quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Artigo: Na saga da beirada - A Redescoberta do Cinema Marginal


por André Maleronka
Extraído de http://www.viceland.com/br/v1n4/htdocs/na-saga-124.php?country=br
Publicado originalmente na revista Vice Magazine Ano 01 Edição 04

Quando assisti O Bandido da Luz Vermelha pela primeira vez, eu tinha 17 anos. Estava meio chapado, de madrugada, assistindo TV e peguei o filme já no meio num canal de TV estatal. Não entendi da onde vinha aquilo tudo. Episódios barulhentos e encadeados que contavam a história de um ladrão estuprador, com narrações e diálogos sarcásticos que são quase palavras de ordem: “O Terceiro Mundo vai explodir! Quem tiver de sapato não sobra!”. Um filme policial de humor desgraçado, cruel, crítico pra cacete, as atuações alegóricas na cara dura.

Claro, como bom adolescente, eu já conhecia os filmes da Pornochanchada que passavam na Sala Especial da TV Record, e alguns deles até tinham um pouco da tonitruância, nudez e escracho que eu via ali, mas aquilo eram outros quinhentos. Não subestimava quem assistia em troca de ereções nem abusava do frasismo entusiasmado atrás de risadas. Era único. Achei o diretor do filme, o tal do Rogério Sganzerla, um gênio. “Filme legal é isso, O Bandido” virou um lugar-comum em rodas de amigos e mesas de bar.

Demorou anos, mas descobri que O Bandido era só a cabecinha—tá bom, uma cabeçorra—de uma jeba que mede quase 70 filmes de comprimento, entre curtas, médias e longas que tentou ficar ereta durante uns dez anos na má intenção de arrebentar as pregas da sociedade, que na época eram bem apertadinhas. Eram os anos de chumbo do governo militar e muitos desses filmes, que eram coitos em público, foram interrompidos através da censura e dos boicotes feitos pelos usurpadores fascistas que tentavam fazer papel do pai protetor nos lares brasileiros.

Isso que acabei de comparar com um penis gigantesco foi, como muitas das boas coisas, um estado de espírito que as pessoas tendem a ver como movimento, e que para o desgosto da maioria de seus diretores foi agrupado sob a pecha de “cinema marginal”. Tudo bem que um dos filmes considerados marco inicial do “movimento” se chame a A Margem, realizado pelo ex-caminhoneiro de bigode cabuloso Ozualdo Candeias em 1967, que o próprio Sganzerla tenha feito publicar o seu manifesto Cinema Fora da Lei em 1968, e que, principalmente, esses tais filmes tivessem uma predileção pelas pessoas à margem da sociedade e buscassem formas de contar as histórias que optassem pela deriva do personagens, câmeras e roteiros. Tudo bem que o epicentro dessa produção tenha sido a Boca do Lixo no centro de São Paulo. Mas a verdade é que essa denominação pegou por conta de uma enxurrada de preconceito e estereotipia da imprensa—não é de hoje que a mídia está coalhada de sicofantas. “Essa coisa de marginal nasce com força em matéria da Manchete que vem com uma foto do Orgia, ou O Homem que Deu Cria, do João Silvério Trevisan. ‘Ah, o que é isso?’ ‘Ah, isso é cinema de marginal, cinema marginal’. Já é 70. Em 70 que esse nome estoura. Já tinha sido usado, as pessoas já falavam, mas não tinha ainda sido tão popularizado.” Quem me contou essa e a maioria das coisas que divido aqui com vocês foi o Eugênio Puppo, pesquisador à frente da Heco Produções que organizou a Mostra Marginal em 2001 com 40 filmes em São Paulo, 61 no Rio e 35 em Brasília.

