sábado, 28 de abril de 2012

Crítica: A agonia romena dos últimos dias de Ceausescu: À Leste de Bucareste (Corneliu Porumboiu, 2006)

por Carlos Fernandes


A grande surpresa no mundo cinematográfico na segunda metade da última década foi, sem dúvida, o Cinema Romeno, que outrora desconhecido, passou a ser uma das mais revigorantes forças do cinema europeu do século XXI. Os olhos de todos voltaram-se para o cinema desse pequeno país do Leste Europeu a partir de 2005, quando o longa A Morte do Sr. Lazarescu (Cristi Puiu, 2005) venceu a mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes em 2005. No ano seguinte, foi a vez de À Leste de Bucareste (Corneliu Porumboiu, 2006) ganhar a Câmara de Ouro desse mesmo festival e em 2007, 4 meses, 3 semanas, 2 dias  (Cristian Mungiu, 2007) levar a Palma de Ouro, o prêmio máximo de Cannes. Desde então, o cinema romeno passou a ser um grande destaque no mundo cinematográfico e diversos outros filmes foram aclamados pela crítica internacional, entre eles, Como festejei o fim do mundo (Catalin Mitulescu, 2007), California Dreaming (Cristian Nemescu, 2007), Polícia, Adjetivo (Corneliu Porumboiu, 2009), Contos da era dourada (Ioana Uricaru, Hanno Höffer, Räzvam Márculescu, Constantin Popescu, Cristian Mungiu, 2009) e Se eu quiser assobiar, eu assobio (Florin Serban, 2010).

Uma das coisas que mais chama atenção nessa recente safra do cinema romeno, além do uso de uma estética realista e minimalista e da recorrente presença de um afiado humor negro, lembrando muitas vezes a obra do cineasta sérvio Emir Kusturica, é a presença quase que constante do ditador romeno Nicolae Ceausescu e dos últimos momentos de seu governo até a sua queda. Se ele e os últimos dias de sua ditadura não são o tema principal, como é o caso de À Leste de Bucareste, Como festejei o fim do mundo e Contos da Era Dourada, eles aparecem como plano de fundo, em silêncio, mas plenamente ativos na cabeça e nas ações dos seus personagens, sufocando-os, como em 4 meses, 3 semanas, 2 dias (o comércio ilegal de cigarros, a proibição do aborto, a necessidade constante de se andar com um documento de identidade) e Polícia, Adjetivo (a força da polícia romena, a crença de que a lei mudará em breve). Mas, de onde vem essa obsessão pelos últimos dias de Ceausescu?

Nicolae Ceausescu (1918-1989), líder então do Partido Comunista Romeno, que apesar de repudiar Stalin e adotar uma política de enfrentamento antirrussa, presidiu a Romênia de 1965-1989 com mão de ferro e utilizando-se da propaganda de culto à sua personalidade, criou uma tirania rígida e feroz, onde a Romênia era essencialmente um Estado policial, dada a onipresença de sua polícia secreta (Securitate). Além disso, as políticas econômicas e de desenvolvimento de Ceausescu, muitas vezes megalomaníacas, promoveram uma grave escassez de comida, medicamentos e energia, levando à pobreza a população. A reclusão desse regime era tanta que em Como festejei o fim do mundo, o “fim do mundo” é uma clara alusão ao fim do regime de Ceausescu.

