Extraído de http://www.cineplayers.com/critica.php?id=1356
Qualquer forma de manifestação artística fica atrelada às condições técnicas e ao contexto histórico de sua época de produção. Por maior que seja a obra-prima cinematográfica, ela sempre enfrenta o desafio dos dias que passam, que transformam a cultura, as formas de viver, de sentir, de interpretar. O que em sua época de lançamento é aclamado como demonstração de genialidade, após algumas décadas pode parecer chato, arrastado, datado.
Algumas obras, porém, continuam despertando interesse por força do que conseguem manter de universal, frente aos dramas humanos. O Pagador de Promessas consegue ainda mais: mantém a atualidade da força simbólica de suas cenas e é um retrato da riqueza cultural brasileira que, quando mostrada em toda sua plenitude, surpreende o mundo e não encontra dificuldades para conquistar seu lugar entre os clássicos de todos os tempos.
Embora escrita há três décadas, a história que Dias Gomes escreveu para o teatro e que serviu de base ao roteiro desenvolvido por Anselmo Duarte, fala de uma dinâmica social complexa que, muitas vezes, castiga o inocente até os limites da desesperança. Para isso, concorrem instituições diversas, que deveriam servir ao bem-estar dos homens, e mesmo seus semelhantes, que convivem em permanente conflito de interesses como em uma tragédia eterna. Tudo muito atual, embora as imagens em preto e branco e a linguagem fora de moda dificultem um pouco a percepção da profunda harmonia.
O “inocente”, no caso, é o protagonista Zé do Burro (Leonardo Villar), um pequeno proprietário rural que sai do campo carregando uma pesada cruz sobre os ombros, rumo à cidade de Salvador. Diante do sofrimento de seu querido burro Nicolau, que fora atingido por um raio, Zé tenta de tudo para recuperar a saúde do amigo. Vendo que nada adianta, decide-se por recorrer a Iansã e promete a ela, em um terreiro de candomblé, doar parte de seu sítio e levar uma cruz até a Igreja de Santa Bárbara. Tudo pelo restabelecimento de Nicolau.
Iansã do candomblé ou Santa Bárbara da Igreja Católica, para Zé, o nome tanto faz. O que importa é que Nicolau se recupera e a promessa precisa ser cumprida. Porém, percorrer sete léguas, enfrentando chuva e sol, e ter a pele esfolada pela grande cruz se mostra o menor dos problemas do protagonista. Ao chegar em Salvador, acompanhado pela esposa Rosa (Glória Menezes, quase irreconhecível), se depara com a resistência do Padre Olavo (Dionízio Azevedo). O sacerdote não aceita que aquela promessa, feita a uma santa do candomblé, seja cumprida na sua igreja. Zé se instala diante da “casa de Deus” e dalí teima em não sair até fazer o que se propôs, ou seja, levar a cruz até o interior da igreja. É então que o contexto da realidade se impõe à vontade do homem simples.
Na atual fase de valorização mundial do cinema latino, em meio ao sucesso de Alice Braga e Rodrigo Santoro, nunca é demais lembrar que há no Brasil uma história cinematográfica pouco conhecida a ser resgatada, uma identidade cultural a ser cultivada e uma linguagem nacional que não precisa seguir o atual padrão hollywoodiano para ter o seu valor (e nem é isso o que a indústria cultural espera, uma vez que está a correr atrás de diferenciais). Lançado em 1962, O Pagador de Promessas é uma das maiores provas disso. Trata-se de um marco do cinema nacional e um testemunho de competência.
O filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes como Melhor Longa-Metragem, foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, além de ter conquistado outras premiações (tanto nacionais quanto internacionais) e projetado a carreira de Othon Bastos, Norma Benguell, Antonio Pitanga, Glória Menezes e Leonardo Villar, hoje ícones da televisão. Em O Pagador de Promessas está implícita a história do povo nordestino, fustigado pelo sertão, pelo coronelismo, pelas crenças religiosas ingênuas, pela crise rural e urbanização, pela imprensa manipuladora que em nada ficava a dever à imprensa marrom da atualidade. Povo este que encontrou na combinação das influências culturais indígenas, africanas e européias sua identidade e sua alegria de viver. Estão ali o acarajé, o candomblé, a capoeira, assim como questões caras a qualquer ser humano como o amor, a cobiça, a lealdade, as paixões, a honra, a malícia, entre tantas outras.
A cena inicial lembra muito Cidade de Deus quanto à evocação ao modo de vida local. Já as últimas cenas, por si só, já valem o filme, tanto pela disposição estética da fotografia, quanto pela evocação simbólica muito bem construída. O mundo fabrica seus mártires e eles abrem as portas para as multidões, fortalecessem as esperanças dos enfraquecidos. Cada final e cada recomeço trás em si um mar de novas possibilidades, mas o tempo passa e algumas coisas nunca mudam. Por isso mesmo é indispensável investigar o passado, reaprender a interpretar, a sentir, a viver e a construir um futuro diferente.
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