeiramente livre e indestrutível pode conseguir face a desafios terríveis. Um dos grandes clássicos do cinema, com memoráveis atuações de Steve McQueen e Dustin Hoffman. Duração: 150 minutos
18/12: O Profeta (Jacques Audiard, 2009)
Condenado a seis anos de prisão, Malik El Djebena, meio árabe, meio córsico, é analfabeto. Ao chegar à prisão, totalmente sozinho, ele parece mais jovem e mais frágil do que os outros presos. Ele está com 19 anos. O líder da facção dos córsicos dá a Malik uma série de “missões” a serem cumpridas. Ele aprende rápido e se fortalece, ganhando a confiança do chefe da facção. Malik usa toda a sua inteligência para desenvolver discretamente o seu plano. Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 2009. Duração: 155 minutos
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
27/11: Cidade dos Sonhos (David Lynch, 2001)
Um acidente automobilístico na estrada Mulholland Drive, em Los Angeles, dá início a uma complexa trama que envolve diversos personagens. Rita escapa da colisão, mas perde a memória e sai do local rastejando para se esconder em um edifício residencial que é administrado por Coco (Ann Miller). É nesse mesmo prédio que vai morar Betty, uma aspirante a atriz recém-chegada à cidade que conhece Rita e tenta ajudar a nova amiga a descobrir sua identidade. Em outra parte da cidade o cineasta Adam Kesher, após ser espancado pelo amante da esposa, é roubado pelos sinistros irmãos Castigliane. Duração: 140 minutos.
Crítica: Cidade dos Sonhos (David Lynch, 2001)
Extraído de http://cinemacomrapadura.com.br/criticas/84185/cidade-dos-sonhos-2001-84185/
“Cidade dos Sonhos” não é um filme filosófico nem filme que instiga grandes reflexões, mas uma verdadeira aula de linguagem cinematográfica. Alguns dos motivos pelos quais tornou-se um clássico contemporâneo são mais fáceis de observar: David Lynch sempre trabalha com diretores de arte e diretores de fotografia que sabem como fazer emergir da tela um clima sombrio e, para isso, os usos constantes dos cenários em tons de vermelho e azul ajudam a dar personalidade ao filme. Esse recurso foi anteriormente utilizado em outros de seus filmes, como “Veludo Azul” e “Twin Peaks”.
A novidade, entretanto, é o recurso da fragmentação da narrativa, que contribui para dificultar o entendimento do filme. Entender, aliás, é algo que Lynch não espera que aconteça, pois, questionado em entrevistas na época em que “Cidade dos Sonhos” estreou, o diretor fugia das perguntas que culminavam em apelos para dicas de resolução desse quebra-cabeça.
Em meio aos testes que Betty realiza para conseguir uma boa personagem em algum filme, as duas protagonistas acabam se apaixonando. Quando Rita acorda e pede que Betty a acompanhe até o Clube Silêncio, finalmente podemos sentir David Lynch no roteiro.
Em uma das cenas mais elogiadas pelos fãs e por parte da crítica que elogiou o diretor, o apresentador do “teatro” tenta nos avisar de que o que estamos vendo é apenas uma ilusão. A trilha sonora envolvente de Angelo Badalamenti dá lugar a uma versão em espanhol da música “Crying” de Roy Orbison, um dos momentos mais intensos da película.
Quando Rita resolve usar a chave azul para abrir a caixa que encontrou no Clube, tudo vira de pernas para o ar. A sensação do espectador é que, ao invés de ter encontrado a peça necessária para resolver o mistério, Rita abriu uma verdadeira caixa de Pandora, liberando a dolorosa verdade cheia de simbolismos das histórias de ambições e sonhos que permeiam Hollywood. Falar além disso seria estragar o exercício de percepção e concentração que David Lynch nos propõe.
Aqueles que procuram uma saída fácil para a trama ou sua auto-resolução ao término dos 145 minutos cometem um terrível engano, pois Lynch nunca gostou de entregar o jogo para seu público e, nesse caso em especial, até mesmo os mais atentos podem se perder. Não existe apenas um final para o filme, possibilitando que criemos tantos finais quanto nossa imaginação permitir. “Cidade dos Sonhos” não é um filme para ser compreendido, e sim absorvido como uma aula de cinema.
sábado, 20 de novembro de 2010
20/11: Uma História Real (David Lynch, 1999)
Sinopse
Um retrato lírico da real viagem de um homem através do coração da América. Filmado ao longo da rota de 260 milhas que Alvin Straigt percorreu em 1994, indo de Laurens, Iowa para Mr. Zion, Wisconsin. História Real conta as crônicas da odisséia de Alvin e das pessoas com as quais encontrou ao longo da travessia. Duração: 112 minutos.
