terça-feira, 6 de abril de 2010

Entrevista de Alejandro Jodorowsky publicada na revista Contracampo

Extraído de http://www.contracampo.com.br/90/artjodoentrevista.htm

A chegada no antro de Jodorowsky já é um rito iniciático em si, implicando o uso de um elevador antigo que funciona apenas quando as suas quatro portas estão fechadas. No entanto, ele acaba por nos conduzir ao apartamento de um dos mais singulares criadores: cineasta, roteirista de HQs, mímico, poeta apaixonado por esoterismo e tarô. Alejandro Jodorowsky é um autêntico versátil. Ele nos recebe calorosamente em seu apartamento, vestindo uma camisa com a estampa de El Topo, por ocasião do tão esperado lançamento de seus filmes em DVD. O tempo para pedir que um dos numerosos gatos que povoam o lugar ceda um pouco de espaço para se sentar e a conversa começa.

Várias gerações de cinéfilos descobriram seus filmes graças a projeções mais ou menos clandestinas ou a cópias piratas de qualidade duvidosa. Hoje, três de seus principais filmes se encontram disponíveis em todo lugar. Como você se sente?

Eu estou contente, e o que me deixa mais feliz é que eu tive a oportunidade de trabalhar com cópias perfeitas e eu mesmo me ocupei da remasterização. Eu esperei demais por esse momento para não estar eufórico. É realmente algo tão forte que eu não posso dizer o que eu sinto exatamente. Enfim, é possível ver os filmes tais como eles são. Portanto, eu estou feliz enquanto artista, mas isso não infla o meu ego. Tive que receber muitos golpes por isso. Às vezes, eu gostaria de ser odiosamente egocêntrico, mas não chego a isso.

Por outro lado, antigamente, era necessário buscar os seus filmes se se quisesse vê-los. Hoje, você os encontra em todos os lugares. Não se tem a impressão de perder um pouco o seu status de cineasta “cult”?

Eu vou te dizer: o produtor Allen Klein me declarou guerra, e talvez ele tivesse razão. El Topo e A Montanha Sagrada o fizeram lucrar muito nos Estados Unidos. Em seguida, ele quis que eu adaptasse História d’O e eu queria fazer Duna. Na hora de assinar o contrato, eu bati a porta na cara dele e fugi. E, então, ele decidiu que ninguém mais no mundo iria ver os meus filmes. Ele destruiu as cópias que tinha à sua disposição, mas felizmente eu tinha conservado cópias em vídeo. E, então, eu iniciei uma verdadeira guerrilha: aonde eu fosse, eu distribuía as cópias, gratuitamente. Então, as pessoas puderam ver os filmes em circuito underground. Era a minha guerra e hoje, eu a ganhei.

Como se resolveu o seu desentendimento com Allen Klein? Eu acho que vocês chegaram a ir à justiça.

Sim, eu desafiei o monstro. Ele é muito poderoso: ganhou processos contra os Rolling Stones, os Beatles, Phil Spector, enfim, os maiores e os mais ricos. Eu sabia em que laboratório mexicano encontrar os negativos. Então, eu entrei em contato com alguém na Inglaterra e disse: "Eu te dou os negativos e você os lança em vídeo. Allen Klein tomará conhecimento disso e irá processá-lo. Você o dirá que a idéia foi minha, eu assumirei toda a responsabilidade". E foi assim que se chegou ao processo. Eu fui assessorado pelo Dr. Bitoun, um formidável advogado francês remunerado por porcentagem enquanto Klein pagava seus advogados a $500 por hora. Ao cabo de dois anos de processo, eu fui me encontrar com Roddt, o filho de Klein. Eu lhe disse que eu poderia continuar por dez anos, mas que eles perderiam uma fortuna por dia. Ele não poderia conduzir o seu pai a buscar um acordo amigável? Por que eu lhe fiz essa proposta? Eu tinha me dado conta de que eu havia vivido muito, criado muito, e que eu não poderia odiar uma pessoa por toda a minha vida. Afinal de contas, para mim seria igual se os filmes desaparecessem, tudo isso já tinha passado. Então, decidiu-se fazer um encontro em Londres. Eu iria rever uma pessoa que eu odiava há trinta anos, e quando ele abriu a porta, me deparei com um senhor de cabelos brancos, como eu. Ele me olhou e me disse: "Você está bonito!" Eu lhe respondi: "Você se parece a um velho mestre espiritual!" E nos abraçamos. E, em três, quatro minutos, voltamos a ser amigos. Apesar de tudo, ele sempre me admirou e foi graças a ele que pude realizar os meus filmes. E assim, nós entramos em um acordo.

