por Ruy Gardnier
Extraido de http://www.contracampo.com.br/69/misteriosepaixoes.htm
Extraido de http://www.contracampo.com.br/69/misteriosepaixoes.htm
Nos anos 90, David Cronenberg propõe duas adaptações de obras-primas da literatura underground do século XX: O Almoço Nu de William Seward Burroughs (1959) e Crash de James Graham Ballard (1971). Curiosamente, em algum momento de suas carreiras, ambos ficaram associados à literatura de ficção científica/fantástica (notadamente Nova Express, para Burroughs, e todos os primeiros livros de Ballard, entre eles The Drowned World) da mesma forma como ficou Cronenberg durante os anos 70-80, em filmes como Videodrome, Scanners, A Hora da Zona Morta ou A Mosca. 1988 faz um ponto de clivagem em sua carreira: a fluidez do gênero passa a se ralentar, a intriga corporal dos personagens passa a afetar também - e talvez mais profundamente - suas psicologias, e uma escrita mais experimental passa a se sentir no cinema cronenberguiano a partir de Gêmeos - Mórbida Semelhança. De certa forma, a adaptação dessas duas gemas da literatura são um momento privilegiado para Cronenberg refletir sua própria posição de criador que sai de um registro de gênero mais estrito e entra mais especificamente no domínio da "grande arte" que ele vai perseguir nos anos 90.
Dito isso, vale dizer que O Almoço Nu é um livro absolutamente inadaptável para o cinema, e que os fragmentos de ficção que Cronenberg transforma em Mistérios e Paixões (num desses inspiradíssimos títulos péssimos que os distribuidores nos arrumam) se devem tanto a acontecimentos na própria vida de Burroughs e de seu período em Tânger (que seria locação do filme não tivesse estourado a Guerra do Golfo, o que obrigou a produção a recriar o Marrocos num estúdio de Toronto), durante o qual escreveu o livro, quanto a momentos que de fato estão no livro em forma de ficção meta-documental. O que faz desse filme uma adaptação das mais estranhas. Primeiro porque ela parece funcionar apenas a partir de alguns motivos recorrentes: Judy Davis, máquinas de escrever que se transformam em baratas, a carne negra que a princípio é usada para diminuir o efeito do pó de dedetização ("bug powder") no qual William Lee e sua esposa se viciaram, relatórios, Benway, Guilherme Tell, mas acima de tudo conspirações. A paranóia é freqüente e William Lee parece estar alheio a tudo aquilo que dizem a ele: ele ouve tudo como se fosse uma revelação, como se sua vida dependesse das descobertas dos agentes-baratas-máquinas-de-escrever ou dos conselhos de Tom Frost. Cronenberg transforma O Almoço Nu, em termos de estrutura, num romance policial à la nouveau roman.
Visualmente, o filme cria um universo escuro e opaco, ornado por verdes e por laranjas discretos mas pregnantes, e sempre resignados a uma pequena parte da tela. O terreno é o do neo-noir, solo que no mesmo ano de Mistérios e Paixões deu Barton Fink - Delírios de Hollywood (1991), filme quase irmão na estética e na temática, ainda que o lógica do derrisório dos irmãos Coen tenha muito pouco a ver com a lógica de imersão do cinema de Cronenberg. Como em todo (ou quase todo) noir ou neo-noir, é uma lógica da investigação e do complô que rege a relação do personagem principal com o mundo. Mas é uma investigação sem objeto (atrás de que corre William Lee? O que ele busca?), e um complô do qual não somos informados, nem sobre seus limites, nem sobre seu objetivo (o que leva o personagem a correr atrás de Benway, de Fadela ou do francês Yves Cloquet? Sobre o que eles conspiram? Quais os segredos que eles guardam?). Toda a trama de mistério parece ser apenas um grande mcguffin - obrigação externa cujo único propósito dramático é propulsionar o personagem a perseguir o verdadeiro tema da obra - para a verdadeira investigação do filme.