Crítica: Uma História Real (David Lynch, 1999)
Extraído de http://www.cineplayers.com/critica.php?id=451
Uma expressão para categorizar História Real é 'não-convencional': ele é um drama, mas não há conflito; ele é um road-movie, mas não há velocidade; ele é um David Lynch, mas completamente normal. Aliás, normal é uma das interpretações para o título original, Straight Story. Depois de ser massacrado pela crítica por seu A Estrada Perdida, um filme brilhante, porém, absurdo e difícil de se entender, Lynch resolve contar uma estória de narrativa linear, em boa parte alegre e sem grandes surpresas (inclusive, outro significado para 'straight' é careta, o que este filme é, se comparado aos outros projetos do diretor).
História Real conta a estória de Alvin Straight, um idoso cidadão do meio-oeste americano que, ao saber de um enfarte de seu irmão, resolve visitá-lo. O problema é que o irmão mora em outro estado, e Alvin já não pode mais dirigir, então resolve ir dirigindo um cortador de grama. Quebrando a convenção de road-movies da velocidade construída em Sem Destino, o cortador de grama usado por Alvin é um meio de transporte talvez até mais lento que andar à pé, e isso é mostrado bem numa tomada onde a câmera está focalizada nas linhas de divisão da estrada, passa a focalizar Alvin e seu veículo, mostra as nuvens por um tempo e depois volta a olhar para baixo, mostrando que ele mal saiu do lugar. Aliás, essa tomada das faixas divisórias já havia sido utilizada em Coração Selvagem e Estrada Perdida antes, mas em ambos os casos a câmera se movia freneticamente na estrada, enquanto aqui o movimento é suave e lento, refletindo a natureza do filme. Mas o motivo pelo qual Alvin viaja no cortador vai além da sua impossibilidade de dirigir, ou de sua alegada desconfiança para com motoristas de ônibus; uma viagem dessas demora muito, tanto que ele tem de dormir nos acostamentos das estradas, num mini-trailer que é puxado pelo cortador. Isso lhe dá a oportunidade não apenas de apreciar mais a bela paisagem do local, mas também de refletir. O fato é que os dois irmãos já não se falavam fazia 10 anos, devido a uma troca de insultos no passado, e Alvin quer usar esta oportunidade para refletir sobre seus erros e engolir seu orgulho, botando os pensamentos em ordem.
A trama não nos proporciona situações adversas, nem grandes momentos de tensão onde o personagem tem de se superar para conseguir sobreviver, aprendendo assim uma importante lição de vida (outra convenção de road-movies). Pelo contrário, Alvin sempre tem tudo sobre controle (com exceção de uma ladeira onde o cortador acaba descendo rápido demais), e a viagem segue no ritmo esperado. Ele já é um homem vivido, ex-combatente, e tem muito mais a ensinar que a aprender; a cada nova pessoa que ele encontra, é uma nova lição a dar, e não a receber. Mas essas lições acabam refletindo tudo aquilo de que ele se arrepende, como quando ele diz para dois irmãos mecânicos que só faziam brigar que o irmão é a pessoa que melhor te conhece, e que eles deveriam evitar brigar e aproveitar o irmão que têm, numa clara alusão aos erros que ele próprio cometeu no passado. Essas lembranças acabam mostrando Alvin como um sujeito bem mais amargurado que a impressão tranquila e mansa que ele passa, e isso é mostrado em duas situações: sentindo o peso da velhice cair sobre os ombros (ele já não enxerga bem, e tem de andar com duas bengalas por causa da artrite), ele constata ao ver um acampamento de uma maratona de ciclistas, que a pior coisa em se envelhecer é relembrar a juventude; ao encontrar um outro ex-combatente da Segunda Guerra, ele relembra de um incidente em que talvez tenha matado um companheiro, e a dúvida que o levou a se afundar na bebida após a guerra.
