terça-feira, 6 de outubro de 2009

Artigo: Características do cinema nacional a partir dos anos 90

Características do cinema nacional a partir dos anos 90


por
Cíntia Xavier é professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa e aluna do PPG-Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Extraído de http://www.ufscar.br/rua/site/?p=1769

RESUMO

Apesar da controvérsia na existência dos momentos chamados de retomada e pós-retomada do cinema brasileiro, o tema será abordado no presente artigo. Tendo como pressuposto que não há necessariamente uma escola ou movimento cinematográfico como foi o cinema novo, por exemplo. O que pode ser verificado é que as modificações na política de financiamento e distribuição dos filmes brasileiros trazem alterações na própria roteirização e produção. A política das leis de incentivo vai fazer pressão para que as salas de cinema fiquem cheias, porque há necessidade de que o investimento feito pela iniciativa privada tenha retorno. Outro aspecto é a facilitação das linguagens favorecendo um diálogo com a forma narrativa encontrada na televisão, em especial na telenovela. Para observar o fenômeno alguns aspectos de dois filmes sobre o Nordeste brasileiro são como exemplos O Caminho das Nuvens e Eu tu eles. Compreendendo os dois filmes como produções que têm características do benefício das leis de incentivo.

1. COMEÇAR DE NOVO

Para compreender os momentos cinematográficos presentes parte-se do pressuposto que, apesar de controverso, o cinema da retomada é um momento significativo da produção nacional.

Entender o que é o fenômeno que está sendo chamado de Retomada e observar o contexto vivido no período, além das contradições na própria existência de um reinício e os desdobramentos da produção filmográfica brasileira são objetivos da reflexão que segue.

Logo no início da década de 1990, governo Fernando Collor de Melo, extingue a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes). O órgão era responsável por ajudar a financiar boa parte da produção nacional de cinema. A extinção da Embrafilme gera quase uma parada completa na produção de filmes. Em 1992, somente dois filmes de longa-metragem foram lançados no Brasil (NAGIB, 2002).

Se chama retomada, justamente o período a partir de 1993, momento em que há o reinício da atividade de produção de filmes no País. A breve interrupção na finalização de filmes, um certo acúmulo de finalizações nos anos seguintes, vai transparecer como um boom da produção brasileira.

Para alguns, o que houve foi apenas uma breve interrupção da atividade cinematográfica com o fechamento da Embrafilme, a seguir reiniciada com o rateio dos próprios recursos da produtora extinta, através do Prêmio Resgate que contemplou um total de 90 projetos (…), que foram finalizados numa rápida seqüência. Assim, o estrangulamento dos dois anos de Collor teria resultado num acúmulo de filmes nos anos seguintes, produzindo uma aparência de boom. (NAGIB, 2002, p.13)

A Lei do Audiovisual, que foi “promulgada em 1993, aperfeiçoando leis anteriores de incentivo fiscal, começou a gerar frutos a partir de 1995″ (NAGIB, 2002, p.13). Somente em 2001, o então presidente da República Fernando Henrique Cardoso cria a Ancine3[1] (Agência Nacional de Cinema), que vai regulamentar e fiscalizar o financiamento e a produção de filmes contemplados pelas leis de incentivo. Os novos formatos de fomento retiram do Estado diretamente o financiamento dos filmes, passando para a iniciativa privada. O Estado (via Ancine) abre mão de impostos e seleciona quais os filmes que podem receber recursos via incentivo.

Esse cenário fez com que as produções no Brasil começassem a ter outras características. Era necessário trazer o público de volta para os filmes produzidos no Brasil. Segundo Ismail XAVIER (2000, p.101), o cinema brasileiro teve muitas vezes na sua história um certo grau de dificuldade de comunicação com o público. Para tentar conquistar o público para a produção nacional foi necessário trabalhar de forma diferente do que acontecia até então, onde o financiamento da Embrafilme, por exemplo, deixava de exigir, nas bilheterias, um retorno financeiro significativo do filme.

A partir da chamada Retomada do cinema brasileiro, o setor privado insere-se no fomento do cinema. Era necessário que estes empresários tivessem um retorno em publicidade para os filmes que estavam financiando. O retorno em publicidade significava que os filmes patrocinados deveriam ser vistos pelo maior número possível de pessoas. Ao comentar a política de incentivos fiscais adotada pelas novas leis de incentivo, o diretor de cinema Sylvio BACK (apud NAGIB, 2002, p.87-88) critica a forma como é feito o financiamento.