Você mesmo supervisionou a remasterização dos filmes?

Sim, eu me ocupei de tudo. Os Klein investiram $500.000 na restauração, e me deram uma equipe completa. Eu cheguei a passar até dez horas, sem parar, sobre as máquinas com um técnico que mudava tudo o que eu queria. Por exemplo, em El Topo, há uma cena na qual as prostitutas estão reunidas na igreja, e entre elas, se encontrava um macaco, que não se via muito bem. Eu pedi ao técnico que o iluminasse um pouco mais, e em três cliques, a luz estava sobre ele. Para mim, é formidável, é melhor que uma ejaculação! (risos) Enfim, eu tenho a possibilidade de corrigir todos os erros feitos durante a filmagem. 1

Você disse que seria igual se os seus filmes desaparecessem. Entretanto, durante muito tempo, acreditou-se que Fando e Lis, o seu primeiro longa-metragem, tinha se perdido. Isso realmente lhe deixa totalmente indiferente?

Eu montei centenas de peças no México; e ao fim de cada representação, não resta mais nada, o teatro é como a fumaça. Então, eu me habituei ao fato de que as obras de arte se perdem. No momento em que o meu primeiro curta, A Gravata se perdeu; bom, ele se perdeu. 2 Não se podia mostrar El Topo e A Montanha Sagrada? Não era grave; eu continuei a viver, a fazer outra coisa. Eu jamais deixei de criar, isso me permitiu suportar tudo isso. Olhe Dan O’Bannon, por exemplo: ele trabalhava no meu projeto Duna, e devia se ocupar dos efeitos especiais. Após o abandono do filme, ele fez uma terapia, por dois anos, esteve quase louco. Ele saiu dessa situação e em seguida escreveu o script de Alien. Mas, o choque o conduziu a viver fora do mundo durante dois anos. Eu não. Eu simplesmente mudei de caminho, e com Moebius, passamos aos HQs e fizemos O Incal. Assim, eu resisti.

Justamente, você se exprimiu em numerosos domínios artísticos diferentes, da mímica aos HQs: qual é a sua abordagem do cinema enquanto mídia específica? O que ele lhe permitiu fazer ou não fazer?

Cada arte tem o seu domínio de expressão próprio; então não é que ele permite fazer o que não se pode fazer em outro lugar. Quando eu faço cinema, é apaixonante; mas quando escrevo um poema, também é inteiramente apaixonante. São meios de expressão diferentes, com temáticas diferentes.

Mas, você se sente mais livre em certos domínios, como nos HQs? Quando você escreve O Incal, você tem menos constrangimentos?

Não, o domínio mais livre é a poesia. Pois aí, você está totalmente sozinho. O que também é válido para o romance. Já nas HQs é diferente, você deve dialogar com um desenhista. No cinema é muito mais difícil. É uma guerra, e se você quiser impor a sua visão, você pode deixar aí a sua saúde, a sua vida. Todo mundo tem a sua idéia do filme, e aí você negocia com comerciantes, políticos. É verdadeiramente difícil.

Você se lamenta de algo? Das idéias não realizadas? Evidentemente, se pensa em Duna.

Eu não tenho lamentos. Meus filmes não são certamente o que eu quis fazer, mas o que eu pude fazer. O máximo do que eu pude realizar. As coisas seriam diferentes se eu tivesse $100.000.000, mas eu jamais os terei. Então, eu me contentei em fazer o que pude.