Tecnicamente o filme também é exemplar, com uma fotografia belíssima dos vastos campos de trigo e uma trilha sonora que, como de costume nos filmes do diretor, acaba falando mais do filme que o filme em si. As atuações estão no geral muito boas; tanto a filha de Alvin quanto seu irmão conseguem transmitir muito bem as angústias dos personagens, apesar de seu pouco tempo de tela, mas o destaque realmente vai para Richard Farnsworth, que cria um Alvin extremamente carismático e comovente, num papel que caberia como uma luva para Jack Nance, antigo regular de Lynch. Richard, inclusive, poderia ter vindo a se tornar um novo habitual colaborador do diretor, se não tivesse infelizmente suicidado pouco após o término do filme. Apesar de ser um filme bem diferente, podemos ainda ver claras marcas lynchenianas nele, como a presença de eletricidade (na forma dos trovões), coincidências (o número de veados mortos pela mulher na estrada é o mesmo número de filhos que teve Alvin), a cabana pegando fogo e a pacata vida do interior americano. Além de que, a cena inicial onde vemos uma mulher obesa tomando banho de sol e ouvimos Alvin cair dentro de casa é típica do diretor.
O título em português deve-se provavelmente ao fato de que o filme é baseado em um fato verídico, que chegou a Lynch através de um recorte de jornal com a estória do sujeito. Lynch depois retornaria ao seu lado obscuro e surreal com Cidade dos Sonhos e a mini-série Rabbits, mas História Real foi uma agradável surpresa, e nos deixa todos numa expectativa de um dia poder revisitar este lado mais sensível do diretor. O saldo no final é de um filme bastante comovente, mas que nos deixa sair da projeção com um leve sorriso no rosto, como se também tivessemos aprendido algo mais com o velho Alvin.
quinta-feira, 11 de novembro de 2010
13/11: Veludo Azul (David Lynch, 1986)
Jeffrey retorna para sua cidade depois de estar fora algum tempo e descobre uma orelha humana sobre o chão, em meio ao mato. Não satisfeito com a passividade da polícia em relação ao caso, ele e a filha de um detetive da polícia resolvem fazer sua própria investigação. Eles acabam entrando em um submundo bizarro, envolvendo um homem diabólico e uma linda, porém misteriosa, mulher. Duração: 120 minutos
Crítica: Veludo Azul (David Lynch, 1986)
Extraído de http://www.cineplayers.com/critica.php?id=1989
Quando In Dreams, a bela e soturna canção de Roy Orbison, irrompe o silêncio da madrugada para embalar o espancamento de Jeffrey Beumont, nosso protagonista e guia em Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), já estamos suficientemente imersos no universo subversivo de David Lynch. O carro está estacionado à beira de uma auto-estrada mal iluminada, pessoas bêbadas riem da desgraça de Jeffrey, que por sinal está com a boca toda borrada de batom vermelho, assim como seu algoz, Frank Booth, o insano personagem de Dennis Hopper que acabava de lhe beijar antes de sentar a porrada. Uma mulher de formas estranhas dança sobre a lataria do carro, um homem com aspecto de boneco de cera acompanha tudo com encantamento. Arquitetura de um pesadelo, e Jeffrey o sente na pele; é real.
Mesmo em seus filmes mais narrativos, como é o caso de Veludo Azul, o cinema de David Lynch é todo sensorial. Imagens, canções, diálogos, os elementos são dispostos cuidadosamente para a composição de uma atmosfera onírica, e geralmente possuem significância metafórica ou dúbia. Lynch é um grande reconhecedor da essência artística de construção de novas realidades; os filmes discursam sobre nosso mundo, sobre como nos relacionamos com ele e com quem o habita, sobre as perversões, fobias e sentimentos diversos destes habitantes, mas sua representação extrapola os significados que estes signos receberiam do lado de cá. Filmar, para Lynch, não é cercar, induzir ou subtrair-se até atingir a fórmula precisa; mas desbravar, expandir e, principalmente, explorar sensações, nem que isso resulte em um filme de três horas cheio de excessos.
Veludo Azul inicia mostrando o cotidiano de uma pacata cidade do interior dos Estados Unidos. Casas com cerquinhas brancas, flores coloridas, crianças brincando no jardim, o caminhão de Bombeiros passeando lentamente pela rua enquanto seus passageiros, sorridentes e num slow motion tosco, acenam para os vizinhos. Tudo muito bonito e tranquilo em Lumberton. A superfície da cidade é a representação estética do american way of life, o tal sonho estadunidense, a vida perfeita, aquela comercializada nas publicidades de creme dental onde o branco soa mais branco do que você jamais poderá ver, mas debaixo da grama os insetos remoem a terra e compõem uma paisagem negra de depredação, e a câmera de Lynch, é claro, faz questão de os perseguir.
