sexta-feira, 2 de março de 2012

Artigo: Um clássico para sempre moderno - Acossado (Jean-Luc Godard, 1959)

por Flávio Guirland
Extraído de http://www.accirs.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=84:um-classico-para-sempre-moderno-acossado-1959&catid=39:revendo&Itemid=82


Falar de Acossado, de Jean-Luc Godard, pressupõe um risco. Não só porque o filme foi um “divisor de águas” que marcou verdadeiramente a entrada do cinema no âmbito das narrativas da modernidade, mas também por ter sido uma das obras mais comentadas de todos os tempos.

O filme foi um dos primeiros da Nouvelle Vague, o movimento liderado por jovens críticos de cinema que escreviam na revista Cahiers du Cinema, encabeçada pelo notório André Bazin. Esses novos realizadores visavam, acima de tudo, a romper com as convenções instituídas por aquilo que eles chamavam de “o cinema do papai” (le cinema de papa), isto é, as produções insuportavelmente conservadoras do cinema francês e, de quebra, a estabelecer um contraponto estilístico ao cinema comercial produzido por Hollywood.

O seu lançamento, no já distante ano de 1959, configurou-se como um ato de ousadia e, como era de se esperar, suscitou discussões apaixonadas. Havia os que o defendiam, em consonância com seu caráter revolucionário. Havia aqueles que o atacavam, em desacordo com seu tom profanador. Godard encarou a cólera das críticas (e dos elogios) com refinado deboche, peculiar aos gênios rebeldes. O enfant terrible sabia estar pisando em terras desconhecidas do imaginário cinematográfico. Sabia estar “derrubando mitos” tão laboriosamente construídos, “traindo uma herança” tão cuidadosamente sedimentada. Tinha plena consciência do grau de iconoclastia de sua criação. E o ato transgressor não seria fútil. Em obras posteriores, como Uma Mulher É uma Mulher (1961), Viver a Vida (1962), Tempo de Guerra (1963), O Demônio das Onze Horas (1965) e tantas outras, Godard iria somente radicalizar sua tendência à experimentação.

E de fato, com o passar dos anos, Godard não cessou de trilhar o caminho de uma incansável pesquisa estética, que não se limitou à Nouvelle Vague, e tampouco ao cinema. Realizou trabalhos híbridos, em que punha a dialogar imagens registradas em película e com os meios eletrônicos. Redefiniu as possíveis relações entre a imagem, o som, a palavra escrita e falada, a pintura e a fotografia, engendrados enquanto elementos significantes do discurso audiovisual. Atualizou procedimentos narrativos fundamentais, como a montagem e a direção de cena, tornando-os mais afinados com a sensibilidade do homem moderno. Enfim, o resultado dessa brilhante (e ainda inconclusa) trajetória é a edificação da obra mais fecunda e instigante já realizada para o cinema e a televisão.

Para que possamos perceber a real dimensão da(s) ruptura(s) estética(s) operada(s) por um trabalho seminal como Acossado, talvez seja conveniente entender com maior clareza quais as regras de representação infringidas pelo filme, quais os cânones por ele colocados à prova. Nos próximos parágrafos, procuraremos então enunciar os fundamentos de um determinado modo de se fazer (e de se perceber) o cinema  o chamado “cinema clássico”  para, em seguida, tentarmos compreender melhor as estratégias de que se valeu Godard para questionar a permanência desse modelo e, ao mesmo tempo, propor soluções relativas à construção de uma nova forma de discurso ficcional.

Nem tão grandes inícios

Se voltássemos um pouco no tempo, mais precisamente para o início do século 20, constataríamos com facilidade que os filmes daquela época eram concebidos de maneira bastante diferente dos filmes a que assistimos hoje. O cinema reunia diferentes modalidades de espetáculos, originárias de formas populares de entretenimento como o circo, a pantomima, a magia e a prestidigitação. Como tudo o que pertence à cultura popular, ele formava um mundo paralelo ao da cultura oficial, um mundo repleto de obscenidades, cinismo, grossuras e ambigüidades, onde não havia lugar para qualquer escrúpulo moralista ou anseio de elevação espiritual.

