sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Crítica: Valsa com Bashir (Ari Folman, 2008)

por Rodrigo Carreiro
Extraído de http://www.cinereporter.com.br/criticas/homevideo/valsa-com-bashir/


Filme israelense sobre a guerra do Líbano trabalha de forma sutil o tema da memória e funde documentário com animação.

O cinema contemporâneo do século XXI tem como uma de suas principais características o hibridismo. A mistura de gêneros era algo incomum até mais ou menos a década de 1960, quando o mundo sofreu mudanças radicais e o cinema, idem (nouvelle vague e geração New Hollywood). De lá para cá, pudemos assistir a comédias de suspense, musicais de guerra e todo tipo de fusão fílmica que um dia pareceu difícil de realizar. Há alguns gêneros, contudo, cuja união em um mesmo produto soa absolutamente incompatível. É o caso da animação e do documentário, que possuem duas naturezas opostas por trabalharem com diferentes tipos de percepção da realidade. Pois o maior mérito de “Valsa com Bashir” (Vals Im Bashir, Israel/Alemanha/França, 2008) é operar esse hibridismo impossível de maneira não apenas criativa e original, mas com forte ressonância emocional.

O segundo longa-metragem do diretor israelense Ari Folman foi lançado durante o Festival de Cannes de 2008, sob olhares estupefatos de grande parte da crítica internacional. Ninguém esperava um trabalho tão refrescante e contundente, tão ousado e ao mesmo tempo discreto em sua condenação absoluta da violência institucionalizada. Os elogios foram praticamente unânimes. Daí para frente, o filme percorreu uma bela carreira em festivais ao redor do mundo, culminando com a vitória na categoria de melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro de 2009 (onde bateu concorrentes fortíssimos, como o italiano “Gomorra”), justamente durante um período de violência bélica – o bombardeio de Israel à faixa de Gaza, com quase mil palestinos mortos – que fez a mensagem pacifista da película ressoar de maneira ainda mais forte e simbólica. Isso sem falar da coragem do diretor em comparar, dentro do próprio filmes, as ações bélicas de Israel, seu próprio país, com o genocídio nazista.

Não há dúvida de que o elemento mais importante do trabalho de Ari Folman é a fusão do documentário com a animação. Historicamente, esta mescla parecia impossível. Afinal, são dois gêneros que operam com realidades distintas e não-intercambiáveis. A animação trabalha com o irreal, com o fantástico; filmes que optam por esta linguagem o fazem, normalmente, porque a narrativa exige um tratamento estilizado, propositalmente afastado da realidade. Já o documentário faz o caminho oposto; trabalha com material de carne e osso, tenta reconstruir dentro do espaço fílmico a realidade nua e crua, da maneira mais fiel possível. Se a animação busca o não-real e o documentário vai atrás do real, como alcançar um meio termo? “Valsa com Bashir” prova que no campo estético, com ousadia e inventividade, tudo é possível.

O longa-metragem é uma corajosa viagem pessoal do cineasta por dentro de traumas íntimos que sua mente humana preferiu apagar, numa atitude perfeitamente explicável pela Psicanálise. Folman, que serviu ao Exército de Israel e participou como soldado da invasão do país ao Líbano, em 1982, percebeu que não lembrava nada do período da guerra, com uma única exceção – a imagem de militares israelenses tomando banho de mar, nus, à noite, enquanto foguetes sinalizadores caíam sobre uma cidade parcialmente destruída. Será que aquela imagem teria acontecido de verdade? Ou era um sonho, uma alucinação? Por que ele não conseguia lembrar mais nada – nem um momento sequer – daquela guerra? Para responder a essas perguntas, Folman decidiu entrevistar ex-militares de Israel que participaram do conflito e confrontar as diversas versões do acontecimento.

O fato de trabalhar essencialmente com memórias pessoais foi uma das razões práticas fundamentais para a escolha do formato “documentário de animação”. O cineasta percebeu rapidamente que seu trabalho ficaria visualmente pobre, burocrático mesmo, se recorresse ao normal nesses casos – imagens de arquivo feitas por redes de TV ou reconstituições encenadas dos acontecimentos. Assim, inspirado pelas imagens melancólicas e levemente surreais da ficção “O Homem Duplo” (2006), Folman decidiu ousar e transformar seu filme numa animação em 2D, com artistas recriando tanto os depoimentos quanto as imagens saídas das memórias dos entrevistados.

O resultado é devastador. Graças à utilização desse recurso narrativo original, Folman pôde transformar em imagens relatos de enorme força poética, como o sonho recorrente que um amigo tem todas as noites com 26 cachorros (a impactante seqüência de abertura) e a fuga insólita, pelo mar, de um soldado israelense cuja patrulha foi atacada por libaneses em uma noite de luar. Isso sem falar da surreal seqüência que dá título ao filme, em que o ex-comandante de uma operação israelense no Líbano surta após vários dias de tensão e agonia e sai executando uma louca dança da morte, munido de apenas uma metralhadora, durante um tiroteio. Durante todo o filme, apenas a seqüência final deixa de lado a animação para nos apresentar, em uma curta série de imagens de violência brutal, as razões pelas quais a mente do cineasta preferiu apagar as lembranças da guerra.

O estilo de animação utilizado, em duas dimensões, opta por traços simples e largos, desprezando detalhes. O efeito de três dimensões é dado à moda antiga, destacando com o foco os personagens em primeiro plano do cenário ao fundo. Junto com a paleta de cores escolhida (repleta de laranjas, azuis e tonalidades básicas, levemente irreais), dá ao filme uma adequada qualidade impressionista, que valoriza de forma definitiva o tema subjacente aos relatos. Afinal de contas, mais até do que um documento anti-belicista, “Valsa com Bashir” é um filme sobre o caráter fugidio da memória humana, sempre pronta para distorcer lembranças e preencher lacunas com falsas verdades, por puro instinto de auto-proteção. Um filme tão raro quanto belo.

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