Viver na cidade dos sonhos? Ah, puta tédio, viu. Andar pelo campo sentindo o ar fresco da natureza? Tédio. Tédio redobrado. A vida só volta a ficar interessante para Jeffrey em sua viagem ao interior quando finalmente encontra uma orelha humana grudada na grama, apodrecendo aos poucos. A câmera de Lynch, é claro, faz questão de persegui-la. E mais: penetrá-la. A orelha é um portal e um brilhante truque narrativo: adentramos ao outro lado desta realidade. The dark side. Sai o sonho idealizado, surge o pesadelo do obscuro e do sadomasoquismo, essa mistura de dor e fascínio que nos regra. Um lado precisa existir para que também exista o efeito do outro, e é a partir deste paradoxo que Lynch dá início à sua viagem por esse pesadelo carnal – e real.
O universo de Veludo Azul respira ares de sarcasmo em torno desta relação paradoxal. O romantismo soa cafona, a perversão uma comédia, o sexo quase um ato de violência. Aqui, a excitação é medida na ponta da navalha. Se Jeffrey tem duas opções (dificilmente existe apenas uma saída para qualquer situação, isso na vida mesmo), depois da orelha escolhe sempre a mais estranha. “Não sei se você é um detetive ou um pervertido”, diz a formosa loira (Laura Dern, é, nem tão formosa assim) pela qual ele se apaixona, depois de vê-la surgir da escuridão da forma mais brega possível durante uma caminhada noturna – aparição que inclui iluminação over no rosto da atriz e trilha de conto de fadas. “Isto eu sei, e você terá que descobrir”, responde. Dito isso, se enfia dentro de um armário e observa uma mulher perturbada tirar a roupa e, mais adiante, trepar de um jeito um tanto quanto maluco com seu homem, que a espanca, preenche a boca com pedaços de veludo e respira com auxílio de um inalador aos gritos de “baby wants to fuck!”.
Depois de situados nessa ótica perversa de Lynch, só resta mesmo nos entregarmos e aproveitar o espetáculo. E Veludo Azul é um deslumbre. Suspense oitentista com cara de aventura juvenil filmada por alguém que viu muito filme noir e, depois disso, resolveu desmistificar o lado negro do ser humano misturando aromas vespertinos com odor de sangue e esperma. David Lynch abre espaço para diversas sensações, algumas delas chegando juntas num misto de fascínio e horror bastante semelhante ao vivido por Jeffrey nessa jornada insana. As reações do lado de cá soam tão subversivas quanto alguns dos melhores momentos do filme; ou vai dizer que as bizarrices de Dennis Hopper e suas dezenas de frases de efeitos, palavrões e atitudes inconsequentes não são o máximo de comicidade que se pode extrair de um filme que chafurda tão a fundo na podridão dos instintos carnais humanos?
É de Hopper os melhores momentos de Veludo Azul, aqueles que os fãs do filme lembram com maior entusiasmo e dos quais sabem todos os diálogos de cor. Não é pra menos. Frank Booth é seguramente o personagem mais icônico construído pelo cinema de Lynch, que se aproveita da figura doentia do ator para deitar e rolar em sequências que beiram o seu surrealismo futuro. De frases antológicas como “I'll fuck everything that moves!” a imagens bizarras como as inspirações com inalador, Frank Booth é ele próprio um genuíno personagem de pesadelos, mas que, em Veludo Azul, representa perigo real ao nosso protagonista. E se Lynch ao final de tudo insinua um retorno aos comerciais de creme dental com aquele epílogo sobre pintarroxos e novos sonhos idealizados, o belo e vasto gramado do quintal não nos deixa iludir. Afinal, debaixo dele sempre existirão os insetos.quinta-feira, 4 de novembro de 2010
06/11: O Homem Elefante (David Lynch,1980)
John Merrick um inglês que vive recluso em um circo por ter uma doença que desfigurou seu rosto. Ele é descoberto por um médico, que deseja integrá-lo à sociedade não como um "esquisito", mas como alguém normal e culto. O problema é que as pessoas não estão prontas para isso, e John terá que sofrer muito para ser tratado como ser humano. Duração: 120 minutos
Crítica: O Homem Elefante (David Lynch, 1980)
por José Carlos Avelar
Extraído de http://www.escrevercinema.com/Lynch_elefante.htm
Ver ou não ver, eis a questão
Antes mesmo de entrar no cinema o espectador já sabe que o personagem principal desta história é um homem exibido em barracas de feiras e de parques de diversões como um monstro, vítima, talvez, de um acidente durante a gravidez de sua mãe, metade gente metade elefante. Não por acaso a ação se passa em grande parte num espaço de diversão popular anterior ao tempo do cinema – os parques de diversões, os museus de cera, os trens fantasmas – e o filme se insinua como espetáculo metade do tempo do circo de horrores, que mais sugere do que efetivamente mostra, metade do tempo do cinema, que mais mostra que sugere. De um certo modo, antes do filme o espectador já viu o filme ou pelo menos já sabe como é o filme que vai ver. O anúncio no jornal, o cartaz na porta do cinema e o trailer exibido nas semanas anteriores desenhavam a imagem de um indivíduo fisicamente deformado.
