quinta-feira, 6 de maio de 2010

Artigo: Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936)

Por Cesar Dutra Inácio
Extraído de http://www.tempopresente.org/index.php?option=com_content&task=view&id=1395&Itemid=83


O anti-herói tragicômico Carlitos, em sua faceta trabalhador industrial talvez tenha sido quem melhor traduziu a Grande Depressão (1929-1941) nos Estados Unidos. Charles Chaplin com seu filme Tempos Modernos (Modern Times, 1936) sintetizou como ninguém o período histórico marcado pelo desemprego em massa, queda acentuada do produto interno bruto em decorrência do declínio da produção industrial e dos preços das ações subseqüente à Quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929.

A Grande Depressão gerou grandes repercussões para a nação norte-americana – cerca de 325 bilhões de dólares foram perdidos só em bens. O declínio econômico trazido pela Depressão teria custado aproximadamente um ano e dois meses de emprego. Entretanto, a fenda no padrão de vida não se configurou de forma equânime para todas as parcelas da população estadunidense. Oficiais das Forças Armadas, pilotos de linhas aéreas, professores universitários e alguns operários especializados se mantiveram estáveis. Alguns norte-americanos ainda conseguiram prosperar em seus negócios, chegando em poucos casos acumular fortunas significativas. É evidente que a maior parte da população não se enquadrou nesse perfil. (GRAHAM JUNIOR, 1976)

Trabalhadores de áreas marginais sensíveis (como barbeiros, músicas, jardineiros, etc.) foram aqueles que mais sentiram as repercussões negativas da crise. Professores primários, principalmente, os que trabalhavam em escolas públicas, somados a arquitetos, pequenos comerciantes e agricultores sofreram um severo declínio em suas atividades. Os cidadãos que não eram detentores do perfil sócio-ideal de trabalhador (não-brancos, judeus, homens de meia idade e velhos, etc.) tiveram na Depressão a antecipação do tempo de dependência e angústia do fim da vida.

Em suma, a Grande Depressão delineou um quadro de mazelas sócio-econômicas traduzido no desmoronamento das esperanças e no desespero pela sobrevivência, sobretudo das camadas mais baixas da população que encarou fome, superpopulação, desnutrição e doenças.

A indignação com os turbulentos anos de crise que se configuravam não poderia ter se ausentado do mundo das artes. Dentre as formulações artísticas da época, o cinema talvez tenha sido um dos maiores elementos de crítica – seja pelo molde realista seja pela sutileza da comédia. Mesmo correndo o risco de transformarem-se em fracassos comerciais, filmes como Black Legion (1937) com sua contestação a violências raciais e I Am Fugitive from a Chain Gang (1935), crítica ao tratamento dado aos presos, ganharam destaque pela ousadia e posição política firme contra os despropérios de uma nação assolada pela crescente crise. Contudo é com o talento do humor de Charles Chaplin em sua obra Tempos Modernos (Modern Times, 1936) que a crítica ao modo de produção capitalista e à reprodução social burguesa que se deu de forma mais genial.

Chaplin esforça-se em delinear não somente concepções que abrangem as questões trabalhistas em si, mas também uma perspectiva de humanidade em que a busca pela felicidade é uma constante. A frase do início do filme pontua a idéia central da obra: “Tempos Modernos. Uma história sobre a indústria, a iniciativa privada e a cruzada da humanidade em busca da felicidade.” (CHAPLIN, 1936)

O personagem de Chaplin representa o trabalhador da primeira metade do século XX em vários aspectos, contudo simultaneamente ressalta o desajuste à modernidade burguesa. Por um lado, o industrial worker se destaca da multidão como individualidade heróica que se identifica com o público-massa (construção característica de Hollywood), mas por outro, pontua uma tentativa frustrada de inserção na sociedade capitalista traduzida na busca pelo anonimato (configurando-se em um anti-herói problemático). (ALVES, 2005)

A constante sensação de estranhamento com relação à sociedade é o elemento central da tragicomicidade da película. Tanto no ambiente de trabalho quanto em seu cotidiano sempre há um desajuste à realidade.