As “salas de cinema”, tais como as conhecemos, não existiam naqueles tempos. Os filmes eram exibidos como curiosidades ou peças de entreato durante espetáculos de circo, shows de vaudeville ou feiras de variedades. O cinema era nesse momento uma atração entre tantas outras, nunca o espetáculo exclusivo, nem mesmo o principal. A própria duração dos filmes, que raramente ultrapassava cinco minutos, impedia que se planejassem sessões exclusivas de cinema, capazes de aglutinar um público específico.

A audiência, por sua vez, era constituída principalmente pelas camadas proletárias dos cinturões industriais. Eram os segmentos mais pobres da sociedade, com pouca ou mesmo nenhuma formação cultural. Nos Estados Unidos, em particular, a maior parte dos freqüentadores destes locais de exibição era formada por imigrantes, pois o desconhecimento do idioma inglês impedia-os de freqüentar o teatro ou quaisquer outras formas de espetáculo fundamentadas no uso da palavra.

No período que vai de 1895 (data da primeira exibição pública de cinema) até meados da década seguinte, as películas realizadas incluíam registros de acontecimentos cívicos e de atualidades (um forma precursora do cinejornal), os próprios números de vaudeville especialmente encenados para a tela, pequenas anedotas em forma de gags, “paisagens”, “quadros de magia”, entre outros. A pornografia, como era de se esperar, não só corria solta como constituía grande parte dos filmes produzidos na época. Eram os famosos teasers.

A reação das camadas sociais mais conservadoras, entretanto, não tardou a manifestar-se. Uma onda de moralidade levou o governo americano a proibir a exibição de uma infinidade de películas e a fechar as portas de vários estabelecimentos considerados impróprios à freqüência de um público mais familiar. Por todos os meios buscou-se “purificar” esses ambientes de suas excentricidades, procurando-se, ao mesmo tempo, atrair platéias mais “respeitáveis”.

Os empresários que investiam na nascente indústria do cinema e as pessoas que realizavam os filmes na condição de diretores, roteiristas, cinegrafistas ou outras funções técnicas começaram, por seu turno, a perceber que o requisito necessário ao pleno desenvolvimento comercial do setor estava na criação de um novo público, que englobasse segmentos da classe média e da burguesia. Era necessário atrair uma platéia mais séria e sofisticada, sobretudo mais sólida economicamente, capaz de atrair dividendos para sustentar uma produção de filmes em escala massiva. Estava claro que o cinema deveria mudar, começar a perder a sua gratuidade e a sua libertinagem, para inserir-se no âmbito das artes “elevadas”, tal como as entendiam os homens da época. Não obstante, surgia daí um problema, sobretudo de ordem epistemológica: que tipo de cinema seria esse?

As referências mais próximas dos realizadores naquele momento eram o romance e o teatro oitocentistas. O cinema, tal como seus predecessores, deveria aprender a armar um conflito, contar uma história, desenvolver personagens dotados de um mínimo de densidade psicológica. O discurso romanesco dos séculos 18 e 19 irá então servir de exemplo e fornecer farto material para os filmes que surgirão a partir de 1905. Diretores como D. W. Griffith e Edwin Porter irão adaptar para as telas obras de escritores consagrados como Shakespeare, Poe, Dickens, Tólstoi, Stevenson, Zola, Hugo, Kingsley, Laclos e tantos outros. O objetivo era claro: além dar ao cinema legitimidade como arte narrativa, afigurava-se imprescindível aplacar a ira dos conservadores e superar os preconceitos culturais das classes mais ilustradas.

