Extraído de http://www.ufscar.br/rua/site/?p=16
Um passeio pela noite khouriana
A partir da seqüência de apresentação dos créditos, já tomamos consciência do peso do filme que está por vir. Envolvidos pela música soturna, densa e contida de Rogério Duprat, somos apresentados a uma série de manequins carcomidos. São rostos e bustos semidestruídos, expostos parcialmente, acobertados que estão pelas sombras, presentes física ou psicologicamente por todo o filme. Mas basta atentar um pouco à cena para perceber que nós não somos os únicos observadores – as faces desfiguradas nos espreitam. Juntam-se, aqui, as mãos praticamente roídas que se estendem na escuridão, que se sobrepõem em imagens – mas nunca se tocam. Altamente representativo na obra, o gesto adianta a distância e o deslocamento dos personagens entre si e da realidade.
E se a densidade anterior nos causa certo estranhamento, posta assim como está, a seqüência seguinte, na qual nos é apresentada a cidade, é igualmente marcante. Filme intimista, Noite Vazia não se prende à cidade-locação, que, aqui, poderia ser genericamente qualquer uma; o importante neste centro urbano nos é evidenciado no modo como Khouri o constrói: uma São Paulo dos anos 60, com aproximadamente cinco milhões de habitantes, em um recorte urbano. São cenas do trânsito e de prédios que acompanham a escuridão dos créditos iniciais. Também rodeada pelo peso da música de Duprat, a cidade, em alguns momentos, apresenta-se como um ideal metropolitano, formada por prédios altos, letreiros luminosos e um trânsito intermitente; em outros, torna-se mais clara a sua releitura como um centro disforme, turvo, perdido em meio às sombras da noite khouriana – seca.
O ritmo do filme, por sua vez, é um ponto interessante. Ainda que inquestionavelmente bem construído, constante e fluente, é destoante. Ou melhor, mal escolhido. A obra procura trabalhar a angústia frente à realidade e aos dramas psicológicos; tudo sem qualquer perspectiva de solução. Trata-se, o filme, de um grande ciclo, uma angústia físico-mental de quatro personagens que permanecem em suas rotinas, testando uma saída que, desde já, reconhecem falha. É o retrato de uma noite que foi igual à anterior e será igual à próxima: todos estão conscientes de suas agonias, mas repetem seus gestos como que para preencher um tempo/vazio impreenchível, como uma grande encenação em busca de uma solução que já não esperam. Admitido isto, o ritmo esperado seria arrastado, contido, sofrido como os protagonistas. O que percebemos, não obstante, é algo mais aliviado, leve em alguns momentos, com takes não muito longos – o oposto do peso requerido pela obra. O ritmo funciona bem, mas para outro filme.
Talvez a opção pelo ritmo mais brando seja a aproximação de um filme mais “palatável”. Contemporâneo às produções do Cinema Novo brasileiro que ainda se distanciavam visivelmente do consumo cinematográfico geral, Khouri, é possível, mesclou em sua obra aspectos que a tornassem mais acessível ao grande público. Ou ao que aguça o imaginário de parte deste: consideramos, aqui, a cena de lesbianismo entre Regina (Odete Lara) e Mara (Norma Bengell). É um dos poucos momentos em que o sexo é tão trabalhado e evidenciado – embora não possamos negar a qualidade com a qual o diretor conduz a seqüência e constrói o desconforto de Mara e o exibicionismo de Regina. A montagem da obra é sutil e precisa; transmite o necessário. Sendo assim, Khouri, utilizando certos pontos com ou sem a intenção de aproximar-se do público, apresenta-os sempre coesos e bem desenvolvidos. Ele consegue que até mesmo seus aspectos/cenas desafinados sejam agradáveis.
Aproveitemos também para analisar uma pista deixada pelo diretor em seu filme. No final da madrugada, perdido em si, Luís (Mário Benvenutti) se senta para folhear algumas revistas deixadas sobre a mesa da sala. Em uma destas, o anúncio da viagem do homem à Lua; é perceptível o recorte da câmera para possibilitar a leitura da frase: “As pesquisas espaciais são, na realidade, vitais à sobrevivência da espécie humana”. Percebemos aqui a ironia de Khouri. Inserido em um momento histórico que ainda vivia as corridas armamentistas e espaciais da Guerra Fria, o diretor pouco se interessa por discuti-las; apresenta-as como de pirraça – mostra-as justamente para lembrar-nos de que não falará sobre elas. Khouri não abraça o mundo para modificá-lo ou contestar a situação em que se encontra; recorta decididamente os dramas intimistas de uma burguesia metropolitana, retratando-a sem qualquer perspectiva de melhora. É cinema sem esperanças. Ainda assim, não podemos ignorar que o destaque dado à frase também possa ser entendido como uma crítica feita a uma sociedade que ignora a degradação psicológica de seus indivíduos, mas clama inflamada pela inovação tecnológica.
Produzido em um esquema de cinema independente, Noite Vazia teve sua produção distante das grandes produtoras, restringindo-se quanto ao uso de meios técnicos, o que se evidencia no uso da já tratada iluminação ou da captação do áudio, de difícil compreensão em alguns instantes. Sofreu, ainda, como qualquer obra afastada das grandes corporações, problemas em sua distribuição e exibição, o que dificulta o acesso às suas cópias e o mantém como mais um dos grandes filmes brasileiros não vistos por sua população, conhecidos apenas por um pequeno grupo cinéfilo. Tal mecanismo de produção independente, porém, possui suas qualidades, visto que não se prende às regras comerciais. A obra de Khouri, portanto, encontrou-se livre para se construir a partir de um esquema de autor, esteticamente livre. Filme singular, afasta-se até mesmo do já esperado (e cultuado) modelo de cinema independente do período, o Cinema Novo. Foge, a mais, do esperado diálogo com os problemas nacionais; revela-se um filme possível em qualquer outro país. Neste estado, distante dos dois pólos de produção famosos no período, Noite Vazia alcança a liberdade em sua linguagem de proposta intimista e sem elaborações de acusações ou respostas em seu discurso.
Mas ainda que juntássemos todos os seus problemas, seu corpo não seria abalado; permaneceria como uma das memoráveis obras do cinema brasileiro. E, na verdade, não se precisaria dizer muito do filme; caberia, enquanto resumo da obra, uma simples frase pronunciada pelo personagem Nelson (Gabriele Tinti): “o que é diferente sempre tem dono”.
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