No ano de 1989, movimentos de erradicação ao comunismo vinham de Berlim, onde o muro havia caído em novembro, no sentido do Leste Europeu. Em 17 de dezembro, na cidade romena de Timisoara, manifestantes foram recebidos a tiro pela Securitate, o que provocou uma reação da população em diversas cidades. Cinco dias depois, esse movimento chegaria à capital, Bucareste, e no mesmo dia Ceausescu e sua esposa seriam presos. Por isso, dia 22 de dezembro é considerada a data da chamada Revolução Romena. No dia 25, Ceausescu e sua esposa foram julgados por um tribunal irregular e condenatos à morte por fuzilamento. São executado  no mesmo dia e o fuzilamento é exibido pela televisão romena (e as imagens estão disponíveis no Youtube). A Romênia foi um dos últimos países do Leste Europeu a derrubar o regime socialista e foi o único que teve um fim violento para o seu regime. Entretanto, passados mais do que 20 anos da Revolução Romena, inúmeras questões ainda permanecem sem resposta e ainda geram controvérsias. Pouco se sabe sobre a real atuação dos líderes da Revolução e suas verdadeiras intenções já que muitos deles ainda pertenciam ao velho regime. Questiona-se ainda a razão de alguns fatos terem ocorrido e se tudo não foi apenas uma armação para se tirar vantagem do caos e encenar um golpe.  Nesse ínterim, indaga-se se realmente o levante popular houve importância ou foi apenas um elemento que acabou servindo de joguete para essa encenação. É aí que entra Corneliu Porumboiu e seu magnífico À Leste de Bucareste.

Podemos dividir À Leste de Bucareste em duas partes, cada qual representando uma metade do filme. Na primeira metade, vemos o cotidiano dos três personagens centrais do filme em uma pequena cidade do interior da Romênia: Virgil Jderescu, um egocêntrico jornalista da televisão local; Emanoil Piscoci, um velho senhor famoso por se vestir de Papai Noel no Natal e; Tiberiu Manescu, um professor de história alcoólatra. E na segunda metade, temos a exibição do programa de Jderescu, que convidou Piscoci e Manescu para debaterem em seu programa comemorativo dos 16 anos da Revolução Romena, se naquela cidade houve ou não a Revolução. E é aí que o filme carrega todo o seu brilhantismo. Por quarenta minutos, temos apenas uma única cena que é a exibição do programa de Jderescu, onde Manescu conta sobre como foi à praça da cidade e iniciou ali a revolução, para logo depois ser desmentido por um grande número de pessoas ao vivo na televisão, deixando Jderescu totalmente sem graça. E nós ficamos presos à tela, pela extrema comicidade da cena e pelo trabalho brilhante dos atores Mircea Andreescu (Piscoci), Teodor Corban (Jderescu) e Ion Sapdaru (Manescu). E utilizando-se do escracho, Porumboiu faz daquela pequena cidade um símbolo para toda a Romênia, mostra ao mundo as recentes controvérsias históricas romenas e convida brilhantemente o povo romeno a se lembrar daquela revolução para finalmente compreendê-la e usá-la para se construir um futuro melhor, como o próprio Jderescu propõe em seu programa. Além disso, Porumboiu critica e ameniza o povo romeno. Se por um lado, ele demonstra que a população talvez não tivesse a real dimensão de tudo aquilo (dado pela fala de Piscoci “fui à praça para mostrar à minha esposa que eu podia ser um herói”), por outro ele argumenta que a nova geração (os alunos de Manescu) não se importa com a história da Romênia, já que preferem conhecer mais a Revolução Francesa que o Império Otomano, o qual a Romênia fez parte. Por fim, na primeira metade do filme, Porumboiu ainda nos faz pensar se realmente houve uma revolução propriamente dita na Romênia já que muitas coisas permaneciam iguais há 16 anos: mesmo estando em 2005 o professor ainda tinha que retirar o seu pagamento na escola, a rede de televisão no qual Jderescu é dono é uma cópia idêntica das televisões estatais dos regimes socialistas da Cortina de Ferro, além da própria arquitetura da cidade, que não parece ter mudado em nada nos últimos 30 anos. Além disso, Porumboiu dá sinais que a transição para o capitalismo e globalização tem sido difícil para o povo (tema mais explorado em A Morte do Sr. Lazarescu), é o comerciante chinês sendo ofendido, é a banda da televisão tocando pateticamente uma música latina.

A Romênia fez do seu cinema recente um divã para as suas questões históricas. À Leste de Bucareste é a sessão de psicanálise que mergulha mais profundamente em suas agonias. Entretanto, sua mensagem final é bastante positiva, com a esperança de dias melhores à Romênia com o acender das luzes, com a neve que volta a cair depois de tanto tempo e com a frase “Pacífica e bela, é tudo o que eu lembro da revolução”.

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