Ou o governo faz um upgrade nessa idéia, que é excelente, a da renúncia fiscal a partir do imposto de renda, criando uma espécie de superfundo, reunindo o IR das pessoas físicas e jurídicas, ou o atual surto de produção não passará de um susto. Aliás o cinema brasileiro sempre sobreviveu à base de surtos. Sabíamos dessa camisa-de-força, dessa ilusão infanto­juvenil de que o empresário brasileiro teria ou tem sensibilidade e interesse em investir em cultura. Seu olhar é predatório, imediatista, excludente.

O olhar predatório e imediatista do empresário, de que Sylvio Back fala, prevê retorno financeiro em publicidade, para os filmes que financia, significa que os filmes precisam ser aceitos pelo maior número de pessoas. Os elementos descritos acima reforçam a necessidade de público, de plateia e faz com que o apelo dos filmes seja outro. Toda a intencionalidade está voltada para divertir e não mais para conscientizar. Essa situação faz com que os cineastas passem a produzir dentro de padrões externos, ou seja, há um apreço maior pela imagem e a busca para chegar a uma fotografia que agrade ao grande público, além dos roteiros que possuam características às quais o público já está habituado.

Não há mais aquele mesmo espaço para os efeitos reveladores de um cinematografia de ritmo lento e tão confiante no encontro prolongado, ruminado, entre câmara e mundo, em que as deficiências técnicas de um roteiro seriam compensadas pela força que estaria condensada em certos momentos diante de um rosto ou de um fato, ou diante de todo um contexto geográfico e humano inusitado, quando era o momento de um primeiro inventário do Brasil e quando ainda não estávamos saturados de imagens. (XAVIER, 2000, p.103)

A sequência do processo iniciado na retomada é o fortalecimento da indústria cinematográfica brasileira, com características de produção em grande escala. Os filmes sobre o sertão nordestino também vão demonstrar a passagem de um processo mais artístico, para as produções industriais. É o caso de Eu tu eles (2000, Vicente Amorim) e O Caminho das Nuvens (2003, Andrucha Waddington).

Em Eu tu eles pode-se fazer relação com o que a pesquisadora Ivana Bentes (2002) vai chamar de cosmética da fome. O termo faz referência ao manifesto de Glauber Rocha denominado de Estética da fome. A cosmética da fome está relacionada à favela e a estetização que filmes como Cidade de Deus (2002, Fernando Meireles) fazem dela. A cosmética é o embelezamento de imagens e cenários negativos do contexto social brasileiro que é a favela. A comparação também serve para Eu tu eles, em função da beleza das imagens de um sertão nordestino pobre e sem perspectiva.

No filme O Caminho das Nuvens é possível observar o que está sendo chamado aqui de pós-retomada. Momento em que alguns filmes nacionais passam a ter sucesso de público alcançando grandes bilheterias e quando entra no mercado a Globo Filmes.

2. DEPOIS DO RECOMEÇO

É possível encontrar algumas diferenças de estilo e estética de um filme como O Caminho das Nuvens que foi produzido no período que está sendo chamado de Pós-retomada. O cinema da Pós-retomada é denominado e delimitado a partir do filme Cidade de Deus (2002, Fernando Meireles). Sucesso de bilheteria, o filme significou, até setembro de 2003, um público de 3,6 milhões de espectadores4[2]. Em função das características de público, de produção e exibição, ele não pode mais ser colocado dentro da fase conhecida como Retomada. A entrada da Globo Filmes na produção e distribuição do mercado brasileiro de cinema teria também influenciado a passagem para a identificação da pós-retomada.

Após o deslumbramento do mercado - quando todo mundo fazia cinema, desde que conseguisse chegar até os ‘patrocinadores’ - a realidade mostrou-se dividida: de um lado o cinema que precisa sobreviver num mercado enxuto de investimentos da iniciativa privada, e do outro um cinema de sucesso e grandes bilheterias, ligado à Rede Globo. No meio cinematográfico só se fala dessa desigualdade, e já se chama o cinema sem a Globo de independente (FONSECA, 2003. P.26).

A indicação do filme Cidade de Deus para o Oscar, em quatro categorias, também pode ser um indicativo de que a produção de cinema no Brasil, depois de 2002, não pode mais ser chamada de Retomada. Há uma nova dimensão para a produção de filmes brasileiros. O crescimento da fatia de mercado nacional que os filmes brasileiros estão alcançando demonstra um pouco o momento vivido.