À medida que avança a primeira década do século 20, as extravagâncias, os delírios e as fantasias dos primeiros filmes irão ceder lugar, portanto, a um outro tipo de espetáculo, de contornos mais domésticos, mais preocupado em retratar os acontecimentos cotidianos da vida na sua verossimilhança. O naturalismo começa a impor-se como ideologia de representação dominante, em que “a experiência humana só ganha credibilidade na medida em que sua simulação na tela se dá em ‘condições naturais’, a fábula legitimada pela mimese”.

No cinema que irá então surgir, entre 1910 e 1915, a produção de um espaço de ação contínuo e ilusório, a interpretação naturalista dos atores e a encenação de histórias de fácil aceitação popular serão os elementos utilizados para erigir um sistema de representação visual que pretenderá, acima de tudo, “parecer verdadeiro”. Nessa medida, se buscará ocultar a própria representação enquanto artifício, e todo o esforço será dirigido no sentido de dar ao espectador a impressão de estar em contato direto com a “realidade”, sem mediações. É como se todos os aparatos de linguagem utilizados na fabricação do filme constituíssem um dispositivo transparente e invisível. O discurso é apresentado como se fosse a própria natureza.

Dentro dessa lógica narrativa, ganha especial destaque a chamada “decupagem clássica”. Aqui, os cortes efetuados dentro de uma mesma cena são agenciados de modo a não prejudicar a continuidade espaço-temporal da representação. Se há um corte em meio a um gesto de um personagem, por exemplo, toma-se todo o cuidado para que o momento do gesto correspondente ao fim do primeiro plano seja o instante inicial do segundo, resultando na tela uma apresentação contínua da ação. São as famosas “regras de continuidade” que funcionam justamente para estabelecer uma combinação de planos cujo resultado seja uma seqüência fluente de imagens, tendente a neutralizar a descontinuidade obrigatoriamente contida na passagem de um plano a outro.

O interessante é que, uma vez dominadas as técnicas de representação naturalistas – e aqui os adventos do som sincronizado e da cor desempenharão um papel decisivo –, tal naturalismo servirá como ponto de partida para que se possa conferir um peso de realidade aos mais diversos universos ficcionais projetados na tela. A produção industrial, dividida em gêneros (romance, comedia, western, policial etc.), será capaz de fornecer concretude a produtos de declarada fantasia, onde a própria noção de cinema como “espetáculo” irá vincular-se à competência para copiar e elaborar uma aparência que seja capaz de iludir.

Essa retórica encontra seu ponto de culminância no melodrama convencional, com toda a sua carga de fatalidades e seu maniqueísmo, que se apresenta como autêntica “imitação da vida”. Mais uma vez, o estilo naturalista vem emprestar ao universo ficcional um coeficiente de verdade que oculta tudo o que a história possui de convencional, de simplificação e de falsa representação. A mesma equação afirma-se: o discurso como realidade. O método torna concreta uma visão abstrata do mundo e, desta forma, sanciona a mentira.

O “cinema clássico”, como convencionou-se chamar este modelo voltado para representação ilusionista, irá consolidar-se nos Estados Unidos a partir de 1915 e nas décadas seguintes, e será identificado com o domínio da verdadeira “linguagem do cinema”. Os analistas, hoje, tendem a relativizar o problema e a interpretar as conquistas do cinema produzido em Hollywood no início do século 20 como a construção de um sistema de representação particular, entre outros tantos possíveis. Neste sentido, ganha também formulação cada vez mais clara a idéia de que a articulação método hollywoodiano afina-se com os interesses dos donos da indústria e, por conseqüência, com os imperativos ideológicos de uma classe dominante.



