sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Crítica: Bang Bang (Andrea Tonacci, 1971)

por Carlos Fernandes
Extraído de http://setimofilme.wordpress.com/

UM CINEMA ANTIFILME

Um cinema que se afasta do filme. Que o nega. Por vezes, o ridiculariza. E continua sendo cinema. Em estado puro. Seria possível? Basta assistir Bang Bang e você poderá verificar como. Para vocês terem uma idéia, é muito difícil elaborar uma boa sinopse do filme. A melhor sinopse possível do filme é feita por um de seus próprios personagens: “Era uma vez três bandidos muito maus. Dizia-se que um deles era a mãe dos outros, mas nada se sabia ao certo. Roubavam tudo, matavam tudo, comiam tudo. Mas isso também não se sabia ao certo”.

E, mesmo assim, está muito, mas muito aquém do que realmente é este filme. Ou seria um antifilme?

Um cara discute com um taxista, o mesmo cara aparece com uma cabeça de macaco e canta para o espelho, bandidos dão tiros para todo o lado e comem o tempo todo, o mesmo cara que discutira com o taxista trava dois diálogos totalmente non-sense com um bêbado e, posteriormente com uma mulher. Ao fundo da discussão com a mulher, os assaltantes fazem caretas. O macaco aparece em um tiroteio. O cara discute com o taxista novamente. Tudo isso acontece, sem lógica nenhuma, sem ligação nenhuma, tudo solto, deixando-te atordoado. Há um enorme esforço anti-narrativo. O diretor Andrea Tonacci explode a narrativa e tenta recolher os cacos dela. Depois de recolhidos, explode novamente. E faz isso ciclicamente, ao longo de todo o filme. Ao final, o bandido “mãe”" tentar nortear a narrativa e fala aquele texto que transcrevi no primeiro parágrafo. Você fica esperando por mais e eis que então surge uma torta que atinge sua cara, no melhor estilo O Gordo e o Magro. E a narrativa explode novamente. E você continua atordoado, sem entender nada.

Ou melhor, entendendo nada, mas ao mesmo tempo, entendendo tudo. Sim, entendendo tudo. E, de repente, você deixa de estar atordoado pela aparente falta de lógica dos planos, mas atordoado por conta da espetacular beleza cinematográfica do filme.

Bang Bang faz parte de um movimento cinematográfico brasileiro que foi chamado de Cinema Marginal surgido no final da década de 60 e que tem como marcos iniciais A Margem (Ozualdo Candeias, 1967), Matou a Família e foi ao Cinema (Julio Bressane, 1968) e o ES-PE-TA-CU-LAR O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968). O Cinema Marginal surge como um contraponto ao Cinema Novo, acusando-o de ter se aburguesado, de ter se tornado mercadoria, de ter se tornado um cinema de estética européia, longe do contato com a realidade brasileira. O Cinema Marginal propunha uma radicalização, que os filmes deveriam ser sujos, “mal feitos”, narrativamente desestruturados. Propunham uma “estética do lixo”, um estilo que seria mais apropriado para um país pobre e dominado como o Brasil. Realizar um cinema totalmente subdesenvolvido. Julio Bressane, diretor marginal, diria em uma entrevista: “Do jeito que está, só temos uma maneira de filmar: com lixo”.

O Cinema Marginal preocupou-se em descrever a identidade subdesenvolvida brasileira, exibindo as nossas maiores vergonhas: a alienação, o comodismo e a falta de educação. Pelas telas desfilavam personagens renegados à margem, da boca do lixo, como trabalhadores braçais, bandidos (que viram heróis, como O Bandido da Luz Vermelha), traficantes e prostitutas. Devido a esse subdesenvolvimento do povo e dos tempos de censura e repressão por conta da ditadura militar, os cineastas marginais eram pessimistas em relação à transformações políticas e socias e recheavam seus filmes com ironia, deboche e sarcasmo, as únicas armas que viam como instrumentos para denúncia social do país. No filme, O Bandido da Luz Vermelha, o próprio bandido fala uma frase que resume bem essa proposta: “Quando a gente não pode fazer nada a gente avacalha… avacalha e se esculhamba.” Entretanto, essa esculhambação não trazia satisfação; carregava-se os filmes de agressividade como forma de auto-flagelação.

Bang Bang talvez seja o mais debochado e ousado filme do movimento. Além de exibir as características dos filmes marginais, ele vai além na questão da desestruturação narrativa e rompe totalmente com ela, propondo um completo descomprometimento com a linha narrativa. É a torta na cara quando o bandido vai explicar a história. Além disso, Tonacci deixa a câmera visível e rompe com a barreira público/filme; nos colocando em direto contato com os personagens. Os bandidos riem para a câmera porque estão rindo de nós, sujos, pobres, subdesenvolvidos. Somos ignorantes como eles. Os diálogos são grosseiros porque somos grosseiros. É um macaco que canta “Eu sonhei que estavas tão linda” e nós assistimos. Por fim, Tonacci ainda satiriza os filmes policiais americanos, desconstruindo os tiroteios, perseguições de carro e a figura do bem contra o mal. Naquele momento, no Brasil, os carros não perseguiam os bandidos e era muito difícil de diferenciar esses dos mocinhos.

Assistir Bang Bang nos coloca para refletir sobre a covardia do cinema nacional dos últimos anos. Salvo uma ou outra exceção, sinto que atualmente falta coragem para se romper barreiras e buscar um novo cinema, sem fórmulas, sem convencionalismos. Precisa-se buscar uma visão ousada e inovadora. Buscar uma nova maneira de fazer cinema. Uma nova maneira de se expressar artisticamente. Que Bang Bang sirva de inspiração.

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