O ambiente fabril nos traz muitas informações sobre os elementos constitutivos do modo de produção capitalista e da sociedade norte-americana da época. A linha de montagem fordista com sua extrema especialização produz partes de mercadorias não-identificadas — Chaplin não nos deixa saber o que está sendo produzido. Somente sabemos que é uma fábrica de componentes elétricos (Electro Steel Corp.). O trabalhador perde a noção total de produto dada à divisão de tarefas. Desse modo, o trabalho ganha caráter abstrato.

Em uma cena mais adiante, Carlitos volta à fábrica só que agora na condição de assistente de manutenção das máquinas. Uma leitura possível é que o velho que acompanha Chaplin represente os antigos artesãos metalúrgicos. A cena em que o funcionário mais antigo fica preso nas engrenagens pode demonstrar que o novo capitalismo marcado pelo taylorismo-fordismo suplantara o sistema de produção artesanal.

Destaca-se também nesse ambiente a tentativa de controle total do funcionário por parte do capitalista. O capataz controla a linha de produção no que diz respeito ao seu andamento, enquanto o capitalista dita a velocidade da produção através de uma grande tela a la Big Brother como na obra literária 1984 de George Orwell (1949). A utilização de uma tela para o controle dos funcionários – o personagem de Chaplin é observado até dentro do banheiro! – já tinha sido realizada no clássico filme de ficção científica, Metropolis do cineasta alemão Fritz Lang em 1926.

A ligação com a máquina (fetiche do capital) é tão grande que o trabalhador industrial passa a ser parte dela. Tanto que Carlitos é engolido por ela e, após um dia estressante dia de trabalho é imbuído pela loucura. Já que não há o trabalhador perfeito como em Metropolis (Lang, 1926) – onde é criado um robô incansável de afeições humanas – tenta-se fazer do ser humano uma máquina — com a realização de trabalhos cansativos e repetitivos em uma aviltante jornada de trabalho diária.

Um outro exemplo de controle total do capitalista sobre o funcionário é a tentativa de utilização da Máquina Alimentadora Bellows. O mecanismo é anunciado por um vendedor mecânico (a máquina substitui o vendedor humano!) como “um artefato prático para alimentar seus empregados enquanto trabalham”. (CHAPLIN, 1936) Assim, procura-se eliminar os tempos mortos da produção tal como concebe a teoria taylorista. A tentativa é desastrosa. A sopeira dá uma pane e quase eletrocuta o industrial worker interpretado por Charles Chaplin.



O sentimento de inadequação de Carlitos com a realidade também se estende a outras atividades exercidas pelo personagem. Logo após sair da prisão, ele procurou outro emprego: conseguiu em um estaleiro naval. Esforça-se em seguir as ordens de um superior: procurar um pedaço de madeira que fosse parecido com o que ele tinha em suas mãos. Depois de explorar um pouco o terreno finalmente o encontra. Mas é nesse ponto que ocorre a confusão. Por ainda estar ambientado com a fábrica, não percebe as diversas utilizações possíveis do material madeira, haja vista que devido à especialização de seu trabalho, somente consegue apreender um uso para mesma. No caso, a madeira que achou – dentre as várias funções possíveis para ela – servia como trava para o navio ainda em construção. O navio para seu desespero desliza e afunda por completo no lago. Os demais funcionários observam a cena estarrecidos. Carlitos envergonhado decide voltar para a prisão por se sentir inadaptado para aquela realidade. (ALVES, 2005)

Devido a esse estranhamento constante, o personagem chaplino não consegue permanecer por muito tempo no mesmo emprego. Como um artista circense que foi desde a infância, Carlitos se desdobra em funções que vão desde operário da indústria, passando por vigia de loja de departamento e auxiliar de manutenção de máquinas até garçom e showman em um bar à noite. O personagem não chega a ser exatamente o que mais tarde o sociólogo Huw Beynon chamou de trabalhador hifenizado, uma vez que tal categoria se caracteriza no emprego baseado em um contrato que não segue uma padronização específica no qual o trabalho pode ser temporário ou ocasional; autônomo, doméstico ou franqueado; por meio expediente ou integral; em que diversas atividades são exercidas pelo mesmo indivíduo em diferentes horários do dia ou da noite. (BEYNON, 1995) Carlitos teve vários empregos, porém não permaneceu atrelado a eles simultaneamente. O personagem de Chaplin não teve várias ocupações com o objetivo de tentar completar sua renda mensal ou semanal, mas sim devido à sua inadaptação ao serviço. A mudança de emprego é constante. Portanto, a questão é o estranhamento e não a flexibilização do mundo do trabalho.