A intervenção de Godard
Acossado inicia-se quando Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) furta um carro em Marseilles e, a caminho de Paris, é perseguido pela policia, por estar trafegando em alta velocidade. Durante a fuga, mata um policial. Mais tarde, ao chegar na Cidade Luz, sai à procura de um amigo que lhe deve dinheiro (produto de outro roubo?). Enquanto não o encontra, Michel perambula pelas ruas, revê amantes. Encontra finalmente Patrícia Franchini (Jean Seberg, nos seus estonteantes 21 anos), uma garota americana que conhecera semanas atrás, e que vende o The New York Herald Tribune ao longo da Champs Elysées. No quarto de hotel de Patrícia, Michel tentará convencê-la a dormir com ele e, depois, fugir para a Itália. Ele consegue realizar o seu primeiro intento, mas quando está prestes a reaver seu dinheiro (o que possibilitaria a viagem à Itália) Patrícia denuncia-o à polícia. Em vez de fugir, Michel decide entregar-se, sem oferecer resistência. No momento em que a policia chega, no entanto, um amigo alcança-lhe um revólver, numa última tentativa de salvá-lo. Michel é então morto no tiroteio.

A história, bastante simples, na verdade, partiu de uma idéia de François Truffaut baseada na fórmula “crime e fuga”, típica dos romances policiais americanos (Truffaut e Godard haviam pretendido filmar Bonnie and Clyde, anos antes). A partir daí, Godard foi escrevendo o roteiro, meio que no improviso. “Acossado começa assim: eu havia escrito a primeira cena (Jean Seberg caminhando nos Champs Elysées), e para o resto do filme eu tinha uma pilha de notas, uma para cada cena. Disse a mim mesmo: “isto é terrível”, e parei tudo. Então pensei: se em um dia é possível filmar cerca de doze planos... então, em vez de escrever todo o roteiro antecipadamente, decidi improvisar as cenas de cada dia, tomando como referencia as notas que tinha em meu caderno”, disse Godard em 1961.

A displicência com que o realizador elaborou o roteiro acabou contaminando outros aspectos da produção, o que o levou a infringir certas regras características do cinema comercial: as filmagens minuciosamente planejadas dos estúdios cederam lugar às locações externas, sujeitas à ocorrência de todo tipo de acasos; as tomadas de planos, em geral repetidas até que se consiga atingir os limites da perfeição, foram realizadas muitas vezes em um único take; aos atores, normalmente condicionados a atuar segundo um estilo de interpretação bastante regrado, foi dada completa liberdade para improvisar.

Quanto à narrativa, esta adquiriu um aspecto rarefeito e fragmentário. Se formos examinar uma típica fita policial, poderemos verificar sem muito esforço que a história tende a concentrar-se nos momentos fortes da ação (de preferência nas cenas de violência e perseguição). Os episódios são encadeados dentro de uma lógica fundamentada em associações do tipo causal (a uma causa sucede sempre sua conseqüência natural), onde o nível de tensão dramática é cuidadosamente dosado num crescendo, desde o início da história até o seu instante derradeiro. Em outras palavras, todos os elementos são dispostos de forma a extrair da narração o maior efeito dramático possível. Acossado, por sua vez, procura explorar um outro caminho:

Após um preâmbulo bastante agitado, assistimos à seqüência no quarto de hotel de Patrícia, onde ela e Michel ficam jogando conversa fora enquanto esperam o desenrolar dos fatos para poderem agir. É claro que acompanhamos ali um desvelamento psicológico dos personagens (a familiaridade de Patrícia com as artes contrasta com os interesses sempre imediatistas de Michel). No entanto, são 20 minutos de projeção onde pouco ou nada acontece. Godard cria um efeito de distensão dramática que opõe-se propositadamente à fórmula cumulativa e valoriza um tempo (e uma ação) que seriam qualificados, segundo um modelo de cinema mais convencional, como totalmente sem interesse.

