sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Crítica: A Infância de Ivan (Andrei Tarkovski, 1962)

por Gilberto Sila Jr.
Extraído de http://www.contracampo.com.br/61/infanciadeivan.htm

Na virada entre as décadas de 1950 e 60, diversas cinematografias começaram a ganhar prêmios em festivais e espaço no mercado internacional. Limitado pelas políticas culturais estalinistas, o cinema russo chama a atenção com dramas passados na segunda guerra, vistos então como líricos ou poéticos - Balada do Soldado e Quando Voam as Cegonhas os mais conhecidos – que o tempo mostrou serem demasiado piegas e submissos aos ditames do "realismo socialista". Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1961 e escrito por Vladmir Bogomolov a partir de um conto de sua autoria, A Infância de Ivan poderia ter sido apenas mais um desses dramas, não houvesse o projeto sido entregue a um jovem cineasta que faria então sua estréia em longa-metragem: Andrei Tarkovski. Este havia chamado a atenção com o média O Rolo Compressor e o Violino e assume o comando com o projeto já em andamento. A Infância de Ivan, portanto, não é um trabalho de todo autoral, mas Tarkovski já começa a impor sua marca e estilo pessoais, que ficariam mais evidentes a partir do segundo longa, Andrei Rublev.

As primeiras imagens, com Ivan em meio à floresta e recebido por um sorriso materno, que dão uma falsa idéia de que o filme seria mais um espetáculo de lirismo sentimental, são bruscamente interrompidas por explosões, que acordam o garoto de seu sonho. Refugiado num moinho, Ivan foge dos alemães atravessando um rio. Quando ele chega a um posto do exército russo, vemos que o rosto demasiado sério e embrutecido do garoto de doze anos, um olheiro do exército russo, contrasta com o do Ivan que antes fora visto interagindo em paz com a natureza. Em poucos momentos está definida a linha central do filme, que alterna a dura realidade da guerra com os sonhos de Ivan, evocativos de um passado de pureza, antes de sua família ter sido massacrada pelos nazistas. Essa visão da guerra através dos olhos de uma criança ou jovem que dela participa de forma ativa mostra-se praticamente uma tradição no cinema russo, vindo a render posteriormente outros ótimos filmes como Vá e Veja ou Não se Mova, Morra, Ressuscite.

Aos poucos vamos percebendo que Ivan e a guerra são indissociáveis. Sua figura frágil contrasta com sua postura dura e autoritária, até mesmo para com oficiais superiores, que desejam tirá-lo das linhas de combate e enviá-lo a uma escola militar. Ele foge, como antes houvera fugido do orfanato, insistindo em ser enviado a uma nova missão. Mesmo imerso em desejos de vingança e completamente ciente de seu destino, Ivan consegue construir entre as tropas um substituto para o meio familiar (principalmente com o tenente Galtsev e o capitão Kholin, que o acompanham em missão) e cria, a seu modo, com maturidade e sem inocência, um espaço lúdico no campo de batalha. A pureza fica para os sonhos. Essa maturidade de Ivan, como também dos protagonistas dos outros títulos citados no parágrafo acima, se opõe sobremaneira à visão de personagens de filmes americanos que vivenciam a guerra na infância, caso de Império do Sol de Spielberg, onde o protagonista segue idealizando a guerra em sua cabeça e vendo os aviões como imensos brinquedos.

É, portanto, essa visão banhada em desilusão que distingue A Infância de Ivan de seus demais congêneres no cinema russo da época. Isso somado ao estilo, então nascente, que Tarkovski acaba por impor. Já estão presentes elementos característicos de obras posteriores: uma complexa interação homem-natureza, vista em vários momentos de Andrei Rublev; um mergulho, ainda que incipiente, no processo mental da personagem, que viria a ser radicalizado em Solaris; o retorno onírico aos idílios do passado, presentes com força em O Espelho; ou a visão da margem oposta do rio, ocupada pelos alemães, como um desconhecido a ser explorado, ponto de partida de Stalker. Tarkovski também já demonstra seu gosto e talento para conceber imagens elaboradas com um virtuosismo que jamais se aparenta excessivo perante o conjunto. Como, por exemplo, na genial seqüência em que Kholin flerta com Masha na floresta, coroada por um dos mais belos planos jamais filmados, quando ele rouba um beijo da moça segurando-a sobre uma vala com as pernas entreabertas.

Mesmo deixando sua marca principalmente nas cenas de sonho – e, entre todas, aquela com os cavalos e a carroça de maçãs se mostra a mais impressionante –, Tarkovski parece estar também inteiramente à vontade nas seqüências realistas, já apresentando, neste primeiro longa, completo domínio da narrativa. E o momento da travessia, próximo ao final, quando Kholin e Galtsev deixam Ivan em território nazista e circundam o rio para resgatar dois cadáveres, repleta de tensão e suspense, deixa bem claro que caso Tarkovski viesse a se dedicar posteriormente a fitas de gêneros, como ação ou thriller, seria igualmente bem sucedido. Mas, para sorte do cinema, ele preferiu trilhar seu caminho próprio, forjando a partir de então uma trajetória ímpar que o situaria entre os maiores cineastas da história.

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