Logo que O homem elefante começa o espectador está portanto à espera de um aleijão. Do monstro anunciado no convite irônico da última frase do trailer: o vigia do hospital diz que por um preço justo todos poderão ver algo que jamais viram em vida. À espera do monstro, anunciado mas não mostrado no trailer, nem no anúncio de jornal, nem no cartaz na porta do cinema. Em todas as peças de divulgação ele aparece como sombra ou com o rosto coberto por um capuz.
Certo, não convém exagerar, não necessariamente o espectador passa pelo material de divulgação antes de pegar o filme no cinema. A escolha do filme pode se dar ao acaso. O público pode ser levado pelo hábito de ir ao cinema ou de frequentar determinada sala de cinema, pode não ter sido preparado para ver o filme do ponto de vista sugerido pela publicidade em torno dele. Mas em O homem elefante, mesmo o espectador ocasional conta com preparação semelhante nas primeiras imagens: a reação dos personagens em cena anunciam que o aleijão que ainda não vemos é mais deformado do que se pode imaginar.
O filme começa, mas o personagem principal não aparece logo. Quer dizer, ele está lá, em cena, mas não podemos vê-lo. Ou porque a câmera olha para ele apenas nos momentos em que ele está numa parte escura do cenário, ou porque na maior parte do tempo a câmera prefere se desviar para as pessoas que olham o homem elefante e se esquece de vê-lo, de mostrar-nos tal como ele é. O filme avança, passa-se o tempo, o monstro continua sem aparecer na tela.
Rapidamente a história muda de assunto quando parece que ele finalmente vai aparecer aos nossos olhos. Bytes, o homem que se dizia seu proprietário e o explorava nas feiras e parques de diversões, abre a cortina, mas o homem elefante não aparece para o espectador. Treeves, o médico que estuda anatomia e se interessa em especial pelo caso do homem elefante, se aproxima dele e pede licença para examiná-lo, mas ainda aí ele não aparece na tela. Ele não aparece nem mesmo quando sua deformação física é descrita e analisada num simpósio de médicos.
Assim, exagerando um pouco, podemos dizer que quando ele finalmente pode ser visto já ninguém mais na platéia está à espera dele, ninguém mais tem um interesse especial em vê-lo. A curiosidade do espectador foi contida, a narração muito habilmente tratou de desviá-la para as pessoas em torno do homem elefante e para o cenário em que estas pessoas se movimentam.
Quando John Merrick aparece pela primeira vez na tela o espectador já tinha visto em detalhe um dos verdadeiros monstros de que se ocupa The Elephant Man: Bytes, o que se diz proprietário do homem elefante e que, irritado com a demorada permanência de Merrick no hospital, aplica-lhe uma violenta surra. Quando Merrick aparece pela primeira vez na tela o espectador já se acostumara a um cenário — mais do que a uma ação: a um cenário, a um espaço — fisicamente deformado.
Uma boa parte desta sensação de se encontrar diante de uma paisagem deformada vem da fotografia em preto e branco. Vem da fotografia não porque ela seja em preto e branco, mas porque ela se serve do preto e branco para endurecer e fomentar os contrastes, para encher a tela de sombras, de fumaças escuras, de montes de carvão, de porões sem luz alguma.
Outra parte desta sensação de espaço deformado vem do som, dos ruídos aparentemente desligados da ação mas que insistem em se infiltrar ali onde não parecem ser chamados: ruídos de goteiras, barulho de esgotos, o arranhado de máquinas, o bater pesado da engrenagem do relógio e a gritaria incômoda das mulheres que brigam na entrada do hospital, os grunhidos dos bêbados no bar.