Em Constelação Jodorowsky, Moebius faz um comentário interessante: "era a preparação de Duna o que era importante, o sonhar, buscar as idéias. Mas, o fato de não ter sido filmado não é muito grave."

É verdade, mas o filme, ele existe, ele está lá (aponta a coletânea de storyboards sobre uma estante). Você fala de lamentos. Mas, eu posso te dizer: eu tenho quatro filhos. Um deles morreu. Não existe nada mais terrível do que enterrar um filho. Porém, se faz o luto, não se pode ficar bloqueado, é preciso continuar a viver. Duna é como a morte de um filho. É um choque. É fazendo outra coisa que se sobrevive a isso.

Voltando ao seu primeiro longa-metragem, Fando e Lis, parece que a sua recepção foi difícil, sobretudo quando o exibiram no Festival de Acapulco.

Na época, o México produzia apenas um cinema muito popular; histórias de amor cor-de-rosa, sem nenhuma preocupação metafísica. Quando exibiram Fando e Lis, filme totalmente realizado fora da estrutura estabelecida, isso provocou um efeito de bomba, o tomaram como um insulto. Tentaram me linchar, e eu tive que abandonar o cinema escondido no fundo de um carro, após terem desligado as luzes para que eu pudesse escapar no escuro. Para eles, eu tinha violado o cinema mexicano.

Por causa das imagens utilizadas, dos temas abordados, ou por não ter respeitado as convenções de produção?

Eu penso que é um todo. Claro que para os sindicatos era um escândalo político. Mas as imagens também precipitaram isso. Uma moça que dorme com um porco, não é possível! O mesmo para um personagem que bebe sangue de verdade, me acusaram de ser um vampiro! E mais, eu tive má sorte: somente puderam exibir o filme um ano depois de tê-lo acabado, e durante todo esse tempo, a atriz seguiu um regime draconiano. Em Fando e Lis, ela estava muito bonita; chegando ao festival, ela tinha o ar de ter saído de um campo de concentração: os críticos declararam, então, que eu tinha sugado o seu sangue, que eu quase a tinha matado. E mais, Sergio Kleiner 3 confirmou todas as acusações de torturas.

Vê-se que não se estava nas condições ideais para filmar, mas o que o levou a passar da pantomima ao cinema?

Eu sempre quis fazer um filme, mas não antes de constituir primeiro o meu universo pessoal. Os espetáculos me ajudaram a criar o meu próprio estilo, alguma coisa que não devia a nenhum cineasta, enfim o estilo “jodorowskiano”. Quando eu me senti pronto, eu me lancei.

Você diria que os seus filmes se endereçam ao espírito ou aos sentidos? A compreensão, mesmo parcial, lhe parece indispensável?

Fando e Lis, El Topo e A Montanha Sagrada são filmes para o espírito, muito claramente. Enquanto que Santa Sangre busca suscitar a emoção, é verdadeiramente uma outra via que eu tomei. Alguns o preferem, pois os toca muito mais. Mas, para mim, são obras da mesma qualidade. No que concerne à compreensão, Ben Cobb, um excelente escritor, lançou um livro sobre mim na Inglaterra: é lendo o que ele escreveu sobre El Topo que eu verdadeiramente compreendi o filme, ele o explica bem melhor do que eu, pois eu jamais o compreendi intelectualmente. Meus filmes não se endereçam ao intelecto. Mas, eu recomendo ver A Montanha Sagrada escutando o comentário, no áudio. Aí eu explico os símbolos, e são dicas que podem ser interessantes. Não necessárias, mas divertidas.

Seus projetos não são fáceis de realizar. Hoje ainda é possível encontrar produtores com vontade de realizar um filme de Jodorowsky?

