quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Artigo: A estética do lixo do bandido Sganzerla

por Carim Azeddine
Extraído de http://www.contracampo.com.br/58/bandidodaluzvermelha.htm
Publicado originalmente na Revista Contracampo Edição 58


Ao realizar com vinte e poucos anos O Bandido da Luz Vermelha, Sganzerla não apenas surge com um filme totalmente novo e genial no cenário algo institucionalizado em que vai se tornando o Cinema Novo. Mais que isso, seu primeiro filme vem apontar para um outro cinema, fatalmente batizado de marginal, descompromissado com construções narrativas e psicológicas. Um cinema do instante, ao mesmo tempo performático e reflexivo. E não surpreende que, antenado com a novidade, Glauber tenha também enveredado por essas trilhas, ao filmar Câncer. Apesar da fidelidade aos amigos, sua sensibilidade artística estava mais próxima do experimentalismo dos marginais Sganzerla e Bressane. O resto da sua trajetória solitária o confirmaria cada vez mais.

Ainda hoje, ver ou rever O Bandido da Luz Vermelha dá a impressão de que se está diante de um marco, um divisor de águas. A diferença com os outros filmes contemporâneos, flagrante, ainda opera com força. O humor inteligente e debochado, escrache de um filme que não quer se levar a sério, o complexo tecido de referências, citações, gigantesca colagem de tudo que rodeava um jovem brasileiro urbano em 1968, a montagem complexa, virtuosística, quase experimental, o esvaziamento psicológico e narrativo da trama ainda hoje contrastam radicalmente com todo o cinema que então se fazia (e se faz) no Brasil. Um filme que aponta nitidamente para o que viria logo em seguida: a radicalidade criativa do chamado cinema marginal.

Ver ou rever O Bandido da Luz Vermelha é uma curiosa experiência. Um mergulho num filme visceralmente identificado à sua época e, talvez por isso mesmo, ainda atual, nada tendo perdido do seu poder. Atemporal, nunca datado. Eterna lição de cinema.

O Bandido da Luz Vermelha é um intenso diálogo com o cinema, com o dado cultural em geral (quadrinhos, tv, música popular), com o Brasil em época de crise. As convulsões do país não se manifestam numa transposição metafórica, como no belo e lírico Terra em Transe. O sintoma em lugar do símbolo. Um bandido em lugar de um poeta. Cada elemento do filme diz essa convulsão, que não é só política, é total, pois que o político nada mais é que o viver-junto. O próprio filme como produto de um país pobre, periférico, em crise. Depois da estética da fome, a estética do lixo.

Pierrot le fou em São Paulo não mais se suicida com dinamite num cenário idílico. Morre eletrocutado num lixão. Ao multiplicar as referências ao cinema de Godard, Sganzerla faz mais que uma deglutição carnavalesca, inversão paródica de um cinema de primeiro mundo, esteticamente ambicioso. Para além da erudições de cinéfilo e das marcas de filiação, trava um diálogo sobre as condições de se fazer arte num país periférico. Vivendo num país semi-industrial do terceiro mundo, apenas nos resta fazer cinema com os restos do primeiro. Um cinema da gambiarra, do gatilho, da recuperação.

O Bandido da Luz Vermelha decompõe a seqüência do suicídio de Pierrot, numa análise visual aguçada e certeira, para deslocá-la estruturalmente, fundamentalmente, para a realidade do país/filme. Um país em crise pede um filme em crise. Crise da representação, impossibilidade de, sendo periferia, fazer cinema de primeiro mundo. Imagens das mais diversas natureza entram em conflito, numa montagem heterogênea, colagem dos mais diversos objetos culturais. A temporalidade do filme de Godard, contemplativa e melancólica, busca do absoluto na arte e na vida despedaça-se, atomiza-se numa sucessão de instantes, um presente a gaguejar sem fim, infernal. Não há possibilidade sequer de avançar, evoluir ao longo da linha do tempo, quanto mais aspirar ao eterno. O bandido, manifestando a crise existencial de ser brasileiro quando o mar não tá pra peixe, grita, engole tinta, tenta se matar no mar depois de borrifar-se com detefon, e termina por dizer à câmera: "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba."

É o fim das ilusões. O poeta de Terra em Transe procura pelo erro cometido. Talvez ainda acredite poder salvar seus sonhos. O bandido já não os tem. Já não pensa em construir; autodestrói-se. Estética do lixo não é estética da fome.

Sganzerla escolhe uma estratégia radicalmente diferente, diria até oposta, da do cinema novo. A metalinguagem, o discurso que se apresenta enquanto discurso, sem artifícios, destina-se a outro público. O filme fala de igual para igual com o espectador. Quem tem os dados para enxergar a mensagem que o faça e azar de quem não tem. O trato é com a inteligência. Não se trata mais de conscientização, ilusória proposta do cinema novo, nem de empatia, talvez seu verdadeiro veículo. Sganzerla, conscientemente, está falando para um público de classe média culto, seu semelhante. Aponta para o fim da ilusão de um cinema de transformação social, tabu cinemanovista até então incólume.

Mais que isso, a estratégia da metalinguagem põe em cheque a sagrada ontologia da imagem. Não mais acreditar numa representação unívoca da realidade. Referir-se indiretamente ao mundo. Referir-se a outras referências. O uso da paródia, da colagem, da citação, ou seja, a metalinguagem, privilegia a natureza discursiva da obra, explicitando-a como construção conceitual. Assume-se como ponto de vista, a ser confrontado com o do espectador. Na sua relação direta ao mundo, o cinema novo não questiona a imagem. Todo o seu discurso alicerça-se sobre esta verdade última. "Você vai me desculpar se isso que eu tô dizendo não seja verdade mas uma simples mentira", afirma o bandido. Ao instaurar uma relação direta ao cinema e não mais ao mundo, o filme de Sganzerla pede outra postura da parte do espectador. O próprio filme torna-se instável, múltiplo, ambíguo.

Questionar o poder do discurso da arte leva a questionar a própria arte e o lugar do artista. Não mais a certeza da nobre missão política do artista engajado. Não mais a certeza do poder do discurso cinematográfico. Talvez esteja aí a razão profunda do conflito entre marginais e cinemanovistas.

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