quinta-feira, 21 de abril de 2011

Crítica: Persona (Ingmar Bergman, 1966)

por Rodrigo Carreiro
Extraído de http://www.cinereporter.com.br/criticas/homevideo/persona/

Com diálogos e monólogos inesquecíveis, filme é Ingmar Bergman no melhor da forma.

Era 1965 e o sueco Ingmar Bergman, já estabelecido como um dos maiores diretores de cinema do planeta, contraiu pneumonia. Internado num hospital por vários dias, ele viu a crise física se transformar em depressão profissional, quando passou a questionar a própria validade como artista. Naqueles dias de solidão, aproveitando o tempo livre para fazer uma reavaliação da carreira, Bergman começou a perceber que sua arte, tão elogiada, não contribuía em nada para mudar a humanidade. Foi a partir deste questionamento, da falta de fé no poder curativo da arte, que o cineasta concebeu aquele que se tornaria, para muitos fãs, o maior de todos os filmes que dirigiu: “Persona” (Suécia, 1966).

A crise de Bergman foi integralmente transposta para uma personagem inesquecível. Elizabeth é uma atriz de teatro, famosa e consagrada, que pára de falar no meio de uma apresentação da peça Elektra. Não há qualquer razão clínica para aquele silêncio. Ela simplesmente não quer falar. Ao ver que três meses de tratamento psiquiátrico não estavam ajudando em nada, a diretora do hospital decide mandá-la para uma temporada em uma ilha deserta, acompanhada apenas de uma enfermeira. A maior parte do filme se dedica a observar a complexa relação de amor e ódio que se estabelece entre aquelas duas mulheres, tão diferentes e ao mesmo tempo tão semelhantes.


“Persona” flagra Bergman no apogeu do talento como roteirista. Ele cria diálogos e monólogos inesquecíveis, sem ceder à tentação de explicar os personagens, analisá-los, psicologizá-los. A tarefa de decodificar os significados ocultos da narrativa onírica, de textura fantasmagórica, construída com a ajuda inestimável do fotógrafo Sven Nykvist, é exclusiva do espectador. Algumas seqüências, como a colagem de cenas soltas que funciona como uma abertura antológica, são responsáveis por emprestar ao filme uma aura imbatível de mistério. Cinéfilos se debruçaram durante décadas sobre as imagens de dor, prazer e morte construídas pela câmera impassível de Bergman. Elaboraram dezenas de teorias para esclarecê-las, e ainda assim elas continuam a conservar a aura essencial de humanidade própria dos melhores trabalhos do diretor.

Foi por causa de “Persona” que Ingmar Bergman passou a ser reconhecido mundialmente como o cineasta que melhor soube filmar o rosto humano. Graças ao trabalho esplêndido de Nykvist, que ilumina as cenas de forma magistral, usando fortes contrastes e recusando o naturalismo para expor sem reservas cada linha, cada sombra, cada poro das faces de Bibi Andersson e Liv Ullmann (ambas musas de Bergman e atrizes extraordinárias), o diretor sueco desnuda a alma das duas mulheres, ao mesmo tempo sem desvelar aquele componente inefável, invisível, que as torna essencialmente humanas. A seqüência em que os rostos das duas se fundem em uma face híbrida pode parecer inofensiva nos dias de hoje, mas na época era recebida com um misto de surpresa, excitação, horror e repulsa pelos espectadores. Talvez a cena seja a chave do mistério do filme – as duas mulheres, com seus traumas relacionados à maternidade, vistas como se fossem uma só.

A cena mais lembrada do filme, e talvez a mais extraordinária de todas, é o incrível monólogo de Bibi Andersson sobre uma orgia na praia, da qual ela participou, com dois adolescentes. É possível que seja a seqüência mais excitante e erótica de todo o cinema – e no entanto a câmera permanece estática, mostrando apenas as duas mulheres, durante oito longos minutos sem cortes. A história da farra sexual sobre a areia da praia é narrada de forma tão vívida e colorida, com tal riqueza de detalhes, que praticamente se torna possível ver as imagens da lembrança de Alma, e enfermeira. A força tas palavras é tão vibrante que cada espectador formula, sem perceber, um quadro mental completo com as informações dadas. O crítico Roger Ebert diz conhecer pessoas que juram ter visto a cena da orgia, e no entanto ela jamais foi filmada. Dá para contar nos dedos de uma mão os roteiristas capazes de criar imagens mentais tão poderosas.

Quando exibido nos cinemas brasileiros, o filme de Bergman ganhou o inacreditável título de “Quando Duas Mulheres Pecam”. Felizmente, a edição em DVD da Versátil eliminou a canhestra tentativa de tradução e resgatou o nome original da obra.

Um comentário:

Anônimo disse...

ótimo texto!