[O cinema no Brasil] Conquistou quantidade, ocupando 21,4% do mercado nacional em 2003, um número compatível com os principais países europeus, além de audiências que superaram 4 milhões de espectadores -caso de Carandiru, de Hector Babenco. Foi um recordista mas não um caso isolado. Em 2003, segundo levantamento do semanário Filme B, órgão representativo dos distribuidores e exibidores nacionais, mais filmes brasileiros superaram o marca dos 800.000 espectadores: foram sete nesse ano, contra dois em 2002 e três em 2001. (BARBOSA, 2004, p.1)

Nesse cenário do cinema num processo de produção bem mais comercial e industrial, chega às telas de cinema no Brasil O Caminho das Nuvens, de Vicente Amorin. O filme estreou em setembro de 2003 e foi co-produzido pela Globo Filmes. A empresa braço das Organizações Globo gerou polêmica dentro do mercado de produção de filmes, especialmente por trabalhar com medalhões da indústria e ter um ávido sistema de mídia.

Do momento em que Cacá Diegues, que trabalhou em parceria com a produtora tanto em Orfeu quanto em Deus é brasileiro, ganhou a capa do Segundo Caderno de “O Globo” para falar sobre a lógica da contrapartida social e novas regras de financiamento, virou, mexeu o nome da co-produtora braço cinematográfico do império Roberto Marinho é assunto de reflexão e de cobranças de uma postura da Agência Nacional do Cinema (Ancine). (FONSECA, 2003, p.27)

O produtor Luiz Carlos BARRETO (apud FONSECA, 2003, p.28) aponta números para falar da importância da participação da Globo Filmes no mercado cinematográfico: “Quando a Globo Filmes surgiu e entrou no mercado, o cinema brasileiro ocupava uma faixa de 4 a 5% do mercado brasileiro. Hoje, em 2003, os filmes brasileiros ocupam 25% do mercado e a tendência é fechar o ano na marca de 20 a 22% de ocupação do mercado.”

A partir do cenário apresentado, com a Globo Filmes se interessando e encampando algumas idéias, o filme O Caminho das Nuvens nasceu de uma história real que foi exibida pelo programa Fantástico, da TV Globo. A história apresenta a via-crúcis da família Ferreira que sai da Paraíba em direção ao Rio de Janeiro. No caminho, a mãe Rosa (Cláudia Abreu) e seus filhos cantam músicas de Roberto Carlos para receber alguns trocados. A intenção do grupo é chegar à capital carioca e encontrar emprego para Romão, o pai (Wagner Moura), mas a expectativa é de ter um salário de pelo menos mil reais por mês.

Mais uma vez o sertão e a seca são cenário para o filme. Algumas das abordagens são semelhantes às referências já feitas ao cinema da Retomada. O trabalho de imagem é parecido, os personagens são amarelados pela terra e pelo sol, mas o céu azul tem grandes nuvens brancas. É possível fazer comparações com o cinema mexicano, lembrando Waldemar Lima, o fotógrafo de Deus e o diabo na terra do sol (1964, Glauber Rocha), que fala de uma luz hollywoodiana para o sertão.

Quais seriam as mudanças observáveis nos filmes Eu tu eles e O Caminho das Nuvens? Uma mudança que já havia sido iniciada pelo cinema da Retomada, mas que fica mais evidente nesse terceiro momento: um certo adensamento no uso de outras linguagens, como a publicitária, a do videoclipe e da própria televisão invadindo as telas de cinema.

Alguns filmes estão aí para demonstrar que parte do cinema mais vital da Retomada tira seu vigor justamente da utilização criativa dessas novas linguagens, seja da publicidade, da tevê ou do videoclipe, e de sua incorporação na linguagem cinematográfica. No caso, para entendermos o que está se passando, devemos fazer uma cuidadosa distinção entre o que é utilização oportunista de uma linguagem de aceitação popular e sua incorporação criativa à gramática do cinema (ORICCHIO, 2003. p.228).

Não há, nesse aspecto levantado, a intenção de julgar a utilização de várias outras linguagens dentro do cinema, mas de tentar observar que a utilização dessas linguagens vai causar efeitos. Entre eles, pode-se citar que, o uso da linguagem televisiva facilita o entendimento para um público que já está acostumado com a narrativa televisiva. Por outro lado, a prática de utilização de outras linguagens, vai reforçar a lógica do lucro: com uma linguagem mais conhecida, um público maior pode ser atingido.

Ao que parece o entretenimento recebe uma atenção especial nos filmes que buscam grandes bilheteiras. O Caminho das Nuvens dá o necessário ritmo, contínuo, e muitas vezes estabelecendo mais relações com a linguagem do videoclipe do que normalmente se via até então.

Exemplo disso está na sequência inicial do filme onde o ritmo da música de abertura vai fornecer os cortes das cenas, quando o bebê está perdido e a câmera nervosa transpõe o sentimento de medo e desespero da mãe (Cláudia Abreu), em encontrar o filho, para o espectador que vive a angústia dos personagens. O filme trabalha com a câmera trêmula, que pode ser outra referência ao Cinema Novo, mais especificamente Terra em Transe (1967, Glauber Rocha). Mas a linguagem se aproxima da publicidade e do videoclipe. Outro aspecto é que como no filme mãe e filhos cantam músicas de Roberto Carlos para ganhar dinheiro, as sequências com as músicas são deixadas inteiras, com aspectos de um musical.

Além do videoclipe, em O Caminho das Nuvens, há elementos que acabam fazendo o cinema parecer com a televisão. A linguagem televisiva estabelece relação direta com o cinema. Um espectador que está acostumado a uma interpelação mais intimista, resultado desse interação com a televisão. “Essa interpelação direta, simuladora de um contato, tem conseqüências técnicas imediatas. A principal destas é que o close (que permite melhor equilíbrio entre imagem e som) tornou-se regra geral do enquadramento televisivo” (SODRÉ, 1977 p. 66). As sequências que utilizam close estão presentes especialmente na narrativa da telenovela. Não é difícil encontrar em O Caminho das Nuvens, assim como em Eu tu eles, cenas com um enquadramento televisivo, muito parecidas com as da telenovela, principalmente nos diálogos. Há muitos closes nos diálogos entre os personagens, em especial nas cenas mais dramáticas.

O uso da linguagem televisiva transportada para o cinema não é nova pois, pelo menos nos cinemas norte-americano e britânico, isso já acontece desde os anos 1950. “Esse fenômeno da padronização começou por volta de meados dos anos 1950, quando uma geração de cineastas americanos e britânicos, vindos da televisão, impôs à grande tela a simplicidade estilística dos folhetins, dos seriados, do gênero dramático ou dos programas de variedades da televisão” (RAMONET, 2002, p.59).

3. CINEMA E PUBLICIDADE

Pode-se dizer que os filmes que buscam grandes públicos oferecem informações estéticas mais conhecidas do espectador. No caso observado acima, está na linguagem de televisão, no videoclipe. Por outro lado, os filmes também procuram uma aproximação afetiva com espectador. Ao trabalhar com emoções é uma das formas de abordagem da publicidade. Ou seja, todos que convivem numa sociedade de consumo estão aptos a serem seduzidos por sua ideologia. “Ao analisar a propaganda, por conseguinte, é irracional esperar que os leitores decifrem anúncios como expressão factual da realidade. Na sua maioria, são muito pobres de conteúdo informativo e demasiado ricos em sugestões emotivas para serem lidos de forma literal” (VESTERGAARD, 1984, p.129).

A ligação entre publicidade/propaganda com cinema se dá também pela sugestão emotiva. No filme (O Caminho das Nuvens) há espaços para o devaneio e para o sonho dos personagens e, por sua vez, do espectador.

Massimo CANEVACCI (2001, p.55-56) aponta sobre a importância da publicidade no cotidiano do cidadão, é possível compreender o uso cada vez mais intensivo da linguagem publicitária e televisiva no cinema.

Foi calculado que um espectador ‘normal’ assiste, em média, a cento e vinte horas de publicidade por ano: pois bem essa quantidade de comunicação visual produz um duplo vínculo: com efeito a mesma fonte de comunicação emite determinados tipos de mensagem que para o receptor não podem deixar de parecer contraditórias.

É exatamente por esses motivos, citados por Massimo Canevacci (2001), que os espectadores estão extremamente familiarizados com a linguagem da publicidade. Não há necessidade de referências diretas para uma publicidade específica, mas que o formato dos filmes seja parecido. Ou seja, não foi detectado diretamente na narrativa “uma citação fílmica: um fragmento de filme (nesse caso da publicidade), citado em outro filme” (AUMONT, 1995, P.58). Mesmo assim, a linguagem publicitária está presente em filmes como Eu tu eles e especialmente em O Caminho das Nuvens, quando envolve e emociona o espectador e oferece os afetos simulados, conforme Canevacci (2001).

Ignacio Ramonet denuncia a mistura entre cinema e publicidade, estabelecendo que em muitos aspectos a publicidade se utiliza da linguagem cinematográfica com grandes planos, e campo e contracampo são seu alfabeto e sua gramática. No caso do cinema, há uma chamada uniformização da linguagem. “Uma tal mistura [entre cinema e publicidade] confirma a uniformização da linguagem cinematográfica. Como observa o semiólogo Jean-Paul Simon: ‘filmes publicitários e filmes comuns aparecem como duas modalidades do discurso de mercado; os últimos vendem o modo de vida sem precisar os produtos e os filmes publicitários completam” (RAMONET, 2002 p.63).

Novamente é possível fazer uma analogia com a cosmética da fome de Ivana Bentes. Apesar de tratar do sertão e da favela, a idéia talvez seja mostrar melhor a diferença e não a inferioridade. É mesmo necessário evidenciar as diferenças do sertão, da favela, em relação ao mundo urbano. Expor mesmo que há diferenças, ao representar os mundos, haveria uma tentativa de ser mais democrático, a partir do momento que se sente representada, a diferença não pode mais se considerar excluída.

O caminho percorrido até aqui demonstra então que o imaginário5[3] mudou de Vidas Secas (1963, Nelson Pereira dos Santos), Eu tu eles e O Caminho das Nuvens. No primeiro, há a relação com a sensação insuportável de conviver com os personagens nascidos da rejeição da terra. Vidas Secas trabalha com a sensação mas de forma diversa, ou busca um efeito de ser incomodativo, não quer deixar ninguém confortável na situação apresentada.

A partir de Eu tu eles o processo da sensação percorre outras possibilidades. Na verdade, busca-se apenas o entretenimento, o espetáculo que aguça os sentidos, mas que não permite reflexão. O imaginário criado a partir disso é que tudo não passa de ficção, inclusive a própria realidade, um ‘jardim exótico’ que pode ser visitado, mas que ao final pode ser lembrado como uma visita aos animais do zoológico.

A edição em linguagem de videoclipe pode estar expressa com maior ênfase em O Caminho das Nuvens. Mais uma vez a tática de estabelecer um embelezamento da imagem é utilizada, e esta se aproxima ainda mais da tradição dos roteiros norte-americanos. No caso de O Caminho das Nuvens, a semelhança com os outros dois filmes [Vidas Secas e Eu tu eles] está no cenário, o sertão desta vez abandonado, e na história de uma família, gente do povo que sai em busca de uma vida melhor longe da seca e da fome.

A lógica está voltada para distrair e para projetar o desejo de uma ascensão social rápida, uma das estratégias da própria publicidade. “Os spots vendem sonho, propõem atalhos simbólicos para uma rápida ascensão social. Divulgam antes de tudo símbolos e estabelecem um culto do objeto, não pelos serviços que este pode prestar, mas pela imagem que ele permite que os consumidores façam de si mesmos” (RAMONET, 2002, p.70).

4. HISTORICIDADE

Os dois filmes observados aqui (Eu tu eles e O Caminho das Nuvens) sugerem estar fora de um contexto. Quer dizer, não há uma preocupação com a identificação histórica (tempo e espaço), e com isso, perdem-se elementos que poderiam fazer mais ou menos sentido. O fato de Darlene (personagem principal do filme Eu tu eles) poder estar em qualquer lugar do mundo ou em qualquer época, pode parecer interessante.

Nesse sentido, não há uma preocupação demonstrar o tempo e o espaço onde as histórias se situam, elas simplesmente existem. Isso reforça a noção de que na sociedade do espetáculo o entretenimento existe com o intuito de passar o tempo e nada mais. Há uma necessidade de destacar que os próprios produtores de Eu tu eles estabeleceram essa intenção de não situá-lo no tempo e no espaço. “O realizador de Eu tu eles tem insistido na tese da universalidade da história, que poderia se passar em qualquer lugar do mundo. Verdade, mas acho que a força de particular vem do fato de acontecer justamente no sertão. No Brasil profundo, associado a certa pureza, mas também ao conservadorismo moral, a história de Darlene tem muito mais efeito do que se tudo se passasse em Ipanema, por exemplo” (ORICCHIO, 2003, p.139).