E o centro oculto do filme, aquilo que se instala sub-repticiamente e vai aos poucos dominando de forma completa, é o ato literário, o acesso ao escrever como acontecimento na vida de uma pessoa, e esse acontecimento não como dom, mas como vício, como praga e como doença (característica pregnante em todo cinema de Cronenberg) que, uma vez instalados, só farão prescrever suas rotinas sobre os corpos de seus hóspedes. Se a "clivagem temática" de Cronenberg a que nos referimos no começo existe, é porque agora o "corpo estranho" não se insinua mais no terreno da ficção fantástica, mas daqui em diante opera nos delírios mentais do cotidiano, nas relações com nossos objetos de predileção, nossas obsessões corriqueiras. Nada glamourosa ou chique, a literatura em Mistérios e Paixões é a última provação, é a matéria insidiosa e viciante que arremessa nosso personagem-escritor no mundo das alucinações paranóicas, um universo estranho em que nada é o que parece, e tudo aquilo que não é central pode funcionar como desvio de atenção. O foco, o foco: escrever relatórios. É a partir desses relatórios e de coisas prosaicas como uma relação muito particular com máquinas de escrever que nasce o tecido literário, que inconscientemente ao próprio artista brota o livro, que de um relato a partir da vivência surge a matéria da escrita por si mesma. O mesmo lance de dados jogado até o final: como gesto que inaugura sua viagem (em sentido figurado e em sentido próprio), é preciso que William Lee repita Guilherme Tell para provar seu ofício de escritor.
E o centro oculto do filme, aquilo que se instala sub-repticiamente e vai aos poucos dominando de forma completa, é o ato literário, o acesso ao escrever como acontecimento na vida de uma pessoa, e esse acontecimento não como dom, mas como vício, como praga e como doença (característica pregnante em todo cinema de Cronenberg) que, uma vez instalados, só farão prescrever suas rotinas sobre os corpos de seus hóspedes. Se a "clivagem temática" de Cronenberg a que nos referimos no começo existe, é porque agora o "corpo estranho" não se insinua mais no terreno da ficção fantástica, mas daqui em diante opera nos delírios mentais do cotidiano, nas relações com nossos objetos de predileção, nossas obsessões corriqueiras. Nada glamourosa ou chique, a literatura em Mistérios e Paixões é a última provação, é a matéria insidiosa e viciante que arremessa nosso personagem-escritor no mundo das alucinações paranóicas, um universo estranho em que nada é o que parece, e tudo aquilo que não é central pode funcionar como desvio de atenção. O foco, o foco: escrever relatórios. É a partir desses relatórios e de coisas prosaicas como uma relação muito particular com máquinas de escrever que nasce o tecido literário, que inconscientemente ao próprio artista brota o livro, que de um relato a partir da vivência surge a matéria da escrita por si mesma. O mesmo lance de dados jogado até o final: como gesto que inaugura sua viagem (em sentido figurado e em sentido próprio), é preciso que William Lee repita Guilherme Tell para provar seu ofício de escritor.
Como o curta-metragem Câmera ou Videodrome, Mistérios e Paixões é um filme decisivo na carreira de Cronenberg. É o momento que o narrador cronenberguiano abandona a frieza distanciada, clínica, característica de algumas de suas obras-primas (Crash vem à mente primeiro), e mergulha de cabeça no vício do personagem transformado em vício da ficção. Filmes entrópicos, de compreensão difícil ou por vezes impossível - os encontros de William com os outros personagens de Mistérios e Paixões nunca funcionam no sentido da evolução narrativa, e isso nos impede de entender dramaticamente sua colocação na história -, são momentos particulares em que David Cronenberg prova de seu próprio veneno, se insere na trama que enreda para nós, cai voluntariamente em sua própria teia. Menos um filme de crise do que a base para um novo programa, Mistérios e Paixões (se) apaixona pelas incertezas da arte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário