sexta-feira, 25 de março de 2011

Crítica: A Palavra (Carl Theodor Dreyer, 1955)

por Tatiana Hora
Extraído de http://flordehospital.blogspot.com/2008/09/palavra-1955-carl-theodor-dreyer.html

A palavra, do diretor dinamarquês Carl Theodor Dreyer, é, antes de tudo, um filme sobre a linguagem, como o próprio nome indica. Essa palavra que é o que nos torna humanos, pela nossa capacidade de criar símbolos, essa palavra que parece querer tomar conta do mundo e desvendá-lo, essa palavra que pode trazer diversos desentendimentos.

O filme apresenta um homem, Johannes Borgen, que passa a acreditar que é Jesus de Nazaré depois de se debruçar sobre a obra do filósofo e teólogo dinamarquês Soren Kierkegaard, para angústia do seu pai, Merton Borgen, que desejava que o filho se dedicasse à vida religiosa, e via nele o talento para tal devido às suas feições que lembravam Jesus, como também a sua voz de profeta. Algo que se cristaliza no filme é a rigidez dos valores religiosos das duas famílias presentes no filme, e ainda a violência provocada através das aspirações que uns familiares infligem sobre outros do mesmo sangue. Essa violência é produzida por Merton, o chefe da família, em dois momentos: quando ele impõe que Johannes seja pastor, e o filho termina por perder a razão, e quando Merton pede para sua nora Inger lhe dar um neto homem, e, por fim, o filho dela nasce homem, porém morto.

Entretanto, o que se revela muito forte no filme, mais do que relação entre diversas gerações, é a contradição entre razão e misticismo. Logo na primeira seqüência, Johannes sobe no monte junto à sua casa e esbraveja contra todos aqueles que não crêem que ele é o Filho de Deus. Durante o filme, em diversos momentos ele surge perambulando pelos cômodos da casa, proferindo palavras em tom bíblico: “Vocês crêem no Cristo morto, mas não crêem em mim”, brada. Assim como Jesus, que foi renegado por muitos daqueles que aguardavam a vinda do Salvador, Johannes também enfrenta a incredulidade dos crentes. A morte santifica – e Johannes vivo, de carne e osso, não convence os cristãos, que o chamam de louco.

Johannes perde a razão através da própria razão – ele assume a postura de um esquizofrênico pelo caminho da filosofia – irracionalidade e racionalidade se mostram aí como duas faces de uma mesma moeda. E o misticismo, o irracional, o religioso, e a razão e a ciência são apresentados como faces de uma mesma moeda no filme de Dreyer: tanto a ciência quanto a religião são vontades irrefreáveis de compreender a totalidade do universo, de encontrar finalmente a Verdade.

Destarte, com a mesma maestria de Umberto Eco no livro O nome da rosa, Dreyer tece uma reflexão sobre o eterno dilema dos homens diante da linguagem, a procura pela verdade, pela intersecção entre linguagem e realidade. Se na obra de Umberto Eco uma biblioteca medieval guarda às sete chaves os livros sagrados, a verdade escrita por Deus, e nela acontecem diversos assassinatos em virtude de um livro proibido, no filme de Dreyer a luta a respeito da Verdade acontece quando a fé de Merton vai de encontro à fé de Peter. Tanto Merton quanto Peter são cristãos, mas, mesmo guiados pela palavra do mesmo Deus, eles divergem, e Peter não permite que sua filha Anne se case com o filho de Merton, Anders, por eles serem de religiões diferentes.

O conflito entre Merton e Peter assume maiores proporções quando o primeiro vai à casa do segundo com o objetivo de pedir permissão para que seu filho Anders se case com Anne. Depois de eles se digladiarem ao tratar sobre a legitimidade de sua fé, Merton recebe um telefonema informando que sua nora Inger está adoentada em pleno trabalho de parto. Peter, tomado pelo ardor das discussões com Merton, afirma que tal fato era um castigo para guiar Merton no caminho do verdadeiro Deus.

A Morte, assim, aparece como um elemento que perturba os personagens na sua relação com o mundo. A Morte põe em cheque a fé e a existência. Para Wittgenstein, em seu Tratactus Logico-Philosophicus, caso compreendamos a eternidade como duração atemporal, “vive eternamente quem vive no presente”. Essa fala desloca o sentido de uma vida após a morte para negligenciar a continuidade do tempo e a própria morte. No filme, a Morte surge como representação do Místico, daquilo sobre o qual não podemos falar, e o que nos causa estupefação. Na noite em que Inger agoniza com as dores do parto, Johannes anuncia que ela morrerá, mas que ele se encarregará de ressuscitá-la.

Da mesma maneira que Jesus Cristo fez ao ressuscitar o falecido Lázaro, Johannes pretende provar que é Deus superando a Morte. Não obstante, ninguém acredita que ele fará tal milagre, exceto a pequena Mareen, uma das filhas de Inger, e Johannes, assim como Jesus, afirma que as criancinhas são maiores no reino dos céus.


