sexta-feira, 23 de julho de 2010

Jan Švankmajer e o grotesco

Extraído de http://www.fotolog.com.br/dan77iel/46965594

Jan Švankmajer, multifacetado artista nascido em 1934 na cidade de Praga, atual República Checa, é mundialmente reconhecido por sua obra cinematográfica de grande originalidade, caracterizada pela síntese singular que apresenta entre a animação Stop Motion e o trabalho de atores reais. De forte impacto visual, a obra de Švankmajer evidencia uma enorme erudição, estabelecendo um diálogo denso com a tradição artística ocidental, em especial com uma categoria estética que deita raízes longínquas no passado da arte européia - o Grotesco. No texto que se segue, comento esse diálogo entre a obra do cineasta checo e o mundo ‘estranhado’ das manifestações do Grotesco nas artes através da referência a diversos filmes e às idéias de Švankmajer, bem como a considerações teóricas sobre o Grotesco.

Aqui, me detenho especialmente naquelas considerações tecidas por Wolfgang Kayser, em seu texto clássico sobre o tema - Das Grotesk. Seine Gestaltung in Malerei und Dichtung, de 1957 -, na conclusão do qual o autor enumera três épocas da história do Ocidente nas quais o Grotesco se manifestou com particular insistência: a) o século XVI; b) o período compreendido entre o Sturm und Drang e o Romantismo; e c) a época moderna. Esses três momentos históricos tem em comum o fato de serem eminentemente críticos: neles, os valores aceitos em períodos anteriores foram rejeitados de maneira sistemática e as imagens de um mundo fechado ou de qualquer ordem abrigante tiveram pouca eficácia. Não por acaso, as obras de Švankmajer dialogam estreitamente com a produção artística desses três períodos e será justamente através da análise tripartida desse diálogo que eu pretendo discutí-las no que se segue.

Começo do mais recente para o mais antigo. No contexto de suas relações com a arte do século XX, é fundamental situarmos a obra de Švankmajer no fluxo do pensamento estético surrealista. Coincidentemente, o artista nasceu no mesmo ano em que foi formado o grupo surrealista checo - 1934. Švankmajer dele se tornaria membro atuante, juntamente com sua esposa e freqüente colaboradora, Eva Švankmajerová, após conhecer, em 1970, o escritor Vratislav Effenberger, líder intelectual do grupo. Aqui, é útil frisar que, na República Checa, diferente do que aconteceu na Europa Ocidental, o Surrealismo não se extinguiu às vésperas da 2a Guerra Mundial: muito pelo contrário, de forma análoga à continuidade dada ao movimento com a imigração de alguns de seus mais importantes adeptos para os Estados Unidos, o Surrealismo na República Checa conservou, até muito recentemente, uma singular vitalidade - inclusive, poder-se-ia dizer, mais 'subversiva' do que em seus anos iniciais, se considerarmos a sombria situação política do país, submetido por décadas ao controle do Partido Comunista, com a sua notória intolerância com relação a qualquer crítica ou dissidência ideológica.

Diversos motivos são recorrentes no trabalho de Švankmajer e no dos mais diversos surrealistas, como, por exemplo, a comida, o canibalismo, os manequins ou elementos inspirados no mundo dos sonhos. A relação do Grotesco com os sonhos também é das mais estreitas, como já deixava intuir uma de suas designações primevas, sogni dei pittori (sonhos dos pintores). Nesse sentido, vale a pena lembar como Švankmajer frisou várias vezes a importância fundamental do mundo onírico e do inconsciente no seu processo criativo, tal qual no seguinte trecho de uma entrevista, dada quando do lançamento de seu longa-metragem Otesánek (2000):

[Meu subconsciente] é uma prioriade. Na verdade, prefiro o termo não-consciente. O que quer que emerja de meu subconsciente eu uso porque considero ser uma forma pura, já que tudo o mais no nosso consciente foi influenciado pela realidade, pela arte, pela arte e por nossa educação, mas as experiências originais que existem dentro de nós são as menos corrompidas de todas as experiências.

Além das afinidades temáticas, existem inúmeras referências explícitas a obras surrealistas nos filmes de Švankmajer. O curta-metragem O Apartamento (Byt, 1968) é pródigo nesse sentido: nele, vemos o herói anônimo ser arremesado para o interior de um quarto que, parafraseando o humor das antigas comédias de Hollywood, contra ele conspira com seus objetos: o espelho se recusa a refletir a sua face, mostrando apenas o verso de sua cabeça - exatamente como no quadro Reprodução proibida (1937) do belga René Magrite [Figura 1]; a caneca ou a cadeira mudam de tamanho capriciosamente, crescem e diminuem de maneira que o herói não pode utilizá-las; a colher, repleta de furos, não contêm a sopa; o ovo é tão duro a ponto de quebrar de poder furar a mesa; uma lâmpada de vidro pode abrir, como um aríete, um rombo na parede de tijolos. Essa alucinante sequência de incongruências gera um efeito eminentemente grotesco, como as imagens em diversos poemas surrealistas

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