Fui atrás do Puppo porque a produtora dele está com um projeto, junto com a Lume Filmes, do Maranhão, de colocar na rua 12 DVDs com filmes marginais, todos com livretos supercompletos e extras inacreditáveis. Até agora já saíram quatro: Bang Bang de Andrea Tonacci, Sem essa Aranha do Sganzerla, Meteorango Kid, O Herói Intergalático de André Luiz Oliveira e Os Monstros de Babaloo de Elyseu Visconti. O Puppo estava irritado com os lançamentos de selos brasileiros: “Eles lançam e põem lá um longa e um curta, ou um longa e dois curtas, ou galeria de posteres, sabe? Parece coisa de internet e não é, não é nem interativo... É pior! Aí não tem condição. Do Tonacci, por exemplo, a gente fez o Ismail Xavier analisando Bang Bang”. Ele também contou que o único registro de um curta de Oliveira, O Doce Amargo, é no DVD, porque o negativo estragou, foi pro lixo e não tem cópia. A única cópia que existia eles deram um play já copiando pro Mac. Depois de salvo, “demos um play na fita de novo e a fita fodeu, foi pro lixo. Então nesse Doce Amargo demos um trato, e a gente colocou os curtas que ele fez com o Mário Cravo—o fotógrafo, que acabou de morrer, fez curtas, coisas muito loucas...”. Tem uma entrevista inédita de duas horas do Rogério Sganzerla feita nos anos 90 que é realmente fantástica. Há dois anos seu filme de maior projeção, O Bandido, foi relançado em DVD pela produtora Versátil. O Puppo fez questão de lançar logo o Meteorango Kid, do diretor baiano André Luiz Oliveira, pra provar que esse jeito livre de fazer cinema não era uma coisa restrita a São Paulo e à Boca do Lixo.

Os filmes, vistos hoje, parecem uma sequência de chutes no saco de obviedade que domina a maioria do cinema nacional atual, que perde tempo em macaquear Hollywood. O Puppo até ensaiou dar uma definição, mas tergiversou: “O cinema marginal, o que é? É a realidade do país da época. A referência do cinema marginal é a própria rua, são as próprias pessoas passando fome, sendo presas, torturadas. Isso é uma coisa que pela primeira vez teve eco”. Na Boca, um lugar delimitado por algumas ruas, botecos, restaurantes, em que as pessoas estavam fazendo todos os tipos de filmes, era comum nego chegar dizendo, “Tô com uma ideia de um filme...”, ou “Tô com umas latas, eu fotografo, tenho uma câmera”. E o filme entrava em cartaz e fazia sucesso porque tinha aonde ser exibido. Ali convivia o povo do cinema com trabalhadores braçais, prostitutas e travestis, entre outras pessoas consideradas “resto” pela sociedade, foi fundamental sim, até para que grande parte dos diretores valorizasse a Chanchada como um momento onde se desenvolveram soluções brasileiras para se contar histórias no ci-nema. Mas a opção independente e autoral de cada um dos realizadores ao soltarem as câmeras e microfones nas ruas foi fundamental e extrapolou a localidade. Outros nomes também foram cunhados: cinema de invenção, cinema poesia, cinema underground. “Os caras puderam fazer um filme para retratar o medo, por exemplo... É impressionante. O cinema de hoje—ele não dialoga com a nossa realidade, ele dialoga com um certo enredo, com uma perspectiva que você vê em muitos filmes que estão sendo feitos para serem selecionados em Cannes, Berlim - há uma internacionalização dos filmes e com isso você perde justamente o melhor do cinema, que é cada país tratando das suas questões. Não quer dizer que isso seja um filme engajado, um filme nacionalista, nada disso”, me disse o Puppo.

