Carros, mar. Pratos, copos, talheres. Música. Lâmina de barbear, água, chuva. Passos, porta, bica. Música. Ruídos. De todos os tipos. Essa é a principal matéria-prima de SUÍTE HAVANA, o novo filme de Fernando Pérez, considerado o mais importante realizador cubano da atualidade.
Com sensibilidade, o diretor descreve o cotidiano de um punhado de cidadãos de Havana, uma cidade vitimada pela pobreza que os anos de socialismo e o bloqueio econômico impuseram. Uma pobreza diferente da nossa, que convive cara-a-cara com a opulência. Essa, se há (e com certeza há, porque onde há ditadura há corrupção), é destinada a tão poucos que se torna vergonhosa demais para ser mostrada. Em seu documentário, Pérez optou por não usar entrevistas e por filmar detalhadamente o cotidiano das personagens. Os planos são todos muito bem calculados, alguns rodados com suportes como carrinhos e grua, maquinário pouco utilizado em documentários. As seqüências foram montadas com planos e contra-planos, numa outra referência ao filme ficcional, onde o diretor tem o tempo de decupar, ou seja, de criar a cena a partir da montagem dos planos. A maioria dos documentários é filmada no calor dos acontecimentos, muitas vezes com câmera na mão.
Radicalizando no sentido de ritualizar o cotidiano, o diretor abre mão por completo dos diálogos (incluindo aí as entrevistas), deixando que os ruídos contem as histórias das pessoas. Diz-se que somos aquilo que fazemos, não o dizemos que vamos fazer. Esse parece ser o raciocínio de SUÍTE HAVANA. Como nós brasileiros, os cubanos são muito musicais. Isso aparece nas histórias dos personagens que trabalham com a música (há um ator, um bailarino, um transformista e um músico no filme), na diversão dos demais personagens e na fantástica trilha sonora de Edesio Alejandro e Ernesto Cisneros, o primeiro deles desenhista de som do filme. Nessa função, o profissional deve pensar tudo o que será ouvido pelo espectador ao assistir a película. Com quase nenhuma voz falando, os sons das ações dos personagens assume um papel fundamental no filme e o trabalho do desenhista de som fica mais evidente. Nesse caso, ele fez a interessante opção de musicalizar os sons captados da realidade, fazendo com que a trilha musical se integrasse por completo à narrativa.
A fotografia, por sua vez, tem um detalhamento pouco visto no cinema documental atual. Com a opção de filmar da mesma maneira que um filme ficcional, o diretor de fotografia Raul Pérez Ureta teve condições de construir a luz dos planos, o que fica muito mais visível nas cenas de interiores. As humildes casas dos personagens ganham status de territórios sagrados. Quanto às externas, a beleza da capital cubana é mais forte do que os anos de destruição a ela impostos. Havana, Patrimônio da Humanidade, é uma das mais belas cidades do mundo. É importante destacar também a montagem como guia da narrativa, revelando aos poucos as características dos personagens. Irônica e crítica, a montagem também tem uma função política, revelando através da ordenação das imagens a situação difícil em que vive o povo cubano. Apesar da aparência difícil, o filme é bastante agradável. Tanto que conquistou elogios do público em Gramado, um festival com uma platéia, digamos assim, não muito intelectual. Aliás, o filme saiu do Festival com dois kikitos na bolsa: Prêmio da Crítica e Prêmio Especial do Júri. Poético e inteligente, emocionante sem ser piegas, SUÍTE HAVANA é uma bela homenagem de seu diretor à capital cubana.
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