Extraído de http://www.cinereporter.com.br/dvd/liberdade-e-azul-a/
Não existe dor maior que um ser humano pode sentir do que perder um filho. Não se trata de especulação, mas de um fato concreto; quem tem filho sabe que o simples pensamento sobre a possibilidade de nunca mais vê-lo já é capaz de causar arrepios. O que dirá, então, de perder não apenas um filho, mas também o marido, durante um acidente de automóvel absolutamente estúpido e banal? É isso o que acontece com Julie (Juliette Binoche), logo no início de “A Liberdade É Azul”, o belo filme de Krzysztof Kieslowski que abre a famosa Trilogia das Cores, composta também por “A Igualdade É Branca” e “A Fraternidade É Vermelha”.
A escolha do tema, em si, já é de uma ousadia quase herética do diretor. Quem mais pensaria em associar um sentimento aparentemente tão positivo e promissor, como a liberdade, a um acontecimento tão doloroso como a morte das duas pessoas que mais se ama? A abordagem do tema é, como quase todo o cinema de Kieslowski, surpreendente e inusitada, mas também intensa, delicada e sobretudo humana, muito humana. A lição que o filme nos dá – e a obra do cineasta polonês está repleta de lições, ainda que “ensinadas” sem nenhum cacoete didático – é simples e até banal, mas certamente verdadeira: o destino pode sortear as pessoas de muitas formas, inclusive com muita dor, e não há o que fazer a não ser viver cada situação que se apresenta com intensidade e honestidade.
Na ótica de Kieslowski, a morte da filha e do marido liberta Julie. Há nessa afirmação uma crítica sutil à instituição do casamento e à família. As duas coisas funcionam, quando analisadas sob esse ângulo, como amarras sociais; são hábitos culturais que estão profundamente arraigados no homem, talvez para combater a solidão que nos acompanha a vida inteira. De qualquer forma, a experiência de Julie é absolutamente radical. Após construir sua vida ao redor de dois indivíduos profundamente amados, ela vê de repente tudo desabar por causa de um vazamento no sistema de freios do carro novinho da família. Uma estupidez possível.
A dor dela é palpável; em certos momentos Julie pára sufocada, com dificuldade até para respirar. Mas é uma reação muda, pois ela não consegue chorar (“eu choro pela senhora”, diz em certo momento a criada da família, em cena belíssima). Não consegue nem mesmo se suicidar; tenta engolir um vidro inteiro de pílulas, ainda no hospital, mas não tem coragem. A cena é emocionante, e explica perfeitamente a radical decisão seguinte da personagem, em torno da qual todo o filme será organizado: Julie decide cortar relações com a vida, cometer uma espécie de suicídio a longo prazo. Doa os móveis, queima as lembranças do marido e da filha, abandona a casa e os amigos, deixa de trabalhar. Aluga um pequeno apartamento em Paris e decide esperar a morte chegar. Só que mesmo na vida mais acética, como mostra Kieslowski, o sentimento – aquilo que nos faz humanos – dá um jeito de brotar.
Um detalhe interessante do filme é o visual requintado, bem diferente do trabalho normal do diretor, que é mais despojado. A fotografia de Slavomir Idziak carrega nos tons azulados e capricha nas composições, algo incomum na filmografia do diretor; um bom exemplo é a tomada, logo no início, que mostra o vazamento no freio do carro em primeiro plano, com a filha de Julie indo fazer xixi na beira da estrada, ao fundo. As cenas com Julie na piscina, uma imensidão azul com iluminação fluorescente, traduzem perfeitamente a protagonista: gelada, triste. Vale lembrar que a palavra “blue”, em inglês, significa tanto “azul” quanto “sentimento de tristeza”. A escolha da história de Julie para ilustrar o tema da liberdade, bem como a cor associada ao sentimento, foram perfeitas.
Outro marco importante do filme realizado através de detalhes estéticos é a utilização da música de Zbigniew Preisner, um colaborador constante. Cabe aqui uma informação importante: o marido de Julie era um maestro famoso e compunha uma sinfonia para ser executada na cerimônia de unificação da Europa, trabalho que fica incompleto porque a mulher decide destruir as partituras. Mas o trecho mais emocionante da sinfonia fica gravado na cabeça dela, e é executado todas as vezes em que as memórias da família afloram; nesses momentos, a tela fica negra, como se a personagem sofresse um blackout emocional. Ou talvez Kieslowski quisesse preservar a intimidade de Julie naquele momento de dor suprema. As duas soluções são válidas, e muito bonitas.
“A Liberdade É Azul” é mais triste e doloroso do que outros filmes do cineasta. É verdade que a obra de Kieslowski está impregnada de um sentimento perene de melancolia, mas nesse filme existe dor, e ela é contundente. Outra característica do diretor, contudo, foi inteiramente preservada: é impossível antecipar os rumos da trama. Em sua nova vida, Julie vai ter que reaprender a usar os sentidos, bem como descongelar os sentimentos, mas isso ocorre paulatinamente, e de maneiras completamente inesperadas.
Perceba, no entanto, a sutileza e a inteligência de Kieslowski ao mostrar o relacionamento (frio, porém fundamental) entre Julie e a mãe, que está internada em um asilo. A velhinha nem sequer reconhece a filha, mas passa os dias assistindo a vídeos de gente de meia idade praticando esportes radicais, como bungee jumping. A mãe de Julie nem sabe, mas celebra a vida de uma forma que a filha não consegue. É interessante notar, portanto, que embora jamais converse com ela sobre isso – na verdade, não conversa com ninguém sobre assuntos pessoais –, são os poucos momentos com a mãe que insinuam a Julie uma mudança de comportamento.
Para os cinéfilos mais apressadinhos, que podem não ver muito sentido na trajetória errática da protagonista, a dica é ter um pouco de paciência e assistir ao filme até os créditos. Somente no final toda a trajetória de Julie vai fazer sentido. Aliás, quando o filme acaba – de uma maneira surpreendente, apenas para confirmar a regra de imprevisibilidade dos filmes do diretor –, dá até para dizer que “A Liberdade É Azul” é otimista. Dolorosamente otimista. A título de curiosidade: atente para a aparição-relâmpago do casal do filme seguinte da trilogia, “A Igualdade É Branca”, em uma rápida cena no tribunal.
A Versátil lançou o DVD no Brasil duas vezes, em edições bem diferentes. A primeira, em 1999, traz o filme em tela cheia (4:3, com laterais cortadas), som regular (Dolby Digital 2.0) e uma curta entrevista de quatro minutos feita com o diretor polonês. O filme foi relançado em 2006 com formato de imagem correto (wide 1.85:1 anamórfico), som remasterizado (Dolby Digital 2.0) e uma batelada de material extra, incluindo uma análise crítica da professora carioca Andréa França (que escreveu um livro sobre Kieslowski), cenas revisadas pelo próprio diretor, making of com cenas de bastidores e entrevistas. Todos os extras somam mais de uma hora e têm legendas em português. O longa também está disponível em uma caixa intitulada “Trilogia das Cores”, que engloba os dois outros filmes da série.
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