sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Crítica 2: Bang Bang (Andrea Tonacci, 1971)


Se fosse lançado hoje, Bang Bang dificilmente se adaptaria às demandas dos multiplexes. E não porque brasileiro não gosta de cinema brasileiro — qual brasileiro, qual cinema? Mas porque seu significado não pode ser instantaneamente consumível. Sem circulação desvairada de imagens e sem as facilidades de artifícios e clichês do cinemão, não dá pra ver de relance. Este não é “fast-food”.

Primeiro longa de Andrea Tonacci, reúne todos os elementos para ser tachado de pretensioso. Desestrutura a ordem narrativa, não tem enredo coerente, desconstrói continuamente seus pressupostos cinematográficos. Signo de uma arte profundamente consciente de si mesma, como no primeiro Godard, Bang Bang interroga as premissas implícitas com que o abordamos, e brinca com os nossos hábitos de percepção. Daí os personagens portarem-se explicitamente como atores e a câmera comparecer na ação. São vários episódios autônomos, sempre com ação absurda e diálogos insólitos. Há planos elaborados de interiores, e longos travellings em ruas e estradas. Os personagens entre o grotesco e o icônico incluem o cantor boçal (Paulo César Pereo), o mágico, a musa lânguida saída do cinema mudo, três metralhas absolutamente indefectíveis: um cego armado de revólver, um galã cafajeste, um travesti comilão. O áudio imprevisível freqüentemente contrapõe-se à imagem.

Então, é disso que se trata o filme? dotar-nos de consciência crítica diante do material fílmico e desacreditar as operações de ilusão? Seria essa a razão da presença do mágico, abduzido de Meliés? uma violência exasperada contra o código? Se assim fosse, seria justo o adjetivo “pretensioso”. Está-se em 1971 e pouca a pertinência para repetir a década anterior, na sua obsessão nuvelevaguesca em afirmar um cinema moderno e autônomo. Com menos razão ainda, se se tratasse de mero exercício de estilo por Tonacci, em academismo ou autorismo bobos. Toda poética autofagocitante padece de sério defeito, que é pressupor a imersão do espectador na história dessa arte, e assim tê-lo por adestrado em seus métodos e técnicas. Há quem considere o autoquestionamento permanente o motor e a essência da arte moderna, do impressionismo à Pop Art. Tradição moderna, traição moderna. No entanto, se, por um lado, não se deve subestimar o público; por outro, não há razão de considerá-lo um cinéfilo selvagem que viu todos os filmes do universo e perscruta a compreensão total da arte. Além disso, um cinema que celebra a si mesmo já é caduco de nascença. E um filme para cineastas, um luxo decadente. Não.

A força de Bang Bang reside mais no jogo livre de dissolução de significados do que na autoconsciência crítica. Mais numa erótica fílmica que escancara a obra e se excita por entre seus signos, do que na ruptura de convenções e códigos. Assim, essencialmente anárquico, o longa tem afinidades com o extremo rigor formal de O Bandido da Luz Vermelha (Sganzerla, 68), na segurança da direção e na recombinação de gêneros. Ao mesmo tempo em que se filia ao estado delirante de Ritual de Sádicos (Mojica, 69), na demência dos personagens e suas frases desconexas. Podem-se tirar inúmeras interpretações do mosaico polissêmico de Bang Bang. Veja-se a palestra de Ismail Xavier, que vai junto do DVD. Multiplica sentidos das cenas mais desconcertantes e demostra como a irresignação de Bang Bang responde à logica do cinema meramente reprodutor, impotente para fecundar seu tempo. Antes por admiração que preguiça, faço remissão às notas do crítico. Ali, ao invés de decifrar charadas ocultas, o que seria simbolismo decrépito, ele arrisca linhas interpretativas e constrói vis-a-vis com o autor a potência do filme.

Uma obra aberta e desafiadora.

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