…certo momento do capitalismo e da evolução da técnica que organiza a vida cotidiana engendra ou, pelo menos, favorece um estilo de representação que se mostra capaz de dar conta da experiência histórica; quando as coisa mudam, quando a ordem econômica e o aparato técnico vão dando cada vez menos sinais visíveis de sua lógica, é necessário outra forma de arte para falar desse mundo e de suas determinações, seu sentido, sua maneira de condicionar, moldar, excluir. (XAVIER, 2000, p.108)

Afinal, talvez estejamos passando da “dialética da malandragem” para a “dialética da marginalidade”, conforme João Cezar de Castro ROCHA (2004, p.5), que seria a passagem do personagem Zé do Burro do filme O Pagador de Promessas (1962, Ancelmo Duarte) ao de Zé Pequeno de Cidade de Deus. Essa passagem se caracteriza pelas questões de um ser camponês excluído e o outro favelado e excluído. Um é ingênuo, o outro consegue o que quer através da força.

Segundo ROCHA, há uma infantilização do foco narrativo e dos personagens, dentro de sua análise da série Cidade dos Homens. Não é exatamente o que acontece em Eu tu eles e O Caminho das Nuvens, mas sob certos aspectos se observa a idealização e a descontextualização levantadas por ROCHA (2004, p.7). “Desse modo, os problemas associados ao narcotráfico podem ser deixados à margem e, assim, reencontramos a “humanidade” das relações “mesmo” numa favela. Tal infantilização termina por criar uma favela abstrata, totalmente descontextualizada, como se sua vista privilegiada não passasse de um elemento de valorização imobiliária e todos os barracos fossem apartamentos de cobertura.”

E de certa forma é o que acontece nos filmes aqui observados. O sertão e a seca acabam descontextualizados e idealizados, proporcionando imaginários figurativos sem qualquer vínculo com questões sociais, políticas e econômicas que poderiam ser indicativos daquela condição apresentada em Eu tu eles e O Caminho das Nuvens. A migração também volta a ter em O Caminho das Nuvens uma preocupação, situada dentro de uma certa alegoria.

Se a migração é um motivo emblemático da ficção brasileira preocupada com questões de identidade, o cinema contemporâneo afasta da história da família retirante ou mesmo da figura do interiorano inocente que chega na cidade. Vale mais o motivo do encontro inesperado ou singular, o dado da migração muda de sentido. De um lado, presta-se mais atenção aos traços particulares das personagens postas em confronto. Cada qual vale mais pelo que, de idiossincrático, intensifica seu charme e se acrescenta ao conflito central sem ser necessário a ele. (XAVIER, 2000, p.116)

Sem contextualização, o sertão nordestino deixa de ser um problema social e econômico e não passa de cenário com um eterno céu azul. Em Vidas Secas o sertão nordestino, de Palmeira dos Índios é personagem, atua como um vilão expulsando a família de Fabiano, empurrando para a migração. Nos outros filmes é cenário mesmo, que forma uma imagem estetizada, colorida de azul e marrom intensos.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BENTES, Ivana. Terra de fome e sonho. Labcom, 2002. Disponível em Acesso em 07/03/03.
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6. Filmografia

Caminho das Nuvens, O. Vicente Amorim. Distribuição: Buena Vista International. Produção: Lucy & Luiz Carlos Barreto. Co-Produção: Miravista, Globo Filmes, Riofilme, Megacolor, Quanta e Lereby Produções. Brasil: 2003.

Deus e o diabo na terra do sol. Glauber Rocha. Distribuição e Produção: Copacabana Filmes. Brasil: 1964.

Eu tu eles. Andrucha Waddington Distribuição: Sony Pictures Classics Produção: Flávio R. Tambellini, Andrucha Waddington, Leonardo Monteiro de Barros e Pedro Buarque de Hollanda. Brasil: 2000.

Pagador de promessas, O. Ancelmo Duarte. Distribuição: Lionex Films e Embrafilme. Brasil: 1962.

Terra em transe. Glauber Rocha. Distribuição: Difilm. Produtoras: Mapa filmes e Difilm. Brasil, 1967.

Vidas Secas. Nelson Pereira dos Santos Distribuição: Sino Filmes, Riofilme e Sagres Vídeo. Produção: Luis Carlos Barreto, Herbert Richers Nelson Pereira dos Santos e Danilo Trelles. Brasil: 1963.


[1] O Decreto Nº 4.456, de 4 de novembro de 2002 passa as atribuições do Ministério da Cultura à Ancine.

[2] Dados da Revista de Cinema, de setembro de 2003.

[3] Imaginário aqui conceituado como uma imagem mental produzida a partir da reunião de referências de imagens, experiências pessoais e projeções do espectador.

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