quinta-feira, 8 de abril de 2010

Crítica - A Montanha Sagrada (Alejandro Jodorowsky, 1973)

por Geuzebio
Extraído de http://www.cineplayers.com/critica.php?id=1177

Diretor de cinema e teatro, ator, produtor, compositor, escritor, autor teatral, filósofo, humorista, especialista em tarot, um dos criadores do “Teatro do Pânico” e do conceito de “Midnight Movies”, espiritualista e mestre dos quadrinhos. Essas são as "qualificações" de Alejandro Jodorowsky, cuja obra cinematográfica, apesar de não tão vasta, é considerada ainda hoje como uma das mais instigantes e experimentais, fazendo coro com cineastas como John Walters e David Lynch.

Dizem que o vovô do cineasta foi um judeu russo que trocou a Ucrânia pelo Chile, e atravessou os Andes acompanhado de uma mula e de sua Torá. Se isso assim o foi, teria sido possível a Jodorowsky escapar a uma predileção natural pela força do simbolismo? Principalmente o simbolismo mítico, numa mistura de fontes, entre cristãs, judaicas e pagãs; entre heranças e uma realidade lingüística e cultural diferente.

Assim, recebemos em forma de filmes a conjunção destas referências, a busca incessante pela revelação de uma supra-realidade: o que Jodorowsky quer é desafiar o homem comum a experimentar sensações às quais ele normalmente não se permite, partindo assim a um novo estágio, onde o homem entenderá melhor a sua própria natureza, sem as prisões dogmáticas às quais está acostumado a acomodar-se.

Essa é a natureza de A Montanha Sagrada. Esse foi meu primeiro contato com a obra de Ojodoro, aproveitando uma mostra promovida pelo CCBB que em sua fase carioca encerra-se neste final de semana. Apesar de já ter lido alguns artigos e críticas a respeito do autor - que oscilam entre considerá-lo gênio ou um contestador nonsense - desenvolver uma opinião escrita a respeito da experiência única de assistir a um filme seu, ainda mais em tela grande, pareceu um desafio tão interessante quanto necessário.

O cinema de Jodorowsky se mostrou complexo desde seu início: seu segundo filme, El Topo, foi gravado no México e com recursos próprios. Buscando a entrada no mercado norte-americano de cinema, ele tentou em vão vender os direitos deste filme. O problema é que em 1970 esta película não possuía par e os produtores não sabiam como vendê-la. Chegando então nas mãos de um antigo produtor que possuía uma sala de cinema em Nova York, o Cine Elgin, foi feita a proposta de exibirem El Topo nas sessões de meia-noite. Algumas semanas depois a sala não só estava lotada, como filas dobravam a esquina. A partir de então a maioria dos filmes considerados "inclassificáveis" passaram a ser denominados Midnight Movies, exibidos nesse horário não-comercial e criando uma série de fiéis seguidores do gênero. Essa é uma façanha importante sem a qual muitos absurdos maravilhosos do cinema talvez não existissem, vide a importância de um Lynch nos dias de hoje.

Voltemos à Montanha Sagrada...

Numa grande alegoria, com cenas e cortes que vez por outra não se conectam por uma lógica narrativa comum, a ação começa com Jodorowsky – guru numa espécie de rito iniciático, para em seguida sermos apresentados a um homem a quem chamam Ladrão cuja figura lembra a de Jesus Cristo. Ladrão vaga pelas ruas do México quando é crucificado e apedrejado por um grupo de crianças. Nesse momento ele inicia uma verdadeira amizade com um anão que será um dos poucos a acompanhá-lo em sua saga. Partindo para a cidade eles são testemunhas de várias situações, como um episódio em que soldados massacram alguns cidadãos comuns enquanto alguns estão às voltas com prostitutas de todos os tipos, cores e tamanhos. Felizes e sorridentes, um casal de turistas fotografa tudo com grande curiosidade. O tom de crítica é explícito!

Depois de algumas voltas, Ladrão é "sequestrado" por uns tipos que se assemelham a autoridades religiosas, que o carregam e preparam, fazendo dele o molde para várias estátuas de um homem crucificado. Ao acordar e se deparar com várias cópias de si mesmo, Ladrão tem um surto e no meio dele é acolhido pela prostituta-com-um-chipanzé, uma caricatura de Maria Madalena, que a partir daí será sua seguidora fiel.

Ainda vagando, ele encontra uma torre enorme que se ergue até o céu, e resolve escalar para encontrar uma resposta. No topo da torre ele encontra Jodorowsky-Alquimista que resolve prepará-lo e iniciá-lo num grupo de escolhidos que terão acesso a uma aventura em busca da montanha sagrada, na qual terão acesso ao segredo maior da existência. Dentro da torre tudo é simbólico: elementos alquímicos, pops, o yin e o yang, cartas de tarot e o cocô como elemento de expurgo e transformação interior. Tudo são artifícios cabíveis na alegoria de Ojodoro. Os outros escolhidos são também um capítulo à parte, com referências ao absurdo da industrialização e do consumo, da ganância e do materialismo dominantes na sociedade, esses escolhidos se fazem escolher justamente por seus deméritos e ganâncias.