Quando finalmente Michel e Patrícia saem do hotel, os acontecimentos começam a se precipitar com rapidez: a foto de Michel aparece nos jornais, ele é denunciado à polícia e inicia-se a perseguição que irá redundar na sua morte. As cenas voltam então a suceder-se com ligeireza e, na transição de uma cena à outra, nunca nos são dadas uma orientação espacial clara ou uma continuidade de tempo integral. Tempo e espaço nos são apresentados de forma estilhaçada e, com isso, ficamos um tanto desorientados. É como se nós, espectadores, fôssemos envolvidos pelas atribulações que acometem o casal durante a sua fuga.

Por uma nova poética audiovisual
A grande inovação acionada por Acossado irá portanto fundamentar-se neste ponto: no modo como o comportamento dos personagens (o de Michel, mais especificamente) encontra um paralelo no tratamento formal das imagens. Opondo-se ao modelo da narrativa causal, Godard agencia novos esquemas de relações entre os elementos cinematográficos, privilegiando agora uma “lógica da ação”, conforme termo utilizado por José Lino Grünewald. Aqui, a dedução discursiva de uma história em nada auxilia na compreensão do filme. O sentido é dado por uma câmera que testemunha os fatos, rodeia-os, delineia-os, mas não explica, não conclui. Assim, o conteúdo visual de Acossado não aparece amarrado a uma idéia diretiva estabelecida a priori ou a uma mensagem delimitadora. Ele existe numa relação orgânica com a ação dos personagens. O critério relativo à mise-en-scéne (direção de cena) passa a ser a dominante, sobrepondo-se à exposição coerente do enredo.

Inserida nessa lógica da ação, a valorização da descontinuidade (e não o seu ocultamento) será o traço estilístico distintivo que irá romper de vez com a idéia de identificação, tão laboriosamente construída pelo modelo ilusionista. Godard será nesse momento o precursor de uma prática hoje difundida entre diretores de filmes de ação e videoclipes, o jump-cut: o corte repentino dentro da cena que interrompe, no seu transcorrer, o movimento físico de um ator ou até mesmo uma linha de diálogo. O resultado são as imagens truncadas, que “pulam” na passagem de um plano a outro, e que emprestaram a Acossado um ritmo ágil e um inegável apelo visual.

Tomemos como exemplo a seqüência em que Michel e Patrícia passeiam de carro pela cidade. Num plano próximo, vemos Patrícia (por trás, em plongée), sentada no banco dianteiro, ao lado de Michel. Enquanto ele discursa: “Amo uma garota com o pescoço lindo / com seios lindos / com uma voz linda / com pulsos lindos / com uma testa linda / e joelhos lindos... / mas que é covarde!”, ela permanece o tempo todo diante de nós, no mesmo enquadramento. Percebemos, no entanto, através dos cortes, que o carro trafega por diferentes avenidas e ruas da cidade, em diferentes momentos. Tal combinação produz, para além da descontinuidade visual, uma síntese de tempo, e nos sugere que a duração daquele passeio é bem maior do que poderíamos imaginar. Em outras palavras, é evocado um tempo (e uma situação) que não estão inteiramente colocados na narrativa, e o efeito poético daí resultante é surpreendente.

Outra técnica utilizada com a finalidade de evidenciar a descontinuidade é o emprego do faux-raccord (“falsa continuidade”, numa tradução literal), onde a integridade da cena é novamente comprometida, dessa vez por uma propositada desobediência às regras de direcionamento do olhar dos atores ou por um desrespeito à coerência espacial da ação. Com o uso do faux-raccord, nunca conseguimos ter um conhecimento claro da localização física de um personagem em relação a outro, ou mesmo da relação que estes mantém com o seu entorno.