A opção pelo esculacho e pela degradação, a opção pelos personagens marginais em geral e não pela classe trabalhadora que a esquerda da época preconizava, deram no que muita gente já classificou como a última vaga inventiva do cinema brasileiro—coletivamente falando, claro. Mas muitos dos filmes foram, isso sim, marginalizados. Nunca, ou pouco, foram exibidos comercialmente, caso de Bang Bang, que na época passou só em Cannes. O Puppo conta que “foi pra Quinzena dos Realizadores lá e fez um puta sucesso”. Existia a Lei de Obrigatoriedade, que exigia que os cinemas passassem curtas brasileiros antes de filmes gringos, o que dava dinheiro e permitia que os caras filmassem em episódios. Mas nem isso segurou, e a porra toda começo a ir pro vinagre a partir de 1976 com a censura, permitindo a penetração massiva de filmes de sexo estrangeiros a partir de O Império dos Sentidos. Algumas coisas ainda foram até 1978, mas a produção degringola pro sexo explícito e o espaço para qualquer outro tipo de filme diminui drasticamente. De qualquer jeito, foram dez anos foda, mesmo os filmes mais cerebrais são obras de instinto—como surubas sujas e sem regras feitas no meio da praça, em frente à igreja e à luz do dia. Guerrilha instintiva, não institucional, feita por diretores de origens variadas, do Ozualdo a Sganzerla e Júlio Bressane, entre quase 30 nomes. Gente que filmava sem medo, “os caras eram loucos, saiam filmando dando tiro na rua durante o regime militar”, conta Puppo sobre Bang Bang, e montava como se tivesse discutindo com o cara do bar e o presidente da República ao mesmo tempo, todo mundo junto. São filmes para desorganizar a cabeça da plateia, e ao mesmo tempo falam tanto sobre o Brasil que dá pra qualquer um entender, principalmente quem está de saco cheio de assistir filmes onde você já sabe exatamente o que vai acontecer.

Vai Puppo: “O trunfo desse cinema marginal é que ele estava junto do povo. Os anseios eram facilmente percebidos. E isso era absolutamente traduzido para uma obra. Seja para fazer uma crítica, seja para exaltar alguma coisa. Quer dizer, a diferença dessa arte que se faz dentro dos escritórios, de onde você fica lá planejando, mas você não vai à rua, não se relaciona—porque uma coisa é você falar da ditadura e viver num apartamento de cobertura, outra coisa é você estar trabalhando na rua, pegando ônibus, sentindo essa opressão e o que ela faz na vida do cidadão”. Os filmes são absolutamente variados, há alguns barulhentos, outros introspectivos, mas todos falam com uma sociedade em mutação, que ninguém ainda conhecia bem, e cindida entre as opções de nacionalismo excludente e retardado (“ame-o ou deixe-o”) ou a luta armada. Opções que não eram opções. Como pegar uma doença venérea escandalosa pela primeira vez e ter que escolher entre cortar o pau fora ou por fogo na boceta em um delírio moralista, ou ameaçar enfiar logo uma bala na cabeça no meio de um puteiro lotado escolhido a dedo e ser preso por tentativa de suicídio, pra depois ser esfolado na cadeia e ser enterrado como indigente.

Cada um dos filmes que assisti parece vir da necessidade intestina e extrema desses caras de falarem sobre as coisas que estavam acontecendo com as pessoas numa época que isso não podia ser feito. “Então essas viagens, essas frases enlouquecidas, é tudo parte desse universo... Eles são criativos de fato, mas o momento era muito propício. Se você realmente fosse criativo você conseguia catalisar aquilo de uma maneira muito foda”, falou o Puppo. A invenção, a incorporação do improviso, parecem esforços dentro desse espírito de época de sair das beiradas, de falar com quem fosse possível sobre a marginalização que afetava todo mundo—são também o contrário dos manuais de consumo. O Puppo disse que esse ano ainda saem Lilian M.—Relatório Confidencial do Carlos Reichenbach, Hitler Terceiro Mundo do José Agripino de Paula e A Margem do Ozualdo Candeias. Tenho a impressão que filmes fortes assim podem servir muito bem pra você levar alguém pra cama porque você é a pessoa mais esperta do seu rolê. Podem servir pra pensar o Brasil, podem ser assunto pra mesa do bar e o que mais você quiser mas, principalmente, por insistirem em sintonizar o que estava de fora da visão oficial e consolidada da sociedade, por arriscarem e acertar tanto, são coisas bonitas pra cacete e não precisam servir pra nada. Pra mim, dos poucos que eu vi até agora—são 70, pouco exibidos, lembra?—tive a sensação de que se esses filmes não me ajudassem a ser mais eu, eu desistia e ia fazer outra coisa. Como virar mobília. Ou pneu. Ou um letreiro. Ou um baú.

Saiba mais sobre o cinema marginal em www.heco.com.br/marginal e www.lumesfilmes.com.br

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