Charles Chaplin não se conteve em explicitar apenas o mundo do trabalho: evidenciou também o desdobramento da modernidade burguesa na vida social. A internação no hospício – provavelmente inspirado em sua mãe que também teve um surto nervoso –, assim como a clausura no presídio – após ter sido confundido com um líder comunista – retrata os espaços onde os que não servem para o trabalho são alocados pela sociedade burguesa. (HALE, 2006; ALVES, 2005)

O sofrimento seja físico ou mental é fruto do processo de industrialização frenético em que o doce trabalhador – de tantas atribuições – é na verdade a figura mais atormentada do filme. A cena em que Chaplin canta e dança ao som da música Nonsense Song é o real momento em que o industrial worker pode se libertar. Naquele momento ele pode ser ele mesmo, gozando da liberdade plena de sua vontade.

No final do filme a sua viagem para o horizonte junto à Paulette Goddard pode ser interpretada como a morte social dos personagens. Tentar escapar da sociedade burguesa – simbolizada pela caminhada na estrada vazia sem nada a frente – é algo inconcebível, haja vista que não podemos nos isolar socialmente. Desse modo, o Vagabundo (The Tramp) e a Garota (The Gamin) parecem estar destinados a não-existência. (SUSMAN apud GOLDMAN, 2004)



Portanto, o filme de Charles Chaplin reportou-se às péssimas condições de trabalho — as árduas horas de trabalho e o desempenhar repetitivo do apertar parafusos e puxar de alavancas — decorrente da maior especialização da linha de produção fordista. Com tal divisão de tarefas não é mais permitido ao trabalhador saber o que afinal estava produzindo: como o trabalhador não participa das demais etapas do processo produtivo ele perde a noção total de produto. Tanto que para expressar esse fenômeno, Chaplin não nos deixa saber que produto a indústria no filme está produzindo.

As características do fordismo ainda estão presentes no mundo atual. O sociólogo Huw Beynon, especialista do mundo do trabalho, ao reiterar Ritzer ressalta que tal concepção, não só de trabalhador, mas também de consumidor ainda estariam em voga:

“Muitas características do fordismo também são encontradas no estilo de McDonald's: a homogeneidade dos produtos, a rigidez das tecnologias, as rotinas padronizadas de trabalho, a desqualificação, a homogeneização da mão-de-obra (e do freguês), o trabalhador em massa e a homogeneização do consumo (...) nestes e em outros aspectos, o fordismo continua vivo e forte no mundo moderno.” (RITZER apud BEYNON, 1995, p.12)

Nesse sentido, Tempos Modernos (Modern Times, 1936), último filme mudo produzido por Charles Chaplin ainda soa atual. Em uma sociedade marcada pela complexidade, onde os indivíduos são regrados pelos segundos precisos do relógio, Carlitos conquistou o mundo com sua simplicidade convertendo-se em um dos maiores gênios do cinema de todos os tempos – sejam eles modernos ou não!

BIBLIOGRAFIA

ALVES, Giovanni. A batalha de Carlitos: trabalho e estranhamento em Tempos Modernos, de Charles Chaplin. In: ArtCultura. Uberlândia, V.7, No.10, Janeiro-Junho de 2005.

BEYNON, Huw. A destruição da classe operária inglesa? In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. No.27, Ano 10, Fevereiro 1995. p.5-17).

CHAPLIN, Charles. Tempos Modernos. Título original: Modern Times. Preto & Branco. Legendado. Duração: 87 min. Warner, 1936.

GOLDMAN, Jonathan E. Double Exposure: Charlie Chaplin as Author and Celebrity. In: M/C Journal. Volume 7. Issue 5. November/2004.

GRAHAM JUNIOR, Otis L. Anos de Crise – A América da Depressão e na Guerra, 1933-1945. In: LEUCHTENBURG, William E. (org.) O Século Inacabado – A América desde 1900. V.1. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976. p.367-475.

HALE, Aaron. Chaplin – an essay. Disponível em http://www.csse.monash.edu.au/~pringle/silent/chaplin/aaronhale.html Acessado em 25 de Julho de 2006.

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