“Sonhos” são 8 episódios em que sempre começam com os dizeres em japonês: ”konna yume wo mita” (vi um sonho assim), que mostra um Kurosawa questionando as grandes preocupações da psique humana que nos atormentam: a morte, a culpa, a vida humana posta em perigo por usinas atômicas, a preservação da natureza, o papel das artes na nossa vida, os ditames impostos pela sociedade de consumo. São as preocupações de todo ser humano, mas apenas artistas de sensibilidade como Kurosawa conseguem deixar sua mensagem em forma de arte. O cineasta escreve ou como artista plástico, pinta poesia na tela: envolvente pelas imagens, pela linguagem e personagens metafóricas. Como na poesia, ao final dos versos, faz do bem estar do homem em sociedade a rima comum.
A natureza e a rígida hierarquia da sociedade japonesa ocupam lugar de destaque nas mensagens de Kurosawa: um menino, desobedecendo ordens maternas, assiste ao casamento da raposa em dia de sol e chuva. Ao regressar, a mãe dá-lhe um punhal deixado pela raposa, dizendo que ele sabia a solução para o caso, e o menino sai em direção ao arco-íris, possivelmente procurar a raposa. A imagem do punhal e a idéia do seppuku (suicídio pelo desventramento) diante da desobediência é por demais aterradora ao menino que busca então a concórdia e o perdão da raposa ou uma solução no irreal mundo da fantasia, poupando sua vida, no pé do arco-íris. Num outro episódio é levado por força misteriosa à plantação de pêssegos da família. Aí encontra a alta hierarquia japonesa, identificados pelas vestes e pelo estilo de música “Gagaku” (dança dos guerreiros imperiais pela paz), todos reunidos condenando-o pela destruição das plantas. O menino chora e defende-se confessando que também ficara desapontado por não ver flores. A confissão de amor pela Natureza, em consonância com o desejo das autoridades faz cair sobre si as flores, antes desaparecidas.
As bombas atômicas são lembranças ainda bastante aterradoras na alma de Kurosawa: os efeitos da radiação produzindo monstruosidades na natureza e nos seres humanos, causando terrível sofrimento. Mas no último episódio, vemos um cineasta crítico, porém sereno, deixando grandes mensagens à sociedade de consumo. Critica as modernidades da nossa sociedade que nos faz lembrar o humor refinado e sábio de um Sócrates que abordado por vendedores quando passeava pelas ruas do comércio de Atenas, costumava responder: “não, obrigado, não desejo nada. Estou apenas vendo quanta coisa de que não preciso para ser feliz”. Neste episódio a vila inteira participa alegremente do funeral de uma anciã de 99 anos, dançando e cantando, em homenagem aos bons dias que a mulher viveu entre eles. O sábio velhinho que vive integrado à Natureza é sem dúvida, o alter ego do cineasta, que socraticamente, como a personagem, nunca aprendeu a dirigir um carro. Dizia apenas que achava muito difícil.
O insondável da psique humana é notavelmente abordado nos episódios relacionados à morte: os extenuados caminhantes na tempestade de neve, são visitados por uma mulher bonita, diáfana, de feições indefinidas, calorosa, acolhedora. O final do sofrimento poder-se-ia então dar-se nos braços calorosos desta mulher, uma volta ao nosso confortável inconsciente com o abandono do consciente, que ali representa apenas o sofrimento.
Mas os caminhantes recusam sua companhia e prosseguem viagem, entrevendo-se a aproximação entre o real e o imaginário, potencializados pelo fragilizado e desesperador estado de espírito, momento em que o consciente parece se igualar ao inconsciente, separados apenas por uma tênue e frágil linha divisória.
Em “O Túnel”, não estão presentes apenas o sofrimento atroz causado pela guerra com a morte de vários companheiros. As lembranças e os terrores psicológicos do episódio estão ali visíveis. O tenente, terminada a guerra, na volta para casa, entra num túnel totalmente escuro. Ali fica extremamente aterrorizado ao encontrar um cão feroz que, sem o ferir, mostra-se extremamente agressivo. O cão carrega alguns documentos enrolados ao dorso. Ao deixar o túnel, atrás de si emerge seu pelotão comandado por um sargento, todos mortos na guerra. O tenente diz-lhes então que se envergonha de estar vivo, quando todos eles morreram, e lhes pede perdão num sentido ato de mea culpa. Mas, por estarem mortos, pede-lhes que retornem. O tenente acompanha então a volta do pelotão até o interior do túnel e é novamente atacado pelo cão feroz, mas desta vez, não recua, não demonstra medo, dando a entender que enfrentou e superou a terrível culpa que o atormentava no obscuro inconsciente. Como a Esfinge da mitologia grega, diante do impasse “decifra-me ou devoro-te”, Kurosawa optou por devorar a culpa. E a decifrou.
A busca da arte como objetivo de vida, ou a realidade é derivada da arte, ou ainda realidade e arte são uma coisa só. Talvez caiba ainda uma outra interpretação do episódio: para se sentir realmente a arte, preciso mergulhar nela. Ou ainda, só pelo amor à arte posso vivenciar os prazeres que ela me oferece – algo indefinível, mas lúdico – e somos novamente levados a um passeio pelas mãos do mestre, na fronteira entre a realidade e a fantasia. É como um haicai: cabem múltiplas interpretações. Kurosawa, como no haicai, apenas sugere, pela irreal via reversa, transformando arte em realidade ao se transfigurar os quadros de Van Gogh para o cenário presente. Como diz Yone Noguchi, o que faz a beleza do haicai é a interpretação do leitor. Aqui também, o fato único mas revestido de uma multiplicidade de significados possíveis faz a riqueza do episódio. Kurosawa, também pintor, expressa seu maior desejo na personagem que fica satisfeito ao encontrar Van Gogh (interpretado por Martin Scorsese), de quem recebe lições de pintura. Lírico, as obras do mestre são carregadas de sentimentos.
Diz-se que quem nasce japonês, morrerá japonês, tão forte é a carga cultural que molda a personalidade do nipônico desde o berço. Kurosawa é produto dessa cultura demonstrado nos temas de seus filmes. O amor pela Natureza e a estética de significados do xintoísmo, a preocupação com o equilíbrio mental do zen-budismo e a ética social do confucionismo, revestidos pela alma de um humanista, pacifista nos ideais, poeta nos métodos, crítico sutilmente sarcástico na advertência à sociedade consumista, fazem de “Sonhos”, obra de rico conteúdo e beleza que, como nas outras obras do mestre, nos convidam a pensar.
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