Examinemos a passagem em que Michel assassina o policial: vemos o carro de Michel sair da rodovia e estacionar num acesso secundário, oculto pelas árvores. Em seguida vemos o policial, de moto, trafegando na rodovia em alta velocidade. Ele retorna, entra na estrada de terra e aproxima-se do carro de Michel. Michel debruça-se para dentro do carro para apanhar a arma no porta-luvas, e até aqui acompanhamos a ação sem problemas. Então temos um plano fechado do rosto de Michel, de perfil. Vemos o seu ombro, o seu braço, a arma. Ele dispara. Não sabemos exatamente em que direção ele faz o disparo, mas podemos intuir com razoável precisão, baseados nos planos a que assistimos antes. Acontece que quando o policial cai, vitimado pelo tiro, ele tomba numa outra direção (ou até mesmo num outro lugar), em absoluto desacordo com a orientação espacial que supúnhamos ter. No plano seguinte (um plano geral), vemos Michel correndo em disparada pelo campo.

Os movimentos de câmera constituem, da mesma forma, um outro recurso utilizado por Godard para desenvolver a lógica da ação. Ela não pára nunca de se mover (a câmera na mão aqui é uma premissa), e não abandona os atores em nenhum momento. A sua movimentação incessante não obedece a uma sistemática prevista de antemão pelo roteiro, nem encontra-se atrelada a um método narrativo apriorístico. Ela movimenta-se motivada exclusivamente pela ação e, ao mover-se, revela sempre uma nova descoberta.

Podemos destacar, ainda, o modo de atuação dos intérpretes, conduzido em um tom de intencional artificialidade:

Logo no início do filme, quando Michel dirige pela rodovia, rumo a Paris, ele volta-se para a câmera e diz: “Se você não gosta do mar... se você não gosta do campo... se você não gosta da cidade... então vá se catar!”. Michel irá repetir esta interpelação direta ao espectador em várias ocasiões, principalmente ao imitar o gesto de Humphrey Bogard roçando o polegar sobre os lábios. Já na cena final, temos um outro momento de marcado artificialismo na interpretação de Belmondo. Quando é baleado pela policia, Michel corre pela rua contorcendo-se de forma absurda, até cair em cima da faixa de segurança. Deitado no chão, faz caretas para Patrícia e chama-a de “desprezível”. Por fim, ele fecha os próprios olhos com as mãos, do mesmo modo como costuma-se cerrar os olhos de um morto.

Godard procura aqui romper com o sistema analítico-dedutivo de interpretação, onde o ator compõe um tipo baseado em normas pré-fixadas. Em Acossado, os atores passam a adotar a técnica do comportamento, onde a coerência (a causalidade) na composição do personagem é substituída por uma atuação ligada diretamente à ação (e à cena). É novamente José Lino Grünewald, em sua critica do filme, que elucida:

“Em Acossado, os atores não estão para representar, mas representam para estar. Daí a aferição não causal de um ser pelo estar – a técnica do comportamento. Os personagens se dão a conhecer através do filme e não em virtude de um rótulo generalizante para um determinado conteúdo abstrato – não há um conceito anterior. O personagem não evolui classicamente – seus atos e palavras são, à primeira vista, contraditórios, porque não se definem em termos anedóticos, de narração. Um jogo de contrastes e conflitos forjando um realismo pela ambigüidade”.

A lógica da ação desenvolvida através da descontinuidade visual, dos movimentos abruptos de câmera e da interpretação anti-naturalista dos atores, nos causa, em seu conjunto, uma nítida sensação estranhamento. Elas nos tiram “de dentro do filme”. Neste aspecto, Godard aproxima-se das teorias do distanciamento brechtiano para enfatizar que aquilo que vemos na tela não passa de uma obra de ficção. Ele instaura (como regra) uma poética da auto-referência, característica dos movimentos da arte moderna, até então com pouquíssimo espaço no cinema comercial. Por seu turno, a narrativa elíptica e aberta, ao deixar de fornecer para o espectador todos os elementos necessários ao acompanhamento da história, convoca-o a efetuar uma recepção ativa, muito distante da acomodação voyeurista proporcionada pelo espetáculo de moldes mais convencionais.


