sexta-feira, 3 de abril de 2009

Crítica - Memórias do subdesenvolvimento


por Anubis Galardy
extraído de http://www.socialismo.org.br/portal/arte-cultura

Memórias do subdesenvolvimento, um filme sempre jovem

Basta repassar seus filmes para comprovar como o legado do cineasta cubano Tomás Gutiérrez Alea (Titón) se mantém, sem perder um milímetro de sua profundidade e frescura, provocativo e incitante, intacto em sua capacidade de arriscar.

A prova mais eloqüente é, quiçá, Memórias do subdesenvolvimento, transmitida este verão num dos espaços televisivos da ilha, para desfrute maciço de cinéfilos mas, sobretudo, como presente especial para um público jovem.

Um público ao qual põe em contato com as coordenadas históricas que o antecederam, mediante uma visão lúcida e crítica que aborda a realidade desde planos contrapostos, entretecidos numa relação dinâmica, dialética.

Uma realidade vista desde o prisma subjetivo do protagonista, Sergio, ao qual se contrapõe a realidade vital, objetiva, que o rodeia “e que pouco a pouco o vai comprimindo num cerco até sufocá-lo no final”.

Obra de rotundo esplendor, filmada en 1968, audaz artística e conceitualmente, Memórias do subdesenvolvimento foi consagrada pela crítica internacional entre as 100 melhores da história do cinema.

Baseada no livro homônimo de Edmundo Desnoes, Titón traduz às vezes literalmente passagens do romance, e outras vezes elege a livre interpretação cinematográfica, o prazer do risco e a aventura da arte.

Não nos importa em definitivo refletir uma realidade mas enriquecê-la, excitar a sensibilidade, desenvolvê-la, detectar um problema, assinala em seus apontamentos de trabalho publicados no número 45-46 da revista Cine cubano, em 1968.

Não queremos suavizar o desenvolvimento dialético mediante fórmulas e representações ideais, acrescenta, mas vitalizá-lo agressivamente, constituir uma premissa do desenvolvimento mesmo, com tudo o que significa de perturbação da tranqüilidade.

A fita mistura recursos de índole diversa, como o confessou o próprio Titón em suas notas: fotos, fragmentos de noticiários, documentos diretos, testemunhos, gravações de discursos, câmara oculta para filmar na rua.

Com um roteiro aberto ao imprevisível até o final – incluído os processos de edição e dublagem -, e com as limitações que impunha o próprio subdesenvolvimento, o cineasta tirou dessas limitações o máximo partido e apostou, sem duvidar, todas suas cartas no jogo.

“Devo dizer que este é o filme em que me senti mais livre (...), tinhamos a convicção de que o que estávamos realizando não seria logrado plenamente, que estaria cheio de descuidos e sujeiras”.

Mas também sabíamos que expressávamos o que queríamos e que portanto estávamos aportando algo nosso, sublinha.

Da fita emerge a imagem de um país e uma sociedade que nascem para tempos novos, a uma virada radical de sua história, levando sobre seus ombros a carga pesada do subdesenvolvimento.

Uma sociedade que deve empreender um caminho inédito, mas não reto e despejado, senão que tortuoso e mutante, salpicado de falsos atalhos, cimentado a partir de tropeços e erros. Um caminho que deve descobrir por si mesma.

O resultado é um filme deslumbrante, com uma poderosa carga sugestiva, revolucionária no sentido mais profundo e abarcador do termo.

Complexa, lúcida, inteligente e sensitiva, em seu momento o crítico do The New York Times Peter Schjeldahl a qualificou de obra mestra. É um milagre, disse, e também uma sacudida.

O cinema de Titón, no qual a polêmica, a lucidez, a ironia e o humor negro são componentes essenciais, inclui um punhado de filmes reveladores que põem o dedo na chaga dos problemas mais agudos como una via para enfrentá-los.

Ademais da jóia de Memórias do subdesenvolvimento, estão A morte de um burocrata, As doze cadeiras, Os sobreviventes, A última ceia, e Uma luta cubana contra os demônios, incompreendida em seu tempo.

Mas vale citar sobretudo o que constitui seu filme-testamento, Morango e Chocolate, quiçá o mais belo e comovente de sua cinematografia.

Em uma recente entrevista concedida à BBC Mundo, sua viúva, a atriz Mirtha Ibarra, com quem rodou Até certo ponto, evocou a honestidade do realizador, cuja obra é expressão de uma absoluta coerência ética e estética.

Sempre fiz os filmes que queria, disse o que queria e dei sempre o último corte, sustentava. A frase o personifica de corpo inteiro.

“As dificuldades que entranha nosso processo, afirmava, o reconhecimento dos obstáculos objetivos e da luta incessante, obsessiva, contra os obstáculos subjetivos estão no centro de minha atividade como cineasta”.

A serviço disso pôs seu talento e um elevado senso de responsabilidade.

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