segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Crítica - Dolls


por Humberto Pereira da Silva, professor de filosofia da Universidade São Judas Tadeu

Bunraku é o nome dado ao teatro de marionetes japonês. Mas, com esse nome, não se quer fazer referência apenas à arte na performance com as marionetes, e sim a narrativas que, cá no ocidente, assumem a feição de parábola. O bunraku, de fato, é uma forma bastante refinada de expressão artística, que resulta da combinação de três habilidades: a manipulação de bonecos, a recitação joruri e a música shamisen. Os bonecos que aparecem no bunraku tanto se movem quanto expressam surpresa com os olhos, abrem e fecham a boca e, ainda, gesticulam graciosa e realisticamente com mãos e pernas. Cada boneco é operado por três manipuladores, que trabalham em perfeita sincronia. Os manipuladores carregam os bonecos sobre o proscênio e são visíveis para os que estão na platéia. Essa é a estrutura dessa forma de arte genuinamente japonesa, da qual se pode ver uma aula na sequência de abertura em “Dolls”, filme mais recente de Takeshi Kitano, o mais destacado cineasta japonês da atualidade.

Kitano tornou-se conhecido no Brasil ao alternar cenas de ternura e extrema violência em filmes como “Hana-Bi” (“Fogos de Artifício” – 1997) e “Brother” (2000). A abordagem de aspectos explícitos da violência acabou por colocá-lo ao lado de cineastas como Quentin Tarantino e Jonh Woo, mas recomenda-se ver os filmes de Kitano imune a comparações apressadas. Desde “Violent Cop” (1989), seu filme de estréia, Kitano escapa ao catálogo dos gêneros e, com “Dolls”, tem-se a oportunidade de apreciar um tipo de filme em que os laços entre o passado e o presente são recobertos por paisagens naturais e urbanizadas, numa simbiose tão rara quanto complexa, uma vez que praticamente não há exemplo similar nos filmes europeus ou americanos. Eis então a marca dos filmes de Kitano: estender uma ponte entre o tradicional e o moderno, para exibir a convivência de valores que não foram diluídos com o tempo. Não à toa, em “Dolls”, cuja ação se passa na aurora do século XXI, o pano de fundo é uma concepção artística que remota ao XVII, ao teatro de Takemoto-Gidayu, ou seja, a um Japão, como se sabe, absolutamente fechado a influências externas.

Inspirando-se na emoção e na feição de parábola representadas pelas bonecas do teatro bunraku, Kitano entrelaça, em “Dolls”, três histórias nas quais estão presentes, na mesma medida, uma natureza elegíaca e a predeterminação humana. Na primeira, Matsumo e Sawako, dois jovens numa sociedade que respira os ares da modernidade, planejam se casar. Não contam, entretanto, que os pais do rapaz têm outros planos. Matsumo rompe com Sawako e decide satisfazer a vontade paterna, mas, no dia de seu casamento, fica sabendo que Sawako falha ao tentar cometer suicídio e perde a razão. Diante da situação Matsumo faz uma escolha extrema: desiste do casamento e vai ao encontro de Sawako.

Na segunda narrativa, Hiro é um velho chefe da Yakuza. Solitário, está mal de saúde e sente que a morte está próxima. Passa, então, a rememorar acontecimentos de sua vida. Tem importância especial em sua memória afetiva a lembrança de uma jovem que fora sua namorada e que deixara esperando num parque, ao mudar da cidade em virtude de uma proposta de emprego mais vantajosa. Hiro decide visitar o parque e tem uma surpresa desconcertante: sua namorada, enlouquecida, ainda o espera, no mesmo banco do parque, trinta anos depois.

Por fim, na terceira narrativa, a jovem Haruna Yamaguchi passa os dias olhando o mar. Seu rosto está coberto de ataduras, como consequência de um acidente automobilístico. Antes do acidente, Haruna era uma jovem estrela da música japonesa, perseguida em todos os cantos por uma legião de fãs. Dentre seus fãs desponta um policial de trânsito cuja fixação por Haruna atinge a obsessão. Por isso, ele perde a razão ao tomar conhecimento da notícia do acidente.

Em “Dolls” podem-se notar duas qualidades que, creio, são incontestes. A primeira refere-se à presença constante de uma natureza idílica, imutável diante das ações humanas. Nas três narrativas, a flora japonesa desponta para sugerir que, para além do burburinho da vida moderna, há algo intangível, completamente alheio à passagem do tempo e aos acontecimentos do mundo. A segunda qualidade em “Dolls” está na maneira como Kitano trabalha concomitantemente reminiscências e alegorias. A evocação elegíaca, através de flashbacks pouco convencionais, força a atenção do espectador para o tempo da ação, para o sentido das lembranças. No tríptico de Kitano, no entanto, não há saída para a salvação. Ainda que o paraíso não tenha sido perdido (a natureza está presente o tempo todo), não há caminho para a redenção.
Creio, com isso, que essas duas qualidades destacadas em “Dolls” são suficientes para colocá-lo entre os grandes acontecimentos da arte nesse início de século. Elementos como natureza elegíaca, predeterminação humana e o teatro bunraku se entrelaçam para provocar uma reflexão acerca da condição humana, quando posta diante da paixão e da morte.

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