Interferências e intertextualidades
A rejeição de Godard a determinados métodos da cinematografia reflete, sobretudo, o seu desejo de colocar um termo ao reinado absolutista do cinema tributário do romance do século 19e da representação ilusionista, do cinema concebido como “janela aberta para o mundo”. Ele sentia que a ortodoxia das regras que prefiguravam esse sistema há tempos limitavam as possibilidades do cinema enquanto meio expressivo. Fica claro, no entanto, que Godard nunca deixou-se confinar numa postura iconoclasta per se, de simples rejeição à estrutura dominante. Ao contrário, ele possuía uma lúcida percepção de seu papel na evolução do cinema como linguagem e um profundo conhecimento das técnicas narrativas dos cineastas que o antecederam.

Assim como outros realizadores franceses daquela época, Godard admirava com ardor os “filmes B” americanos, principalmente os policiais noir da década de quarenta. Sobre Acossado, afirmou: “Tudo o que eu gostaria era fazer um filme normal de gângsters”. Apesar de Acossado não poder ser classificado exatamente como “um filme normal de gângsters”, a influência do cinema americano torna-se clara à medida que acompanhamos a trajetória de Michel, um delinqüente amoral cujo fim trágico é inevitável. Ademais, Michel mostra um claro influxo dos personagens típicos das histórias policiais, como aqueles interpretados por Humphrey Bogart. Belmondo roça constantemente o polegar sobre os lábios, num gesto característico do ator americano e, em determinado momento, chega até mesmo a parar diante de um cartaz de “Bogey” para observá-lo com idolatria.

Ao mesmo tempo em que reconhecia o legado de seus antecessores, Godard percebia a importância do cinema estabelecer relações com outras formas de linguagem. Na verdade, ele via a si mesmo mais como um autor (não simplesmente um cineasta) e, no seu afã em romper laços com uma certa tradição da indústria, procurou tornar explícita sua aproximação com a literatura. “Uma pessoa sente-se tão só num set de filmagem, como diante de uma página em branco”, costumava dizer. De fato, em Acossado não faltam referências a escritores como Dylan Thomas, Rainer Maria Rilke, entre outros. Na cena em que Patrícia e Michel estão no quarto de hotel, por exemplo, ela chega a citar Wild Palms, de William Faulkner: “Between grief and nothing, I will take grif ” (numa tradução livre, algo como: “Entre a tristeza e o nada, eu prefiro a tristeza”). Diante de tal provocação, Michel devolve: “Eu prefiro o nada. A tristeza é um compromisso”. A passagem é curiosa, pois Godard não só fez questão de mostrar uma determinada herança literária como ainda, através das palavras colocadas no diálogo de seu protagonista, buscou dar uma resposta ao aforismo de Faulkner.

De modo semelhante, o diretor procurou explorar relações de intertextualidade entre o cinema e a pintura. Obras de Paul Klee, Matisse e outros aparecem no quarto de Patrícia, e são comentadas de passagem. A certa altura, ela posa diante de uma reprodução de Renior, que retrata uma jovem, e pergunta: “Quem é a mais bonita?”. Michel coloca-se então diante de um pôster de Picasso (um homem segurando uma máscara na frente do rosto), faz uma careta jocosa e não comenta nada.

Ao misturar referências a filmes de gângsters e a obras consagradas do repertório erudito, Godard coloca-se em sintonia com o mais atual pensamento pós-moderno. Acossado esboroa as fronteiras entre a “alta” e a “baixa” cultura, elevando o gênero do “filme B” à condição de obra de arte. E o faz de maneira irreverente, com humor, desmistificando e até mesmo ridicularizando o próprio conceito de “obra de arte”. O filme também antecipa, embora de forma inconsciente, o conceito de McLuhan acerca da “aldeia global”, e a reflexão de Roland Barthes a respeito da influência da indústria cultural sobre a sociedade.