Na cena em que ele fala à Mareen que sua mãe morrerá, como em outros diálogos do filme, Dreyer coloca a câmera de forma a auscultar os personagens rondando em torno deles. Nesta obra, o diretor opta pelos movimentos de câmera em lugar do jogo de campo/contracampo, como presente em outro filme seu, A paixão de Joana D’arc (1928), em que ele havia explorado o plongée e contre-plongée para contrapor o sentimento de superioridade dos inquisidores e a humilhação de Joana D’arc. Em A palavra, Dreyer pouco se utiliza do campo/contracampo e, em lugar desse recurso, usa travellings para apresentar diálogos entre os personagens. Através dos travellings, a câmera se movimenta como se estivesse à espreita – ela investiga a cena e se move junto com ela.

O filme faz ver o invisível, quando enfatiza o movimento das roupas no varal provocado pelo vento, e ressalta a passagem do tempo através do tic-tac do relógio da sala dos Borgen, barulho que fica ainda mais evidente nas seqüências em que os personagens se afligem na sala da casa da família diante da iminência da morte de Inger. Após minutos de muita angústia dos familiares, o médico sai do quarto com ar de missão cumprida. O pastor chega à casa dos Borgen e há um momento em que ficam lado a lado o pastor e o médico, a religião e a ciência. O médico questiona sobre o que havia salvado Inger, se sua competência ou as orações de Merton, e este último elogia o poder da fé. O pastor, crédulo e incrédulo, parabeniza a atuação do médico e, sobre a existência de milagres, afirma: as leis naturais são leis de Deus, e Deus não contrariaria as suas próprias leis. O médico questiona:

– Mas e os milagres de Cristo?

– Os milagres de Jesus aconteceram em contextos particulares.

Não havia mais milagres. Não havia mais milagres por quê o homem agora tinha um novo deus, a ciência? A ciência assegura que há leis naturais. A filosofia chega a questionar essas leis aparentemente inquestionáveis. Segundo Wittgenstein em seu Tratactus, “que o sol nascerá amanhã não é uma certeza concreta, mas uma necessidade lógica”. O fato de o sol nascer todos os dias não infere que ele não possa simplesmente deixar de aparecer amanhã. Wittgenstein, dessa forma, aponta os limites da linguagem. Para o filósofo, o que está além da linguagem é o Místico. E a Morte é o elemento místico do filme. Johannes desafia as leis naturais.

Logo após a saída do médico, Johannes afirma que Inger está morta. Ele aponta para uma luz que adentra a sala. Anders explica que se tratava da luz do farol do carro do médico que estava partindo. Johannes se espanta e afirma que um determinado barulho era a morte chegando para Inger. Anders informa que, em verdade, era o carro do médico dando partida. Destarte, o encanto diante do mistério e o desencanto através de explicações racionais se contrapõem na cena. Por fim, Mikkel, o marido ateu de Inger, sai do quarto e dá a notícia da morte dela.

Após o falecimento de Inger, Johannes foge de casa. A sua morte traz a união entre Anne e Anders, pois Peter se arrepende de ter desejado o falecimento de Inger como forma de provar a Merton a verdade do seu Deus. Mais tarde, Johannes retorna para casa, justamente no velório de Inger.

Admirados com sua volta, seus familiares se mostram esperançosos de que ele esteja curado. No entanto, ele afirma que irá ressuscitar Inger. Johannes chegara logo após Merton dizer que o corpo de Inger será enterrado, para revolta de Mikkel, que grita “eu também amava o corpo dela!”. O corpo, esse lugar profano, impregnado de vida, ele é prova da existência.

Johannes, então, ressuscita Inger. Como o Deus que se fez corpo, que trouxe Lázaro de volta à vida, e que ressuscitou no terceiro dia após sua morte, Johannes também desafia a Morte e a transcende. Não seria a Morte o grande mistério da vida? Johannes ressuscita Inger através da palavra. É quando o filme aponta a palavra e a vontade de objetivação, o tornar-se realidade a partir da linguagem. Assim como o Deus que criou o mundo a partir das palavras - faça-se a luz- Johannes traz Inger de volta à vida através da palavra. Após levantar-se, Inger abraça seu marido e o beija ardentemente. O corpo em contato com outro corpo, o corpo como certeza da vida, a vida havia superado a morte.

O filme de Dreyer não termina por defender a fé contra a razão. O diretor antes faz um elogio ao Místico, àquilo sobre o que não podemos falar. Dreyer coloca em cheque o poder da linguagem, a pretensão do homem de conhecer e domar o mundo. Um "louco" prova a sua verdade aos incrédulos contra os quais havia bradado na cena inicial do filme. A história desafia as leis naturais – uma morta é ressuscitada! - e o espectador cai na estupefação diante daquilo que não consegue explicar.

Um comentário:

MARCELO disse...

Olá!

Ontem, finalmente assisti o dvd de A Palavra, com intenção de resenhá-lo em meu blog Labirintos do Ser. Fato que vinha adiando por várias razões. Em poucas palavras, filme perfeito, magnífico e perturbador. Indispensável para nossa formação estética e humanista. Agora é mãos à obra. Em breve publicarei esta postagem.
Pesquisando imagens do filme,constatei a variedade de interpretações que o filme provoca. Deparei com a sua página,e quero parabenizá-lo pela qualidade do blog de cinema que possui. Tomo a liberdade de adicionar seu blog na lista de links do meu.

Prossiga com o excelente trabalho!

Abraço. Marcelo