quinta-feira, 31 de março de 2011

Crítica: O Sétimo Selo (Ingmar Bergman, 1956)

por Rodrigo Carreiro
Extraído de http://www.cinereporter.com.br/criticas/homevideo/setimo-selo-o/

Obra-prima de Bergman aborda o tema da ausência de Deus com estética não-realista e sem respostas fáceis

A primeira reação de um espectador típico do século XXI a “O Sétimo Selo” (Det Sjunde Inseglet, Suécia, 1957) é, normalmente, de estranhamento. A obra-prima de Ingmar Bergman não se encaixa no formato narrativo popularizado pela cultura cinematográfica baseada em Hollywood. Desde que a indústria cinematográfica começou a se firmar, nos idos da década de 1920, a maioria dos filmes tenta reproduzir a realidade. Apenas exceções buscam vias alternativas – e “O Sétimo Selo”, que é baseado em uma metáfora engenhosa e ao mesmo tempo muito simples, se afasta completamente do realismo, incluindo referências e alegorias de caráter religioso que expõem, de forma direta, o grande tema da obra: o silêncio de Deus.

O tema principal de “O Sétimo Selo” é, também, a temática dominante da primeira metade da obra de Bergman, composta de 62 longas-metragens. De meados dos anos 1940 até o princípio dos anos 1960, o diretor sueco trilhou diversas matizes do registro dramatúrgico – comédias, dramas, tragédias – através de variações do mesmo tema, que poderia ser resumido em uma pergunta: se Deus realmente existe, por que ele não fala, ou não interfere no destino trágico da humanidade? Vale ressaltar que aquela era a época do medo do holocausto nuclear, e a Europa ainda vivia o rescaldo da destruição causada na II Guerra Mundial. Tanto sangue derramado havia mergulhado os europeus, os artistas em especial, em uma fase de torturantes dúvidas religiosas.

Este trauma era ainda mais forte, em Bergman, devido ao background pessoal. Filho de um pastor luterano, o cineasta sueco cresceu em um ambiente de enorme repressão. Era constantemente surrado pelo pai, e sofria com a indiferença sentimental que ele lhe dedicava. Ao mesmo tempo, foi doutrinado desde pequeno através de uma educação protestante bastante rígida. O resultado foi o desenvolvimento de sentimentos ambivalentes, no que se refere à religião. Bergman se dizia ateu, mas fez diversos filmes cuja noção de Deus estava fortemente presente. Muitos críticos vêem, na postura crítica do sueco ante a religião, uma revolta contra o próprio pai, e não propriamente contra Deus.

Tudo isso se infiltrou com força em “O Sétimo Selo”, cuja história nasceu de uma peça teatral. Ao adaptar o enredo para o cinema, o cineasta optou por manter os traços não-realistas oriundos da origem nos palcos, e incrementou esta opção através de uma estética derivada de movimentos como o expressionismo, que adotavam técnicas radicais de iluminação para sugerir um cenário além da realidade. Com uma produção pobre, Bergman filmou quase tudo em estúdio, inclusive as cenas que se passam em florestas, o que justifica o uso de muitos planos com a câmera postada próxima aos atores. A história reúne esquetes em torno de uma situação única: uma partida de xadrez, disputada ao longo do filme, entre um homem comum e a Morte.

Bergman decidiu ambientar o enredo na Idade Média por uma razão objetiva: devido à Peste Negra e ao contexto das Cruzadas, aquele é o período histórico que melhor se assemelhava aos sangrentos anos 1950, e portanto se prestava muito bem a discutir o problema do silêncio divino. O protagonista virou um cavaleiro retornando das Cruzadas (Max von Sydow). A imagem adotada para a morte foi exatamente aquela oriunda da Idade Média – um ser encapuzado, vestido de negro, que porta uma foice. Além disso, a fotografia (iluminação, enquadramentos) e a cenografia foram ajustadas para que as diversas seqüências, organizadas de forma não-linear, reproduzissem imagens de afrescos pintados em uma igreja centenária que Bergman freqüentava quando criança.

A metáfora principal do filme, tornada mais clara nas longas conversas mantidas entre a Morte e o cavaleiro, funciona com eficiência – é simples, básica, engenhosa, atinge um nível profundo, quase como uma fábula. Além disso, o sueco pontua toda a ação com alegorias e referências religiosas que nem sempre têm intenção muito clara, mas contribuem para impregnar a obra de uma religiosidade melancólica e tortuosa, o que reforça a investigação do tema.

Um exemplo? Há uma família de andarilhos no filme, que o cavaleiro encontra e toma sob sua proteção, formada por pai, mãe e bebê. Muitos críticos interpretam esta família como uma metáfora para Jesus, José e Maria. Bergman jamais confirmou ou negou esta hipótese, mas ela parece bem plausível, inclusive porque o cavaleiro tem uma epifania justamente quando encontra o trio. Mas, afinal, o que a aparição da família quer dizer? A explicação fica por conta de cada espectador. Na obra de Bergman, não há respostas fáceis.

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