Eu jamais encontrei um produtor que tivesse vontade de fazer um Jodorowsky, mas eu sempre encontrei alguém para fazê-lo. Agora mesmo, buscamos alguém para realizar Bouncer, adaptação do meu HQ. Robert Taicher, que já tinha trabalhado em A Montanha Sagrada, tenta reunir cinco milhões de dólares para realizar King Shot. E um outro produtor busca atualmente doze milhões para fazer Os Filhos de El Topo. Mas, eles nunca os encontram, nem nos bancos ou nas redes de televisão. Eis porque eu dou entrevistas por ocasião do lançamento de meus filmes; se mostrar o quanto é rentável, talvez encontraremos investidores, prontos para começar um pequeno filme de cinco milhões. A pré-produção de King Shot já está terminada; se alguém me der cinco milhões após ter lido a sua entrevista, eu começo em seguida! Do mesmo modo, eu gostaria de remontar Tusk ou O Ladrão do Arco-Íris, mas isso exigiria um investimento de $ 200.000.

A sua experiência com O Ladrão do Arco-Íris esfriou a idéia de voltar a trabalhar um dia em um grande estúdio?

Ah, não, isso nunca mais! Marilyn Manson quer trabalhar comigo, eu digo sim! Santiago Segura, um grande ator espanhol, quer trabalhar comigo, eu digo sim! Compreende-se. Mas, eu não quero nunca mais ter que trabalhar com alguém como Peter O’Toole. Ele chega no platô como se fosse o mestre do mundo, e começa a ficar louco de raiva com o propósito de mostrar que é ele quem tem poder, tudo isso porque ele exige um primeiro plano que eu não tenho vontade de fazer... mas, que se dane!

Você pode nos dizer alguma coisa mais sobre King Shot?

É difícil... um casal de jovens, arquitetos, vão para um cassino, no meio do deserto: eles são detidos pelo exército, após a descoberta de membros gigantes. Eu não posso te dizer mais, o próprio de meus filmes é que eles não podem ser contados, eu devo somente fazê-los.

Você tem um olhar um pouco desiludido sobre o cinema de hoje, você ainda vê filmes que te apaixonam, te seduzem?

Que me apaixonam, não, mas alguns me divertem, ao menos eu encontro freqüentemente um pedaço interessante. Por exemplo, O Festim Chinês, de Tsui Hark: eu não adoro o filme, mas a seqüência do concurso, onde uma das personagens cozinha uma pata de urso, é para mim genial. Em Old Boy, há um combate em um corredor que se assemelha a um baixo-relevo egípcio: genial! Em A Ilha, um personagem tenta se suicidar engolindo um anzol, também é formidável. Um cineasta incrível é Takashi Miike: ele faz sei lá o quê, filmes muito ruins. Mas, em cada um deles, você encontra uma cena incrível. Em A Big Bang Juvenil, durante uma seqüência na prisão, um homem tenta estrangular um outro com um cordão, mas não consegue, a moral o impede. O outro quer morrer, lhe toma as mãos e se estrangula a si mesmo, em um instante se torna um suicídio. Eu me pergunto como podem inventar isso, eu acho formidável introduzir noções homossexuais de modo tão sutil. Outro exemplo, em Fudoh, uma moça lança dardos envenenados graças a um tubo enfiado em sua vagina, a uma das vítimas que recebe sangue no rosto, ela replica: "Me desculpe, eu estou menstruada". É incrível. O mesmo para Taxidermia, você vê um homem que se masturba e uma chama sai de seu sexo: são imagens que ficam. Todos os dias, eu encontro imagens que me agradam. Talvez um dia eu poderei pegar uma tesoura e fazer a minha própria compilação.

Entrevista concedida a Franck Suzanne, no dia 25 de abril de 2007.

(Publicada originalmente em Dvd Classik.com.
Acesso em 22 de dezembro de 2007. Traduzido do francês por Fabián Núñez.)

1. Mais tarde, eu soube que a mudança que o deixa mais orgulhoso foi a de ter podido modificar as cores das formigas de A Montanha Sagrada. (N.A.)

2. O curta-metragem A Cravata (La Cravate), realizado na França em 1957 e considerado perdido, foi recentemente encontrado na Alemanha. Foi exibido no Brasil, por ocasião da Mostra Jodorowsky, no CCBB do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, em 2007. (N.T.)

3. O ator do filme que interpreta Fando. (N.T.)

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