Montado o grupo, eles partem para a viagem final à montanha sagrada. Pelo caminho, provações e tentações os aguardam e mais e mais alegorias se apresentam e se acumulam, até o final metafílmico que está ali justamente para colocar o espectador consciente da ilusão ficcional, jogando com o próprio engendramento da realidade a qual muitos enxergam sob o signo da ficção.

Merece destaque a cena em que Ladrão tenta multiplicar os pães para saciar a fome de um grupo de crianças, ao que é advertido por Jodorowsky – guru, que lhe mostra a pequena guerra em que se transformaria o acúmulo dos pães multiplicados. Sarcástico, escatológico, filosófico e mimético são alguns dos adjetivos possíveis de A Montanha Sagrada. Definitivamente, um clássico que deve ser assistido.

por Eduardo Valente
Extraído de http://www.revistacinetica.com.br/holymountain.htm

Antes de entrar no Espaço Unibanco quase às 0h desta terça-feira, eu só conhecia o cinema de Alejandro Jodorowsky de relatos de amigos. Por eles, tinha alguma expectativa, mas confesso que também um certo grau de ceticismo, já que muitas vezes (especialmente com filmes da década de 1970) os anos são cruéis com alguns filmes e cineastas adorados por vários conhecidos, e que acabam não me dizendo muito. Pois, lá pelo meio da primeira seqüência de The Holy Mountain (título que, sabe-se lá por qual motivo, o Festival do Rio resolveu “traduzir” para espanhol na sua programação), qualquer resquício de descrença já tinha abandonado meu corpo: o cinema de Jodorowsky é de verdade.

Descrença e verdade são duas palavras curiosas para se referir a este filme em especial, visto que religião e misticismo estão mais do que no centro de suas atenções. Ao longo do filme, Jodorowsky realiza um cinema curiosamente profano e religioso ao mesmo tempo. Lendo entrevistas dele, depois, pude entender alguns dos motivos para esta sensação que tive, pela maneira como ele fala com enorme interesse e admiração, por exemplo, pela figura e os ideais de Cristo, mas sem grande valor pelo seu uso pelo catolicismo institucionalizado.

Foi da mesma entrevista que eu tirei a frase que me serviria como chave para dar conta da minha reação ao filme: “a agressão é afetividade”, diz Jodorowsky. E isso resume bem a sensação que tive ao final da projeção: no meio de um cinema extremamente crítico, às beiras do cinismo muitas vezes, e com inegável intenção de causar reação na platéia, as entrelinhas deixam ver um olhar para o mundo surpreendentemente afetuoso. Isso fica claro especialmente no final do filme, quando vemos que toda sua estranha odisséia termina com um inesperado chamamento ao amor e à vida. No entanto, este chamamento vem embrulhado num coquetel altamente explosivo, que mistura sem medo o humor e o horror com incrível simultaneidade (alas, as três palavras-chave do movimento Pânico, do qual ele é um dos fundadores).

Se é bem sabido que Jodorowsky é uma figura e tanto, sendo não só cineasta, como escritor, dramaturgo e quadrinista – e, talvez acima de tudo, “bruxo” (as aspas vão pelos diferentes entendimentos da palavra), meu maior choque com o seu cinema, através deste filme, foi mesmo pela sua capacidade audiovisual, seu olho incrivelmente apurado que consegue algumas das composições e movimentos de câmera mais impressionantes que vi em algum tempo. Entre as claras influências de Buñuel, e o diálogo com uma série de artistas plásticos e dramaturgos do seu tempo, Jodorwsky tem uma voz e pegada próprias. Algumas de suas imagens, esfuziantes e horríveis ao mesmo tempo, são difíceis de apagar da memória. O homem que sobe a torre, a sala com as cores do arco íris, o “Bar Pantheon”, as numerosas estátuas, as putas na Igreja... Difícil enumerar todas elas.

Não sem alguma razão, alguns amigos revelaram revolta com o uso que o filme faz de animais – embora eu ache que na maior parte das vezes o quase sufocante excesso de bichos na tela mostra uma visão quase idealizada destes. Mas, de fato, especialmente na seqüência com os sapos e camaleões pode-se dizer que Jodorowsky excede os limites – mas, talvez o que ele queira justamente é questionar estes limites. E, embora eu não tenha a menor vontade de reproduzir uma experiência semelhante, é inegável a força que ela produz na tela, sendo justamente esta uma das grandes seqüências do filme.

Fato é que o cinema de Jodorowsky em The Holy Mountain é uma experiência única – e isso está cada vez mais difícil de se dizer de algum filme. Principalmente por isso, no meio de um festival de cinema é programa obrigatório.

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