Extraído de http://blogs.estadao.com.br/luiz-carlos-merten/theo-e-deus/
Lá vou eu encarar, a pedidos, o cinema de Theo Angelopoulos. Aliás, na semana que vem – acho que é na semana que vem, a partir de 17, ou 19 -, ele estará sendo homenageado pelo Festival de Guadalajara, no México. Sabem que não lembro qual foi meu primeiro Angelopoulos? Terá sido Paisagem na Neblina? Se foi, não poderia ter sido melhor começo. Angelopoulos é grego e isso, de cara, ajuda a entender sua fascinação pelo mito. Em ‘Paisagem na Neblina’, Orestes voltava para vingar o pai. Em Um Olhar a Cada Dia, era Ulisses, o rei de Itaca, que desceu aos infernos para recusar a imortalidade. E na sua atual trilogia, iniciada por ‘To Livadi Poli Dakrisi’ e que tem prosseguimento com ‘I Skoni Tou Chronou’ (The Dust of Time), é Eleni – Helena. Em Berlim, quando o entrevistamos, Orlando Margarido e eu, o mestre estava de muito bom humor. Citou Godard, que fez, nos anos 50, o curta ‘Tous les Garçons s’Appellent Patrick’. Se todos os garotos podiam se chamar Patrick, para Godard, por que todas as mulheres não podem ser Helenas para Angelopoulos? É curioso como a arte contemporânea (re)vê o mito. Na literatura, o Ulisses de James Joyce, Leopold Bloom, vaga pela cidade, pela urbe. O de Angelopoulos, no cinema, só tem olhos para ruínas, pois o diretor transpõe o mito para o dia a dia das guerras civis na Europa. Destruição e morte. O cinema de Angelopoulos tem sido atormentado pela tragedia dos expatriados. Outros podem usar o plano-sequência (tem hífen?), mas raros, como Angelopoulos, são cineastas do tempo, da procura e, posto que ela tem de acabar, nem que seja dramaturgicamente, do limite. ‘Paisagem na Neblina’ mostra duas crianças, um casal de irmãos, acompanhado por aquele Orestes motoqueiro, em busca de um pai (improvável?) que mora na Alemanha. Em ‘O Passo Suspenso da Cegonha’, repórter chega a uma cidade de fronteira em busca de um político que desapareceu com a mulher. O repórter pensa tê-los visto fugazmemnte em meio a uma multidão de refugiados. O casal é interpretado por Marcello Mastroianni e Jeanne Moreau, juntos 30 anos depois de um dos filmes/marcos da modernidade cinematográfica – ‘A Noite’, de Michelangelo Antonioni. Existem cenas de ‘O Passo Suspenso’ que ficam gravadas na mente e o cinéfilo não se esquece – os refugiados que passam interminavelmente nos vagões de trem, o casamento em que os noivos são separados pela fronteira, cada um de um lado, numa margem do rio, à espera de um encontro difícil, senão impossível. Em ‘O Apicultor’, também com Marcello Mastroianni, Angelopoulos mostrou um homem solitário, a própria encarnação do vazio da existência. Mas, naquele filme, embora interessado em ‘adoçar a passagem do tempo’ – sua explicação para o ato de filmar -, ele prescindiu do plano-sequência para criar seu road movie existencial. Talvez seja o filme mais ‘diferente’ do autor, sendo rigorosamente igual aos outros. Mastroianni, o apicultor, perdeu a batalha mítica já na abertura do filme. A mulher e os filhos desertaram e o deixaram sozinho. No primero dia da primavera, como reza a tradição, ele pega suas colméias e as leva para o sul, para comungar em silêncio com a paisagem, meditando sobre o fim da sua estrada. Mas chega essa mochileira, eternamente partindo (como o apicultor parece preso a si mesmo). Angelopoulos fez seu Bergman – silêncio do amor, de Deus. Mastroianni fala em grego, de ouvido, sem entender uma palavra, coisa impressionante. A trilogia de Helena é sobre a história da Grécia no século 20. Em ‘The Dust of Time’, Willem Dafoe é um diretor de cinema que quer contar a história de seus pais. Comunistas, perseguidos em seu país, eles se exilaram na antiga URSS. Uma cena já nasceu antológica. A multidão reúne-se na praça, onde é anunciada a morte do camarada Stálin. O plano é longo e lento. A multidão reúne-se e dispersa-se. Gente chorando, gente sem rumo. Na tela fica somente esse velho que não sabe para onde ir. Quanto tempo dura? cinco, dez minutos? O tempo é uma experiência relativa. Muitas estátuas de Stálin assombram o filme (como já assombraram outros trabalhos do grande diretor). A verdadeira tragédia das guerras civis contemporâneas, Angelopoulos sabe, é que elas só existem porque os homens são ignorantes, não aprendem nunca e acham que a delimitação de fronteiras poderá conter a expansão da sua angústia existencial. A fronteira volta em ‘The Dust of Time’. Talvez seja esse o grande tema a percorrer o cinema do autor, de filme para filme. A angústia humana, potencializada pela extensão do tempo, no plano sequência. O homem moderno distanciou-se do mito. Ulisses, em sua odisséia, continua navegando por mares desconhecidos, sem a perspectiva de um porto seguro no fim do caminho. Helena segue atraindo/distanciando os homens. Angelopoulos é pessimista/realista. Theo, curiosamente, é Deus em grego e o cinema dele não deixa de ser – é – um registro poético da nossa efêmera passagem pelo planeta.
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