quinta-feira, 13 de maio de 2010

Crítica: O Sol (Aleksandr Sokurov, 2005) por Luiz Carlos Oliveira Jr.

Extraído de http://www.contracampo.com.br/89/festosol.htm

Que Imagem para a História? Eis a pergunta que Sokurov se faz em seus filmes sobre grandes ditadores do século XX. As letras maiúsculas designam o peso que ele confere a ambas, Imagem e História. O modo de representação, porém, estabelece um sentido de grandiosidade ambíguo, privilegiando o recorte microscópico em detrimento da encenação dos acontecimentos épicos. A visão histórica, em Sokurov, se reconstrói a partir daquilo que a princípio não estava destinado à memória coletiva. Uma cena de O Sol ilustra à perfeição a estratégia do diretor: o imperador Hirohito, apaixonado por biologia marinha, observa um raro espécime de caranguejo no microscópio e o descreve em minúcias para seu assistente. Detendo-se sobre os últimos dias de poder de Hirohito, da mesma forma que já fizera com Hitler em Moloch e Lênin em Taurus, Sokurov assume essa mesma postura de observador motivado simultaneamente pelo gesto científico e pelo fetichismo. Ele sublinha os cacoetes de Hirohito, os hábitos, a respiração, a compleição física. Sokurov é um colecionador de personagens históricos; sua trilogia é seu hobby, seu álbum de figuras icônicas – igual ao que Hirohito possui, com imagens de Chaplin, Garbo, Bogart e outros astros de Hollywood. As imagens de O Sol (captadas em HD) se aproximam de um sépia que reforça a impressão de um álbum de fotografias antigas folheado com muito cuidado por Sokurov. Em sua maior parte, o filme foi rodado dentro de estúdio, como a demarcar o espaço de uma relação íntima com a História – ou de um laboratório privado para o diretor se entregar a seu “lazer sério”. Ele alcança agora o que Moloch só esboçava: a poesia e a patologia da História guardadas em uma mesma textura, uma mesma luz.

E não são apenas os personagens históricos que se tornam alvos de fetiche, mas também os objetos sobre os quais o tempo depositou sua marca, sua espessura, algum signo forte do passado, algo que distinga aquele objeto como pertencente a uma época que se foi. Abundam em O Sol os planos-detalhe sobre objetos de antiquário, desde pratos de cerâmica até abotoadeiras, luvas e embalagens do chocolate Hershey’s (um presente do general MacArthur ao imperador Hirohito: vemos o Japão pop em embrião). O lado museólogo de Sokurovhavia ganho seu tour de force em Arca Russa, mas em O Sol o desejo de reter objetos antigos na frente da câmera adquire o aspecto de um manifesto a favor da beleza dessas peças arqueológicas, esses detalhes das épocas passadas. O próprio Hirohito é tratado dessa forma, como uma peça cuja beleza devemos aprender a apreciar ao longo do filme. A opção por apanhar o imperador às vésperas de sua capitulação é evidente: Sokurov filma o estatuto de um ser em processo de mutação. O deus deverá ser homem, pôr os pés no chão, aprender a abrir uma porta sem esperar que um súdito o faça por ele.

Arca Russa, filme que consistia num único plano de mais de 90 minutos, levava ao paroxismo uma recusa às transformações da História. O filme rechaçava a montagem, o corte, condenava o caráter de rupturas drásticas que caracterizaria os processos históricos após o momento (o século XIX) que ele estabelecia como fim da era preciosa da humanidade. Em O Sol, a montagem está presente, mas é curioso como, sobretudo nas primeiras cenas do filme, leves fusões fazem a transição de um plano a outro, e não cortes secos. O amortecimento das passagens de plano adia as transformações a caminho, dilata o crepúsculo do poder de Hirohito. O filme inteiro é essa dilatação, um prolongamento dos últimos raios do “sol” – com o detalhe de que, num determinado momento, Hirohito se descobre gostando de não precisar mais ser deus. Como MacArthur observa, ele parece uma criança. O imperador, visto de perto, é um pequeno ser cheio de manias engraçadas. Os dois encontros do famoso general americano com Hirohito são preciosos, representam o ápice de uma construção que começa já na primeira seqüência do filme: o protagonista é visto por alguém através de uma fresta. Essa cena se repete em outras ocasiões, até que chegamos no momento em que é a vez de MacArthur observar Hirohito pela fresta da porta, seu rosto tomado por uma curiosidade reservada. Esse admirador secreto localiza, no filme, o próprio olhar de Sokurov em relação a seus personagens tiranos. A decadência da soberania lhe fascina mais que a qualquer outro cineasta vivo. E esse fascínio agora rende um filme exuberante, uma obra que encontra a interseção ideal entre a frieza, a força e a doce fragilidade de seu protagonista.


Existe um aspecto da estética de Sokurov, um tipo de densidade da imagem, que magnetiza o olhar mesmo em seus filmes menos interessantes – um efeito-Sokurov que sempre encanta, por exemplo, o espectador de primeira viagem. Mas se houve facilidade no uso desse efeito em alguns de seus filmes, aqui eles estão adequados ao conceito e até comedidos – mas não menos marcantes. Como não se embasbacar com aquele plano do faisão espelhando os soldados curvados em reverência à saída do imperador em seu carro? No decorrer dessa cena, o trajeto de Hirohito até a casa de MacArthur é um verdadeiro choque estético. O mundo interior do protagonista, que até ali o filme nos tinha dado a conhecer, se colide com o exterior devastado pela guerra. Mas as cenas externas são também mergulhos a um porão obscuro. Um teto de chumbo permanece sobre o filme. Além dessa cena e do jantar com MacArthur, existem dois outros momentos antológicos: o abraço lento e tímido de Hirohito em sua mulher, já no final, e o ataque aéreo promovido por bestas do apocalipse, pesadelo em meio a seu país incendiado, cena que se desenvolve como uma animação que estranhamente se assemelha a algumas partes de O Castelo Animado de Miyazaki. Dá para incluir também no pacote de antologia o momento em que Hirohito posa para fotos. Os soldados americanos exclamam: "Esse cara parece o Charlie Chaplin!". Uma incrível abordagem do homem e do mito. Pensávamos que Sokurov deixaria de nos interessar, mas O Sol trouxe à sua obra uma nova potência e um novo mistério.

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