Só depois de ver tudo isto, só depois de ter os olhos acostumados a este ambiente rude e deformado como há tempo não se costuma ver no cinema (quase todo o tempo feito de cores quentes e brilhantes), só depois de uma meia hora de passeio por esta Londres sombria, é que conseguimos ver o homem elefante. E então ele nos parece uma pessoa nem tão deformada assim, porque inserida num quadro semelhante a ele próprio.
Isto é, a caracterização do ator John Hurt é até bastante fiel à tradição dos monstros do cinema. Mas quando aparece como aqui, cercada de imagens deformadas pela fotografia, surge como figura normal. O espectador está então preparado para ver logo o que o protagonista grita desesperado já perto do final da história, que ele é um ser humano e não um animal. O espectador vê logo o que poucos dos personagens que se mexem no universo do homem elefante conseguem entender.
Levado pela muito hábil imagem promocional, que estimula a invenção de uma horror visual, e pela não menos hábil construção dramática, que promete uma determinada atração para depois dela se desviar, para levar o espectador a criticar durante a projeção exatamente o que parecia a própria razão de ser do filme, levado por esta meia hora em que o homem elefante não se dá a ver na tela, o espectador pode mais facilmente perceber o personagem como ele realmente é.
Uma representação alegórica, gentil – “um Romeu e não um animal”, define uma personagem – retrato de um ser humano que numa sociedade agressiva e deformada se vê perseguido e rechaçado como se fora um mostro. John Merrick é um quase adolescente que chora ao imaginar o desgosto que deu à sua mãe. É um jovem rejeitado, que por medo do contato com os outros permanece calado, não fala. É um homem sofrido, que quase ao final da vida descobre que estar no mundo vale á pena quando a presença de um amigo dá algum sentido às coisas. É um homem que se esconde para que a deformidade de seu rosto não continue a fazer dele uma pessoa que só é olhada para não ser vista.
[A nota acima, escrita em julho de 1981, foi originalmente publicada em jornal na semana de lançamento do segundo longa-metragem de David Lynch nos cinemas do Rio de Janeiro. Talvez, hoje, O homem elefante, depois de ser visto como o filme que efetivamente é, possa ser tomado como uma antecipação dos filmes que Lynch fez em seguida para cinema. No universo do diretor continuamos a encontrar um personagem gentil e ingênuo como um Romeu oculto numa aparência monstruosa que se desfaz apenas quando o espectador percebe a deformação do meio em que ele se encontra. E continuamos a passear por uma espécie de labirinto escuro (como se estivéssemos num trem-fantasma de parque de diversões) sem uma precisa noção de onde estamos e do que realmente vemos. A questão continua a mesma: ver ou não ver.]
Programação Novembro 2010: David Lynch
06/11: Homem Elefante (1980)
13/11: Veludo Azul (1986)
Jeffrey retorna para sua cidade depois de estar fora algum tempo e descobre uma orelha humana sobre o chão, em meio ao mato. Não satisfeito com a passividade da polícia em relação ao caso, ele e a filha de um detetive da polícia resolvem fazer sua própria investigação. Eles acabam entrando em um submundo bizarro, envolvendo um homem diabólico e uma linda, porém misteriosa, mulher. Duração: 120 minutos
20/11: Uma História Real (1999)
Um retrato lírico da real viagem de um homem através do coração da América. Filmado ao longo da rota de 260 milhas que Alvin Straigt percorreu em 1994, indo de Laurens, Iowa para Mr. Zion, Wisconsin. História Real conta as crônicas da odisséia de Alvin e das pessoas com as quais encontrou ao longo da travessia. Duração: 112 minutos.
27/11: Cidade dos Sonhos (2001)
Um acidente automobilístico na estrada Mulholland Drive, em Los Angeles, dá início a uma complexa trama que envolve diversos personagens. Rita escapa da colisão, mas perde a memória e sai do local rastejando para se esconder em um edifício residencial que é administrado por Coco (Ann Miller). É nesse mesmo prédio que vai morar Betty, uma aspirante a atriz recém-chegada à cidade que conhece Rita e tenta ajudar a nova amiga a descobrir sua identidade. Em outra parte da cidade o cineasta Adam Kesher, após ser espancado pelo amante da esposa, é roubado pelos sinistros irmãos Castigliane. Duração: 140 minutos.
Visita de Carlos Reichenbach - 30 de outubro de 2010
Nós do Cine Clube Ybitu Katu agradecemos ao Carlos Reichenbach pel do convite, à Secretaria de Cultura pelo apoio fornecido e, principalmente ao grande público presente.
Confira aqui todas as imagens do evento fotografadas por David Devidé.