A influência existencialista
Poderíamos acrescentar, por último, a ascendência no filme da filosofia existencialista e de sua visão sobre a condição humana após a morte de Deus, e o advento do niilismo tais como foram descritos por Friedrich Nietzsche. Nietzsche afirmava que, diante da inexistência de Deus, é inútil ao ser humano a procura de qualquer sentido transcendental para a vida. O homem deveria, isso sim, abandonar a sua busca por alguma hipotética razão de viver, e viver cada momento intensamente, emprestando o seu frágil e efêmero significado a todas as coisas que faz.

Diante dessa questão, a pergunta a ser colocada é a seguinte: por que simpatizamos tanto com Michel, apesar dele ser um personagem egoísta, um delinqüente, na verdade, absolutamente alheio do mundo que o cerca? A resposta talvez resida no modo desinibido (e até mesmo alegre) com que ele desconsidera toda e qualquer autoridade e convenção social. O que mais nos seduz em Michel, no entanto, não é propriamente a sua extravagância, mas a visceral convicção com que ele age. Suas ações, por mais imorais que sejam, reverberam uma avidez pela vida que nos é invejável  porque inacessível. Ele personifica uma utopia libertária que nós jamais poderíamos cumprir, sob pena de compartilharmos do seu mesmo destino (Acossado, neste sentido, poderia ser interpretado como uma anti-fábula ou como uma fábula anarquista). Em determinado momento, ele passa correndo na frente de um cartaz onde podemos ler: “viva a vida perigosamente até o fim”.

A excentricidade de Michel não seria suficiente para destacá-lo da norma, se Godard não houvesse caracterizado quase todos os outros personagens como absolutamente anódinos: as pessoas que transitam pela rua, apáticas, observam um homem atropelado, sem nada fazer; de uma bela e trabalhadora amiga, Michel rouba o dinheiro sem que ela perceba; os dois dedicados oficiais de policia não poderiam ser mais ridículos e atrapalhados. Através dessas “pistas”, Godard nos dá indícios de um mundo vazio e sem sentido. “Por que você quer fazer amor comigo?”, pergunta Patrícia na cena do quarto de hotel. “Porque você é bonita”, responde Michel. “Mas eu não sou bonita”, ela retruca. “Ok, então porque você é feia”, ele arremata.

Michel é o único que parece tirar vantagem desse estado de coisas. Ele até mesmo inventa um passado, um presente e um futuro para si: diz que seu avô dirigia um Rolls Royce e seu pai tocava clarinete; finge ser endinheirado ao trocar de carro a todo instante e ao afirmar que costuma hospedar-se somente no Claridge; planeja ir para a Itália (com Patrícia), assim que puser a mão na grana que um amigo lhe deve. Ao fantasiar sua biografia, Michel cria, em meio à indiferenciação generalizada, um sentido para a própria vida (“cria poesia do nada”, diria Godard).

Uma conquista em nada modesta
Quando de seu lançamento, Acossado teve uma calorosa recepção do público e da crítica. E podemos afirmar, sem exagero, que naquele momento o cinema mudou para sempre. Os jovens diretores que assistiram ao filme abandonaram de imediato suas antigas crenças de que o cinema não poderia prescindir da gigantesca e caríssima estrutura dos grandes estúdios. Pôde-se perceber que era enfim possível concretizar uma obra com alto potencial criativo, mesmo enfrentando condições precárias de produção, escassos recursos financeiros e uma equipe reduzida ao mínimo. Era enfim viável propor novas formas narrativas, experimentar novas poéticas, realizar algo diferente do tradicional modelo holywoodiano e, ainda assim, sensibilizar o público. Tristes quimeras (ou não), o fato é que Acossado foi uma obra de caráter visionário. Influenciou gerações de cineastas que, na sua esteira, deram origem aos inúmeros “cinemas novos” que varreram o planeta nos anos 60 e 70. E o filme permanece até hoje como um marco na história da cinematografia mundial, tão significativo e revolucionário quanto o foram O Nascimento de uma Nação e Cidadão Kane em suas respectivas épocas.

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